Por um Equilíbrio de Histórias, Beto Schwafaty
Relato agosto - ”Manobras curatoriais em acervos”, por Beto Shwafaty
No que consiste uma instituição artística, e como esta se forma? Quais seus papéis possíveis na atual e peculiar situação do sistema de arte nacional? Quais os desafios culturais, econômicos, estruturais e políticos que se colocam para o funcionamento das chamadas instituições de arte fora dos ‘eixos do sistema’ artístico nacional? Estas são algumas das questões que embasaram esta edição das oficinas Experiências Dialógicas, que contou com a participação de Bitu Casundé, curador e pesquisador de Recife e atual diretor do Museu Murillo La Greca. A participação programada da curadora espanhola Rosa Pera não ocorreu devido a problemas pessoais, fato que não prejudicou a oficina uma vez que a organização habilmente convidou outros profissionais à contribuírem com experiências relativas ao tema, formando uma multiplicidade de vozes que ampliaram as perspectivas sobre o campo abordado.
Acervo, arquivo e memória foram apresentados tanto como eixos das atividades quanto termos para informar reflexões sobre possíveis ações curatoriais em instituições que tangenciam os centros socioculturais nacionais. Estes termos também seriam considerados como elementos fundamentais na constituição de poéticas de alguns artistas brasileiros. As áreas de atuação dos participantes desta edição abrangia desde o jornalismo, a dança, a gestão cultural, a produção artística e curatorial até a pesquisa histórica e de arquivo numa variedade de formações que refletiam interesses tanto institucionais quanto independentes que alimentaram no decorrer da oficina diversos debates sobre os problemas tanto internos quanto externos ao funcionamento das instituições. A observação de certos descompassos institucionais que tocam questões estruturais, do campo trabalhista, da falta de investimento nos próprios acervos, uma endêmica descontinuidade de programas de pesquisa e aquisição e até a dificuldade em reconhecer certas práticas artísticas indicaram o tom das discussões que se seguiriam nos encontros.
Foi na observação sobre o difícil processo de reconhecimento institucional de certos projetos artísticos (baseadas majoritariamente em pesquisas que procuram lidar com as facetas históricas que constituem em parte os acervos) que pudemos constatar a dificuldade de valorização de certas práticas que funcionam em proximidade à uma noção de ‘serviço’[], ou seja, que geram pouco excedente material em favor de processos mirados em noções ligados à produção de conhecimento. E se pesarmos sobre o fato que os objetivos de uma mostra de arte não se encerram nela mesma, e que esta se configura como um campo sempre em expansão que gera documentos e situações em atualizações históricas, no tratamento de depoimentos e memórias constituintes e resultantes de um campo de pesquisa, o conceito de ‘acervo’ pode ser um elemento a ser considerado e valorizado sob outros parâmetros dentro do panorama atual. E valorização aqui significa dar condições de trabalho para expandir e adensar a produção de conhecimento relativa à diversidade do campo artístico, transformando o acervo em um eixo vivo dentro das instituições, através tanto de ações expositivas quanto de pesquisas e projetos de educação interligados.
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Bitu, no primeiro dia, apresenta alguns pontos sobre a formação dos espaços expositivos a partir do universo de trabalho do ateliê de artistas, visto sob a ótica do ‘arquivo’: uma possível sobreposição de funções em direção a uma noção de espaço de mostra como arquivo aberto. O texto Mal de Arquivo[] foi introduzido como elemento de apoio para pensar esta relação entre espaço-conceito, e neste contexto Bitu elenca algumas possibilidades iniciais de trabalho:
. partir de um arquivo como patrimônio e ‘coleção’ (p. ex. no caso de um artista falecido);
. com a participação do artista na concepção espacial e conceitual de apresentação (vertente de natureza projetual e instalativa);
. e por fim a possibilidade de ‘aquisição’ do ateliê/arquivo como obra (momento de institucionalização).
Como exemplos Bitu mencionou as práticas de Arthur Bispo do Rosário[], Paulo Bruscky[], Jose Rufino e Rosangela Rennó. Articular e organizar esses espaços de memória e suas materializações em sistemas taxonômicos mostra-se uma oportunidade tanto produtiva quanto curatorial para constituir novas narrativas que tencionem e reflitam certas lógicas existentes previamente nos acervos e coleções. As colocações sobre a necessidade de aprofundar trabalhos em acervos e com arquivos mostrou-se em certo sentido contrária a predominante e atual lógica de produção de exposições em grande parte das instituições públicas nacionais, tocando especificamente no formato dos salões. Surgido no século XIX, este modelo permanece ainda como lógica produtiva em grande parte do território nacional, porém o mesmo mostra-se complexo na medida em que não permite uma maior autonomia institucional na constituição de acervos ou o apoio à fundamentação de um programa mais sólido, mais longo e permanente no suporte à aquisições que estimulem e representem um dado contexto (seja ele local ou nacional), assunto que surgiria novamente na oficina.
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No segundo encontro, Bitu introduziu temas referentes à influência da taxonomia e de outros métodos científicos no campo artístico, em respeito à modos de classificação e organização. Neste processo, ele acentua que algumas práticas de arte apropriam-se de metodologias ao mesmo tempo em que procuram subverter certos paradigmas e ‘lógicas de cunho burocrático’ a fim de questionar a produção e valorização de objetos enquanto testemunhos históricos e culturais.
O arquivo como repositório de histórias e elementos que representam um dado contexto e recortes de mundo serviu como ponto de partida para observar mais atentamente as poéticas de Bispo do Rosário e Rosangela Rennó. Um projeto desta última, envolvendo retratistas tradicionais da região do Cariri que utilizam-se de uma técnica artesanal para realizar retratos pintados[] foi o foco principal desta etapa.
Após a fala de Bitu, Josué Mattos, curador independente de Florianópolis, trouxe suas experiências recentes com salões nacionais: em Itajaí, Ribeirão Preto entre outras mostras institucionais ainda em produção. Sua abordagem apontou que certas narrativas históricas se constituiem a partir de um contexto muito localizado, segundo certos contatos e interesses que muitas vezes omitem situações que poderiam ser consideradas similares, mas por situarem-se em regiões periféricas não são consideradas (seja por desconhecimento ou mesmo falta de comunicação ou interesse). Josué cita por exemplo a Estética Relacional de Nicolas Bourriaud (como um exemplo teórico localizado em torno de um restrito grupo de artistas) e ainda cita o caso da exposição When Attitude Becomes Form[] cujo papel como marco de influência na afirmação da arte conceitual na Europa é inegável, ao mesmo tempo que ‘omite’ por exemplo toda uma produção latino-americana do mesmo período que apresentava preocupações similares e talvez até mesmo mais contundentes e radicais em termos experimentais. Este constatação levanta um questionamento sobre um certo eurocentrismo na produção teórica e crítica das artes, dinâmica que determina em parte certos modelos de produção, racionalização e funcionamento do sistema artístico.
Nesta direção Josué constata que o modelo ‘salão nacional’ – como o vemos hoje em diversas partes do País, e cuja origem remonta à Missão Francesa e à consolidação da Academia de Belas Artes no Rio de Janeiro, ou seja, repetição de modelos externos – não supre as lacunas referentes à uma real representação e apoio à possíveis panoramas da produção de arte em nível nacional e mesmo regional. Tal modelo de ‘mapeamento nacional’ possui relevância quando realizado a partir de um centro específico, muito bem localizado e visível e em diálogo com outras esferas, não ficando reduzido apenas à dinâmicas de inscrições regionais. Nesse sentido as limitações econômicas inerentes a produção de jovens artista torna-se uma das barreiras para a criação deste espaço representativo, que pode ser superada através de um processo curatorial que também inclua outros artistas através de convites e pesquisas específicas a partir de um projeto curatorial prévio. Outro fator considerado foi a ‘lógica de evento’ que permeia estas produções culturais, cujos resultados almejados funcionam principalmente a curto prazo.
Seja na falta de programas mais sólidos ou através da repetição do modelo supracitado, o desafio museológico e curatorial que Josué apresentou foi o de pensar uma noção territorial mais ampla para a arte, relativa a idéia de desterritorialização[]: uma situação não geográfica mas sim relacional, que forma-se através de relações pessoais, afinidades de trabalho e produção.
Recusar a continuidade de certas situações ou modelos de funcionamento não significa para ele uma saída deste sistema, ou o endosso automático daquilo já estabelecido, mas sim trabalhar produtivamente para a alteração e atualização das situações de funcionamento, afastando-se de um “isolacionismo curatorial, permitindo um processo de pesquisa cultural que ao mesmo tempo auxilie tanto artistas quanto a formação de público, em desenvolvimentos artísticos que sejam também inclusivos socialmente”.
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O terceiro encontro foi programado como uma visita à fundação Projeto Leonilson. Para realizar o relato desta visita, foi convidada Neusa Mendes[], curadora e pesquisadora-docente da UFES, que trabalhou anteriormente com Leonilson.
Rua França Pinto nº. 375, Vila Mariana, São Paulo: este é o endereço marcado para o encontro, às 10 horas de uma fria manhã de inverno, quinta-feira, 5 de agosto. Neste endereço uma simpática casinha branca acolhe o Projeto Leonilson, importante artista plástico, nascido em Fortaleza em 1957 e que veio a falecer precocemente em 1993. Pois bem, foi lá que me reencontrei, de certa forma, com o Leó, (chamado assim pela irmã Nicinha), depois de aproximadamente quase 20 anos.
Subimos todos juntos por uma pequena escada que dava acesso à casa, recebidos carinhosamente pela equipe do projeto. Baseado no antigo ateliê de Leonilson, um novo corpo de saber se reconstituiu - o antigo atelier do artista ficava também a algumas quadras dali - aliás, este é o mesmo bairro que os Bezerra Dias, chegados de Fortaleza, se estabeleceram como comerciantes. Na sala principal da casa, há uma cristaleira disposta ao lado direito, próxima à janela, que exibe, em pequenas prateleiras de vidro, uma coleção de imagens miniaturizadas: modelos de aeronaves; personagens da Disney (Pato Donald e bonecos); coleções de carros; trens; navios; pássaros; bichinhos; globo terrestre em diferentes tamanhos; carrosséis; casinhas; cadeiras; santos, anjos e tantos outros objetos que se oferecem como uma mina de metáforas. Mas a minha percepção se encontra carregada de signos inscritos da obra do artista e encarnam imediatamente na minha memória, ao ponto de se tornarem visíveis e palpáveis; tais como estrelas, chuva, oceano, pontes, sol, faróis, pontos cardeais, bússola, radares, ampulhetas, torres, lua, moedas, coroas, coração, espadas, espinhos, explosão, vulcão, palavras, livros e números, inscrevem-se no espaço expográfico da residência, redimensionada para abarcar a sensibilidade e as obras do artista.
Na base da cristaleira estão os materiais que Leonilson empregava na feitura de suas obras; caixas de lápis de cor aquarelável Caran d’Ache, papéis, tintas guache, estojo de aquarelas, godês, nanquim, matriz de gravuras, uma variedade de pincéis, estojo de lápis, estilete, apontador, borracha, caixas fechadas e outras abertas contendo uma variedade de botões, novelos de linhas em diversas cores, agulhas, bordados inacabados em tecidos leves e transparentes outros dobrados e cuidadosamente organizados. Os embornais, contendo material de trabalho, eram sobrepostos, do maior ao menor, em cores e panos dessemelhantes potencializando a indiscutível marca do artista que levava-os consigo de um lugar para outro. Juntos, todos esses objetos, indissociavelmente, constituem uma prática e um saber.
A palheta de Leonilson ora é sóbria, de tons baixos, ora prima pelos fortes vermelhos, azuis, amarelos e pretos, outras vezes o branco domina toda a superfície onde há delicadas intervenções, quer seja em objetos, traços, pontos ou linhas. Mas é o traço que dá união entre os dois mundos tão dispares: o real e o simbólico, ambos da ordem do sensível e constituem um fundo sobre o qual o resto se constrói. Tudo ali é memória e história claramente definida: a paixão pelos temas tratados. Pois uma das características essenciais da obra de Leonilson é justamente esta paixão que se lançou à vida, a sua poética.
Nesta perspectiva, e na própria medida dessa expansão, cada objeto ali colocado funciona como entrada no qual todo conhecimento e informação é utilizado como forma de acessar o mundo que abrange determinado tema – ao tentar colocar todo o conhecimento dentro de um mesmo espaço – organizar, catalogar numa determinada ordem os diversos materiais, formas, tamanhos, cores e texturas, se estruturam como verbetes que se interligam, e dão conta de um tempo vivido. Leonilson se vale desses materiais simples, mas os complexifica ao extremo, extraindo deles a máxima interpretação. Repotencializa o imaginário por meio da arte, elo que ata e se justapõe ao artista. A cristaleira é, pois, uma pequena biblioteca - mimese - que engendra obra e corpo do artista.
Não é por acaso que há ali, a construção de dois tempos: passado e presente, memória e história. No jogo dessas possibilidades, diríamos que o tempo vai se tornado personagem e senhor dos relatos, remetendo-nos à sua vida: poesia, confissões, angústias, medos e alegrias. Leonilson dedicou parte dele catalogando, acondicionando, documentando, escrevendo e narrando o seu cotidiano em diários, cadernos e fitas gravadas. Nesse sentido, não se pode dúvidar que nessas redescobertas e reintroduções haja a apreensão de uma performance ausente-presente que nos possibilita adentrar no “interior” e nos revelar que a verdade se encontra em cada um de “Nós”.
Ao deixar-me arrebatar pelos encantamentos dos objetos expostos na cristaleira, depois de ter celebrado de maneira devida este “reencontro” com Leonilson, eu estava tão tomada pela emoção que nem havia me dado conta de que não havia cumprimentado ainda as pessoas responsáveis pelo projeto. Nicinha, a irmã do meio de Leonilson (como ela mesma diz), Gabriela Dias e Adrienne Firmo, ambas pesquisadoras, cuidam com competência, profissionalismo e generosidade deste patrimônio que permitirá a transmissão às gerações vindouras de um valoroso legado para a arte brasileira.
Ao relatar como a organização do Projeto Leonilson estruturou-se, Nicinha deu a conhecer “o irmão Leó”. O momento adquire com isso uma nova determinação temporal, tal passado pertence à continuidade do devir e a ele será acrescentado sempre o presente e o futuro. Pois a organização e armazenamento do acervo de Leonilson obedecem a rígidos critérios de conservação museológicas internacionais, mas sem esquecer que um “Bem Cultural” é uma fonte preciosa do saber, do fazer, e é através do entendimento sobre o modo pelos quais foram produzidas, com seus sistemas próprios, criando operações e categorias estéticas, que se afiguram como ponte de referência para o presente.
Conheci Leonilson em 1991, por ocasião da exposição denominada “Instalação Porto 91” da qual fui curadora. Essa mostra reuniu um elenco de 33 artistas dentre os capixabas; Hilal Sami Hilal, Orlando da Rosa Farya, César Cola e tantos outros. Havia também convidados nacionais como: Leda Catunda, Ligia Pape, Luiz Zerbini, Daniel Senise e José Leonilson. Na verdade esta exposição fazia parte de um encontro do Conselho de Reitores das Universidades Públicas, que um grupo de agentes culturais da UFES resolveu ampliar para um grande movimento cultural. Por uma provocação ao sistema organizacional do encontro, eu e a Professora de matemática Ana Lucia Junqueira propusemos não eximir a Universidade Federal do Espírito Santo de seu papel cultural, ou seja, aglutinar aqueles que praticam, manifestam e pensam as práticas culturais. Não pensamos duas vezes, levamos a exposição para fora do campus da UFES, num dos grandes armazéns do cais do porto da cidade de Vitória, no estado do Espírito Santo, que até a véspera da mostra encontrava-se abarrotado de toneladas de sacos de café. Era uma tentativa de abertura dos portos para dentro da cidade.
O registro desta exposição encontra-se devidamente documentado no Projeto Leonilson. Assim como cerca de 400 exposições, 100 eventos (mesas redondas, palestras, lançamentos de livros, lançamentos de filmes, leilões), três mil obras (3.000) catalogadas, condicionadas adequadamente; os desenhos em pastas de poliondas, confeccionadas manualmente segundo a sua dimensão, e dentro das pastas, acomodados separadamente por papel glassine e de PH neutro são guardadas em mapotecas, da mesma forma, pinturas encontram-se na mesma mesa projetada por Leonilson, na altura de uma prancheta de desenho, com várias divisões acomodadas nas prateleira abaixo, pois, o artista pintava com a tela tencionada na prancheta horizontalmente. O cuidado igual dado às obras de difícil classificação e também a biblioteca pessoal do artista.
É bem verdade que esse amálgama de objetos derivam de práticas e lógicas diferenciadas, tornando-se necessária a reflexão sobre o perfil museológico da coleção, mas exibidas para nós pela Nicinha com um orgulho imenso. Vê-se, portanto, que o Projeto Leonilson recorre a todos estes critérios, como fonte de impulso para as suas ações. Percebe-se que a primeira tarefa que se impõe é procurar determinar com precisão que o valor e o poder inerentes ao patrimônio familiar não se restringe unicamente a essa esfera.
Cumpre ressaltar que a obra exposta em Vitória na Intalação Porto 91, chama-se “Penélope”, e hoje pertence ao acervo da TATE MODERN em Londres, estando programada para voltar ao Brasil em 2011, para uma exposição sob a curadoria de Bitu Cassundé e Ricardo Resende, no Instituto Itaú Cultural em São Paulo.
As palavras aprendizagem, competência, articulação e compreensão são diretrizes para a família de Leonilson e para o crescimento da Instituição Projeto Leonilson. Ressalto a visão que tiveram, ao fundá-la. Família e amigos do Leó - a quem todos devemos tanto - mobilizam receptores no sentido de edificar valores culturais, requerendo antes de tudo para o projeto, acesso, informação e conhecimento no dever de preservá-lo, estudá-lo, ampliá-lo e exibí-lo, sob o signo do insubstituível. Razão pela qual nada se desenvolve fechado em si mesmo como se refere BAKHTIN no livro “Estético da Criação Verbal”, o autor escreve então, para concluir com suas palavras “mesmo os sentidos passados, aqueles que nasceram do diálogo com os séculos passados, nunca estão estabilizados (encerrados, acabados de uma vez por todas). Estarão sempre se renovando no desenrolar do diálogo subsequente,” com o presente e o futuro. [Grifo meu]. 1997:414.
Neusa Mendes, Inverno de 2010.
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O quarto encontro teve como convidada a curadora de Porto Alegre Gabriela Motta. Sua apresentação se inicia com um vídeo de Chimamanda Adiche[]. Nesta conferencia em forma de narração autobiográfica, a escritora trata de problemas referentes a manipulação de narrativas que criam uma única perspectiva sobre um dado contexto, gerando preconceitos, criação de estereótipos e a perda da dignidade daqueles representados sob tais narrativas engessadas sob um único olhar.
Gabriela apresentou então algumas experiências curatoriais ainda não realizadas ou em processo de produção (no CCSP e MAC Niterói), refletindo sobre os caminhos de transformação das coleções à acervos. Ela enfatizou as diversas etapas deste processo, que se dá através de situações de acumulação e organização transcorridas em um tempo específico (um tempo institucional talvez, ou relativo a própria coleção) pensando em estratégias para fornecer maior acessos a tais situações institucionais. Aqui as escolhas, recortes, construções e organizações de representações sobre o contexto e a coleção configura um processo de tensão entre exclusão e inclusão, que segundo ela configura-se como uma das condições básicas para uma curadoria e constituição de acervos.
Trabalhar institucionalmente com acervos e arquivos apresenta-se como um desafio que envolve sobreposições entre os papéis curatoriais e administrativos, situação comumente colocada ao trabalho do curador quando este fixa-se em uma instituição. Neste sentido Gabriela também frisa a diferença entre instituições públicas e privadas, onde em certos casos existe de um lado menor autonomia com maior campo de ação produtiva (em referência a recursos econômicos); e de outro lado temos o inverso. Torna-se difícil encontrar um equilíbrio entre estas duas realidades, uma vez que a situação também envolve negociações entre instâncias institucionais, ou seja, um ‘diálogo’ entre os departamentos de marketing, jurídico, financeiro e curatorial/direcional que ao final suportam e até mesmo influenciam no desenho das ações culturais. Tal descrição sobre os jogos de forças institucionais nos levaram a refletir sobre os envolvimentos existentes – porém nem sempre analisados ou apontados claramente – entre cultura, poder e política: uma análise que poderia abordar estas relações não apenas em níveis de representação das linhas de política cultural, mas acerca de seus funcionamentos internos que refletem-se em ações externas.
Foram levantadas ainda questões sobre o papel do colecionador e o lugar que este deve ou não ocupar no interior de instituições, uma vez que o mesmo pode representar tanto um apoiador fundamental à vida da instituição, quanto interesses institucionais alheios ao programa da mesma (quando este existe). Refletindo então como ocorre a formação de uma coleção de arte, a conversa recaiu sobre as diferenças institucionais, de suas naturezas públicas e privadas. A discussão tratou também das dinâmicas de escolhas objetivas e subjetivas que lidam com a formação de programas culturais embasados em pesquisas mais longas e transversais a partir de um determinado contexto, contrapodo-se aos problemas advindos da influência de certos interesses de mercado.
O reconhecimento de uma atual (e mesmo relativa) falta de autonomia institucional no campo leva a crer que as manobras necessárias hoje, para circundar e superar certas situações de impasse institucional ou de conflitos de interesses, passa por uma possível e talvez necessária alteração no regime de produção curatorial frente as noções de acervos e produção museológica. Talvez uma maior aproximação e contato entre o campo curatorial com algumas estratégias e lógicas artísticas permitiria que uma exposição se tornasse uma situação de investigação ao mesmo tempo sobre determinados mecanismos institucionais assim como campo de exploração e de experimentações em termos autorais, coletivos e culturais mais amplos. E é então nestas novas e possíveis relações entre curador e artista que parecem surgir campos férteis para a introdução e rearticulação de narrativas que almejem criar novas leituras e histórias, novas perspectivas sociais acerca do papel da arte, da função de seu sistema e suas influências em relação a outros campos sociais.
Bitu dá seqüência a oficina introduzindo imagens de documentação sobre a obra de Leonilson[]. As relações entre imagem e palavra em sua poética são entendidas como elementos agregadores e como um canal de contato com o público observador, numa relação quase ‘confessional’, ainda que codificada em símbolos e de forma sempre evocativa. Bitu apresenta uma série de trabalhos do início de carreira de Leonilson, proporcionando o contato com momentos da formação daquela poética de um modo muito direto, algo difícil de se conseguir em outras esferas expositivas ou mesmo em publicações sobre o artista. Este acesso possibilitou observar como Leonilson utilizava-se de suas coleções pessoais, fatos biográficos e elementos cotidianos em seus trabalhos, elementos que migravam do ‘mundo’ para o interior das obras, resignificando e sendo resignificados em novas estruturas simbólicas. E consequentemente, a partir destes testemunhos visuais pudemos observar aspectos mais amplos da cultura nacional e do contexto histórico que permeavam de forma evocativa certos trabalhos de Leonilson. Estes ‘documentos visuais’ produzidos pelo artista funcionavam como mapeamentos subjetivos de um cotidiano que quando acessados transfiguram-se em novos arquivos e espaços narrativos.
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O último encontro foi iniciado com a apresentação do trabalho de Miquel Garcia, artista espanhol em residência na Casa das Caldeiras, em São Paulo, e ainda pela apresentação de impressões e projetos por parte dos participantes.
Miquel apresentou um panorama de sua produção, na qual o artista procura desenvolver ações de recompilação de dados, experiências antropológicas e pesquisas territoriais em processos participativos e até relacionais. Ele cita o conceito de Post Production[] como uma importante influência, e define sua prática dentro de um campo da arte contextual ou de contexto específico[] que endereça questões relativas à arqueologia, pesquisa de campo, assuntos políticos, arquivos e mapeamentos. Muitos de seus projetos trabalham também questões ficcionais em relação a geração de documentos: em termos artísticos a encenação torna-se um instrumento para estabelecer narrativas críveis e situações questionadoras sem necessariamente lidar de forma direta com a realidade. A noção de docuficção[] torna-se então um elemento fundamental em algumas de suas propostas, assim como noções de negociação, tradução e exploração da linguagem visual e textual que culminam em construções situadas entre o material e imaterial.
Outro destaque foi a apresentação de Maíra Spanghero (pesquisadora e docente com formação em dança) sobre um grande conjunto de imagens referentes à partituras e notações coreográficas que constituem códigos e sistemas de linguagem visual para auxiliar o registro e remontagens de coreografias. Nestes ‘diagramas’ existe uma grande variedade de formas, complexidades e linguagens, normalmente ligadas mais ao autor/coreógrafo do que de fato à constituição de uma linguagem universal e notação coreográfica. Tais notações assemelhavam-se a diagramas complexos, e num sentido visual e plástico aproximavam-se das explorações gráficas do período da arte conceitual.
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A oficina contribuiu de forma abrangente para um panorama reflexivo sobre os processos formativos de acervos públicos no Brasil (fazendo em menor escala referências `as coleções privadas). Repensar os formatos de funcionamento institucionais, no que toca processos de aquisição, representação e constituição de visibilidade das diversas produções contemporâneas se mostra necessário, assim como construir outras direções de aquisição e suporte à produção que não somente àquelas ligadas às lógicas de ‘premiação’ dos salões: normalmente concedida por um ‘júri’ que nem sempre possui tempo habil e conhecimento sobre o referido acervo, gerando uma dinâmica de pouca contribuição para a formação de um programa ou acervo mais conciso. Uma reflexão sobre a função das instituições culturais não apenas como detentores ou protetores de um acervo já constituído, mas como atores ativos no incentivo à produção artística e de pesquisa permaneceu como horizonte a ser trabalhado. Estas alterações poderiam permitir desenhos culturais de maior profundidade, temporalidade e persistência nas linhas de pesquisa formadoras de políticas de aquisição que incidem e até definem grande parte da produção artística.
E se de um lado a falta de verbas públicas parece ser um impedimento para algumas destas ações, também a falta de uma outra articulação dos recursos existentes mostra-se um problema a ser contabilizado. Manobrar nesta situação de estreitas possibilidades – de forma produtiva e inovadora sem cair em formatos pré-estabelecidos – parece ser hoje o grande desafio para práticas curatoriais, fato que não se restringe somente às esferas chamadas ‘independentes ou alternativas’.
No texto de 1994 How to Provide an Artistc Service a artista Andrea Fraser apresenta uma reflexão referente ao reconhecimento e valorização – tanto em níveis econômicos quanto institucionais – de práticas imateriais, críticas e baseadas em pesquisa. Ver http://adaweb.walkerart.org/~dn/a/enfra/afraser1.html (acessado em 09/08/2010)
No texto/livro Mal de Arquivo, Jacques Derrida distingue o arquivo daquilo ao que foi reduzido: a experiência da memória, o arqueológico, a lembrança ou busca de algo esquecido. Os arquivos pressupõe organização, inscrições, marcas, impressões, assim como a decodificação destes e seu armazenamento, para preservação e futura comunicação. Então ‘arquivo’ também pressupõe um lugar de consignação - um local de reunião dos signos, uma lógica interna de repetição, organização, tradução e transmissão. Arquivo visto tanto como local quanto método mnemônico para acessar as diversas camadas e tempos de um dado contexto.
Também cito como exemplos interessantes da relação entre obra, estúdio e institucionalização de espaços de artistas as obra de Marcel Broodthaers Musée d’Art Moderne, Département des Aigles, a aquisição/realocação do estúdio de Francis Bacon para a galeria de arte da cidade de Dublin; e ainda o ateliê de Constatin Bracusi em Paris, ou ainda a construção do Pavilhão do Realismo, realizado por Gustav Coubert após a recusa de seus trabalhos pelo Salão de Paris em 1844.
Texto Colecionismo e Arte em Artur Bispo do Rosário. indicado por Bitu Cassundé.
Ver entrevista com a fotografa e retratista Telma Saraiva.
Mostra realizada por Harald Szeemann em Berna e Londres em 1969.
Uma possível leitura sobre a noção de desterritorialização no campo da arte encontra-se na teoria do filosofo franco-canadense Pierre Levy.
Neusa Mendes é Mestre em Comunicação e Semiótica, PUC (2003) Atualmente cursa Doutorado em Comunicação, no qual desenvolve a pesquisa “Procedimentos Curatoriais no Contexto da Comunicação”.
The danger of a single story, conferencia da da escritora nigeriana Chimamanda Adiche (vídeo-online acessado em 11/08/2010).
Para maiores detalhes, recomendo acessar o website do Projeto Leonilson.
Livro Post Production de Nicolas Bourriaud
Na arte de contexto especifico são os locais, informações e quadro temporal que informam como o trabalho de arte é fruido. Tais produções respondem normalmente a um espaço ou situação cultural particular. Se o contexto para a produção é alterada ou recontextualizada, a maneira na qual o trabalho é entendido também se altera, dialogando com o contexto.
Docuficção (termo que se confunde como docudrama) é um neologismo que designa uma obra cinematográfica híbrida e cujo gênero se situa entre a ficção e o documental.