"Estou do lado da história, não do museu de arte": relato da palestra de Heinz Schütz, Graziela Kunsch
relato da palestra de Heinz Schütz
Antes de começar este relato, acho pertinente apresentar o projeto de exposição que tem curadoria de Heinz Schütz, não referenciado em sua palestra. Este projeto se chama Performing the city: Actionist Art in the Urban Space 1960s and 1970s e está planejado para acontecer a partir de outubro de 2008, em Munique. Após Munique, a exposição deve percorrer as cidades Tóquio, Seul, Moscou, Viena, Lituânia, Praga, Berlim, Dusseldorf, Londres, Paris, São Paulo, Nova Iorque, Toronto e Cidade do México.
Performing the city tem três preocupações centrais: 1. Pensar a cidade como um espaço de ação; 2. Organizar uma documentação histórica; e 3. Contribuir com o debate atual sobre arte pública.
As “ações urbanas”(1) dos anos 1960 e 1970 escolhidas por Schütz serão apresentadas em quinze grandes atlas – cada atlas referente a uma das cidades que vão acolher a exposição – com mapas, fotos e pequenos textos. Desta forma, Schütz pretende “evitar que fotos das performances estejam penduradas em paredes como obras de arte raras. Cada ação estará situada na cidade onde aconteceu; a fronteira entre arte e não arte será flutuante”. Mas além dos atlas a exposição ocupará espaços institucionais, com instalações de áudio e vídeo, uma programação de filmes e uma série de palestras.
A cidade como palco
Heinz Schütz falava rápido, a tradução tentava acompanhar, nós tentávamos acompanhar. Ele sorria muito ao comentar algumas performances dos anos 60 e 70 e, reiteradas vezes, afirmava que poderia ficar horas falando sobre este assunto.
Foi assim na apresentação de Following Piece, de Vito Acconci (1969):
Neste trabalho, o artista seguia uma pessoa qualquer pelas ruas até que esta pessoa entrasse em algum local privado, onde ele não pudesse entrar. Ele seguia uma pessoa diferente por dia, ao acaso, durante um mês. Se esta pessoa entrasse em um carro, a perseguição se encerrava ali. Já se entrasse em um restaurante ou em um cinema, Acconci continuava atrás desta pessoa. Segundo Schütz, Acconci considera o espaço público especialmente como um espaço de encontro. E disse que poderia falar horas sobre a noção de Acconci para um “espaço público democrático”, mas infelizmente não falou. Encontramos uma explicação no texto Public space in private time, de Acconci (2):
A praça permanece democrática quando as pessoas se dividem em pequenos bandos. Um grupo de pessoas forma territórios, como se estivessem sobre uma planície. O bando é pequeno o suficiente para não precisar de um líder: cada pessoa no bando tem a chance de falar por si mesma/por si mesmo, sem pedir permissão para isso.
Poucas das obras apresentadas por Heinz Schütz tinham permissão para acontecer. A maioria delas tomava a cidade de assalto, como o happening The anatomic explosion, proposto por Yayoi Kusama (1968), no qual algumas pessoas dançam nuas diante de uma estátua de George Washington, na Bolsa de Valores de Nova Iorque (3):
Pioneira em ações feministas, Valie Export perturbava as relações sociais ao passear com seu companheiro Peter Weibel amarrado por uma coleira, de quatro, como um cachorro (Aus der Mappe der Hundigkeit, Viena, 1968):
Mas o trabalho que mais literalmente tinha relação com o título da palestra – A cidade como palco – foi In Ulm, um Ulm und um Ulm herum, de Wolf Vostell (1964), co-fundador do Fluxus. Com duração de seis horas, neste happening o público era conduzido em um ônibus, parando em diversas “estações” da cidade de Ulm como um lixão, um açougue e o aeroporto do exército federal. No açougue se assistia ao abate de um animal e no aeroporto Vostell regiu um concerto com três aviões a jato.
Como o museu lida com as performances e os happenings dos anos 60 e 70?
A ênfase da palestra de Heinz Schütz foi a sua preocupação com a documentação histórica destas ações. Ele fez uma séria crítica às instituições que recuperam estes trabalhos e esvaziam seus conteúdos contestatórios e políticos, ou mesmo que ignoram estes trabalhos. E perguntou: como transformar o museu em um site verdadeiramente histórico?
A única pista que ele nos deu foi comparar o museu a um livro de história. Em conversa posterior, pedi que ele desenvolvesse um pouco mais esta colocação, ao que ele respondeu:
“A idéia do museu clássico é conectada à idéia de ‘valores eternos’. O modernismo reconhece que ‘valores eternos’ dependem da história. Como uma consequência, os museus modernos passam a ver a arte como uma sucessão de estilos, baseados em grandes obras de arte e objetos. Especialmente nos anos 60 e 70, o caráter do objeto de arte muda e se transforma não apenas em conceitos escritos como também em happenings, ações e performances. Ao renovar a idéia vanguardística de que arte e vida precisam estar conectadas, a arte passa a ser performativa. Ao olhar para trás precisamos reconstruir este tipo de trabalho; estamos na mesma posição de um historiador que conhece apenas documentos mas nunca a coisa (a história) propriamente dita”.
Por que repensar os anos 60 e 70?
Perguntei também a Heinz Schütz de que forma o projeto de sua curadoria, apresentado no início deste relato, contribui para a reflexão atual em arte pública:
“Existem várias razões. Uma delas é a verdade histórica. O objeto de arte e o trabalho de arte foram atacados nos anos 60 e 70. É um crime histórico não se falar sobre isso. Uma outra razão é que a discussão de espaço público dos últimos anos falou muito sobre arquitetura e pouco sobre aspectos performáticos. Uma terceira razão é que o debate dos anos 60 foi bastante político e anticapitalista. Hoje a economia parece ser o objetivo final a que temos que submeter tudo. Aos poucos, as realizações sociais desaparecem”.
A produção brasileira
Após a palestra de Heinz Schütz, a artista e pesquisadora Regina Melim contextualizou a produção brasileira nos anos 1960 e 1970, destacando como características principais desta produção uma reavaliação da presença do objeto e a participação do espectador na obra. Ela identificou o corpo como elemento estrutural da obra; não como suporte, mas, citando Hélio Oiticica, como uma “total incorporação”, uma “completa aderência do corpo na obra e da obra no corpo”, prolongada ainda ao corpo do espectador. Não à toa, Oiticica denominou grande parte de seus procedimentos como “vivências”. Regina referenciou também o crítico Mário Pedrosa, que caracterizou as ações do final dos anos 60 e início dos anos 70 no Brasil como “experimentalidade livre”.
“O que está dentro fica, o que está fora se expande”
Regina colocou que para existir, para se apresentar, esta produção “teve que criar um circuito paralelo, uma série de estratégias, muitas vezes ficar de fora. Ficar de fora como foi o caso dos Parangolés, em 1965, na marquise do MAM do Rio de Janeiro; intervir quando o corpo era obra e surgir nu na multidão, frente a sua recusa no Salão Nacional de Arte, também no MAM do Rio de Janeiro, quando Antonio Manuel se apresenta como corpo-obra; ficar em meio às coisas da vida quando a arte não tinha mais lugar fixo e perambular como fez Artur Barrio durante quatro dias e quatro noites até a extenuação completa, como uma espécie de militante clandestino sem endereço; realizar ações fora do espaço circunscrito para a arte – que comumente se concebe como o museu e a galeria – lacrando com fita adesiva a porta de algumas galerias de São Paulo como fez o grupo 3Nós3 no final dos anos 70 e advertindo que ‘o que está dentro fica, o que está fora se expande’”.
Todavia, Regina ressaltou que “alguns museus tiveram uma atitude bastante interessante”. Ela fez uma pequena referência ao período em que Walter Zanini foi diretor do MAC-USP (“a proposição do museu como um núcleo experimental”) (4) e aos Domingos de criação nos jardins do MAM do Rio de Janeiro (“as obras migraram para fora”).
(1) Heinz Schütz utiliza a expressão “ação urbana” porque a considera mais precisa que “intervenção urbana” ou mesmo “ação no espaço público”.
(2) Acconci, Vito. Public space in private time. In: Schütz, Heinz e Acconci, Vito. Vito Acconci: Courtyard in the Wind. Hatje Cantz Publishers, 2003. Livre-tradução da autora. Para conhecer mais a obra de Vito Acconci, recomendo a obra Vito Acconci, de Kate Linker (Nova Iorque: Rizzoli, 1994).
(3) Para conhecer outros happenings de Kusama, acesse http://www.yayoi-kusama.jp/e/happening/index.html
(4) No ponto de partida da obra Poéticas do processo: arte conceitual no museu (São Paulo: Iluminuras, 1999), Cristina Freire lembra que “naquele momento o MAC-USP se configurava como um dos poucos locais onde os experimentos envolvendo, não raro, as imposturas em relação à noção instituída de arte eram aceitos. O espaço sagrado do museu foi mesmo tranformado em loteamento para acolher as criações individuais e coletivas. O júri foi eliminado e o tradicional prêmio foi transformado em verba de pesquisa”.