Cognatos e Amigos: Gerardo Mosquera e Mariana Fix no CCE_SP
Relato da oficina organizada por Fórum Permanente e o Centro Cultural de Espanha-SP: Curadoria, geopolítica e deslocamentos.
Expositores: Gerardo Mosquera e Mariana Fix
Mediadores: Tatiana Ferraz e Gilberto Mariotti
Por Júlia Buenaventura
“Curadoria, geopolítica e deslocamentos”, organizado por Fórum Permanente e o Centro Cultural de Espanha em São Paulo, teve lugar no programa de Curadoria e Contexto, uma série de quatro oficinas realizadas durante o ano 2011, baseadas na proposta de gerar uma inter-relação entre especialistas convidados e um grupo de participantes selecionados pelas suas trajetórias nesse campo específico, curadoria, seja desde a prática ou desde a pesquisa. Nesta ocasião, os convidados foram Mariana Fix e Gerardo Mosquera, dois perfis diferentes, dois trabalhos em campos diversos que têm algumas relações em comum, que não são o mesmo mas também não são opostos.
Os convidados
Mariana Fix, brasileira, é arquiteta, Mestre em Sociologia e Doutora em Economia. Um dos eixos principais da sua pesquisa tem sido a relação da arquitetura-urbanismo com o capital financeiro: esse tipo de geração de riqueza que explodiu durante os anos 80 e cuja característica é a primazia dos juros sobre a produção. Uma característica capaz de criar a ficção da geração espontânea, tal como se por colocar no banco 100 milhões, e no final do ano, recolher 105, os 5 tivessem se autogerado e não fosse fruto de todo um processo, trabalhos, reorganizações e movimentos. Em suma, são os 5 e não os 100, aquilo que Mariana Fix estuda, tendo como lugar específico a cidade de São Paulo, seus luxos e suas favelas que, no final das contas, são faces da mesma moeda.
Gerardo Mosquera, cubano, é crítico de arte e curador, cuja longa trajetória vou expor através de três pontos que considero essenciais. Em 1984 criou a Bienal da Havana, a qual acompanhou até sua segunda edição em 1986, e que tinha por característica ser um evento destinado a expor aquilo que não tinha lugar em outros eventos de caráter internacional. Uma espécie de “Bienal des Refusés”, como chamou Mosquera.
Em 1992, junto com Carolina Ponce de León e Rachel Weiss, realizou a curadoria da exposição “Ante América” na Biblioteca Luís Ángel Arango de Bogotá, uma mostra que se revelou contra a ideia de uma “arte latino-americana”, e essa “linearidade e exotismo” que sua mesma separação supõe. Linearidade, pois só pode existir sob a ideia de uma Arte Universal cuja rota – de cubismo e surrealismo a minimalismo e pop – é evolutiva e, consequentemente, deverá ser seguida pelas artes regionais que sempre ficarão correndo para alcançá-la. Exotismo, desde o ponto em que não compartilhando o título, essas artes devem ter uma especificidade determinada, mas sempre gerada em relação à Arte Universal.
E em 2000, curou a exposição “Não é só o que você vê: pervertendo o minimalismo” (No es sólo lo que ves: pervirtiendo el minimalismo), organizada pelo Centro Cultural de Arte Reina Sofia de Madrid, e na qual foram reunidas propostas frente a esse movimento nova-iorquino elaboradas desde diferentes cantos do globo
Três pontos concretos na trajetória de Mosquera. O primeiro abrir um espaço alternativo, o segundo gerar uma resposta frente ao eixo e o terceiro interconectar produções artísticas que poucas vezes podem se encontrar, o que é, em suma, criar uma fissura frente ao centro, seja este, Paris, Londres ou Nova Iorque.
Explico um caso: para conhecer os cinéticos venezuelanos nos anos 50, um bogotano não tinha de ir até a vizinha Caracas, mas atravessar o Atlântico para chegar até Paris, pois era lá que eles estavam. Ou assim como contou o mesmo Mosquera quando falou que estando na África, muitas vezes tinha de voltar até a Europa para chegar a um país limítrofe, pois não existiam vôos que fizessem essa conexão. Mosquera afirmou “A globalização não é tão global quanto parece, todos somos cosmopolitas, mas o que há são eixos axiais e núcleos de poder”. Assim, em gerar uma descentralização, está sua perspectiva.
5 dias/20 horas: brevíssimo mapa cronológico
O primeiro dia, o seminário consistiu em uma breve apresentação dos integrantes da platéia e dos convidados, Mariana e Gerardo, para depois passar a uma intervenção deste último sobre o papel das bienais nas cidades contemporâneas. No segundo dia primou o tema de “mercado”, tanto da arte quanto imobiliário, segmento em que Fix explicou como se dão seus movimentos e interesses. No terceiro, Fix continuou com a temática em questão, abordou os “estilos” da arquitetura em voga e como os prédios se convertem em portfólios, parte do currículo de uma empresa; Mosquera, de sua parte, realizou uma intervenção referente ao fenômeno da multiplicação das bienais nas últimas duas décadas, mostras cujo número já está acima de 300.
No quarto dia aconteceu o evento aberto ao público geral (transmitido ao vivo por Fórum Permanente e cujo arquivo está no site). Nele, Fix contribuiu com um mapa de seus trabalhos recentes, alguns em teatro com comunidades carentes, e Mosquera, após apresentar pontos gerais frente ao panorama da arte contemporânea, fez uma intervenção sobre Cidade Múltipla (Ciudad Múltiple), evento em espaços públicos realizado por ele e Adrianne Santos na Cidade do Panamá em 2003.
A quinta noite, sexta-feira, consistiu nas apresentações das obras e trabalhos dos integrantes da oficina. Apresentações nas quais não posso entrar, de um lado, pela extensão do tempo; de outro, porque perderia o foco. Só direi que é costume deixar as apresentações dos participantes para o final dos eventos, quando poderiam ser distribuídas no transcurso dos dias, pois fazer 20 apresentações de projetos em sequencia, converte-as em um ato protocolar sem possibilidades de intercâmbio, de obter as opiniões dos outros que é parte fundamental deste tipo de evento.
Algumas das problemáticas tratadas
Juan Downey, 1976
Globalização. Mosquera proferiu sobre como, em 1976, Juan Downey tomou uma célebre foto: tratava-se de um indígena yanomami com uma câmera em suas mãos. Bem, falou Mosquera, conhecemos a imagem do índio, mas não aquela do artista que fora batida pelo indígena. O que gera um paradoxo de inclusão-exclusão, pois não será o indígena quem conta a história.
Neste mesmo sentido, e retornando sobre o já falado na introdução deste texto, Mosquera assinalou como os departamentos de arte latino-americana criados por Sotheby’s e Christie’s no final dos anos 70, não eram uma forma de inclusão, mas de marginalização. Claro, se a arte criada na América Latina tivera o mote de “universal”, não teria porque ficar num departamento à parte, espaço cuja diferenciação consiste no preço: máximo uns 10% daquelas obras que estejam na gaveta do lado.
Porém, a posição de Mosquera não está em condenar esses departamentos de “arte latino-americana” ou esse mercado: não está em realizar um juízo de valor ético-político assim como seria realizado na Guerra Fria, quando só existiam duas opções: ou você estava comigo ou você estava contra mim. A proposta de Gerardo é capaz de oscilar, tem um critério mas não um partido, tem uma decisão com respeito ao caso, mas não pretendendo incluir nela todos os casos possíveis. De fato, é um estar com você, e também contra você, necessário em um período como ele mesmo chamou: “pós-Guerra Fria e pré-chino-cêntrico”, onde a possibilidade de realizar um juízo geral não gera frutos.
Critério. Mosquera enfrentou a problemática de como estabelecer um critério frente a 300 bienais e milhares de artistas. De uma parte, carecer de uma generalidade supõe o problema do como realizar uma seleção, pois cada seleção deverá criar seu próprio critério. De outra, em um mundo com semelhante quantidade de informações, jamais um curador daria conta de todas as propostas existentes.
Assim, é preciso compreender, assinalou Mosquera, que sempre terá ficado algo de fora, e que muitas vezes é preciso “curar com os ouvidos e não com os olhos”, para conseguir ter notícia de um espectro tão amplo quando seja possível. Amplo, mas não diluído, isto é, que não fique tudo de fora e que aquilo que esteja dentro, na seleção, tenha uma alguma conexão possível: um elemento compartilhado.
No relato da experiencia Cidade Múltipla em Panamá, Mosquera contou como foi realizada a seleção dos artistas. Lá, de um lado, estava a temática do espaço público, o que levou escolher artistas pela sua capacidade de gerar propostas nesse lugar específico; de outro lado, estava a trajetória dos selecionados, na sua capacidade de assumir riscos. O trabalho dessa mostra, consistiu em sair a cidade e trabalhar com as pessoas, com o panorama quotidiano da gente, como Gerardo indicou, foram convidados “artistas que pudessem responder ao projeto, e que pudessem trazer uma experiência, necessidade artística, educativa, que dialogassem”.
Gustavo Artigas Intervention, Museum of History Panama City, 2003
Das obras apresentadas por Mosquera de Cidade Multipla, vale lembrar falso incêndio do Museu de Historia da Cidade de Panamá feito pelo artista mexicano Gustavo Artigas, pois o sonho de todo historiador é ver uma história em chamas.
Achei forte e corajoso o trabalho de Brooke Alfaro, artista panamenho, que conseguiu um encontro de rivais, chefes de tráfico em favelas, através do rap. E, como sempre, foi apaixonante ver o trabalho de Cildo Meireles, que consistiu na proposta de atravessar o Canal de Panamá com um barco diminuto ativado com controle remoto. No entanto, esta obra foi impedida de ser realizada, mesmo depois de ter sido anteriormente liberada pelas autoridades competentes. Nas palavras de Mosquera: “A negação aconteceu tarde, antes disseram que sim. Mas depois [os envolvidos no projeto] pensaram no ocorrido como símbolo de impossibilidade”.
Cildo Meireles Panamini, 2003
Capital Financeiro e Arquitetura. Mariana Fix entrou em uma temática, assinalada no começo deste texto, abordando como a arquitetura produto do capital financeiro tem uma característica peculiar, desde o ponto em que é construída para gerar riqueza, não prédios. O que supõe um distanciamento com respeito à finalidade, que leva a uma desintegração da especificidade do produto. Estes prédios construídos em São Paulo, bem poderiam ser instalados em Kansas City, Medellín ou Cairo, pois, parecendo específicos, são gerais.
“Uma mundialização financeira”, como Mariana assinalou. “Há uma nuvem de capital financeiro que precisa de núcleos para se infiltrar na cidade. Com fundos públicos e locais, com o menor risco possível, se constroem esses lugares. Esse capital financeiro exige essas bases hospedeiras locais, esses núcleos de infiltração”.
Aqui vale notar que em um ponto da intervenção foi realizada uma pergunta sobre o estilo assumido por este tipo de arquitetura “financeira”. Questão que Mariana respondeu com duas possibilidades: “High Tech” ou “Neoclássico”, uma catalogação reveladora: claro!, se o objetivo não está em levantar o prédio, mas na geração de capital, o “estilo”, a forma exterior vira uma patina irrelevante na estrutura, mas, paradoxalmente, no único relevante na possibilidade de encontrar clientes. Todas estas construções são iguais, pelo que se esmeram em aparentar diferenciação , isto é: “distinção.”
E esta característica notória nesse campo, já é o denominador comum de outros tipos de geração de riqueza, entre eles, o campo da arte.
Luxo e despejo. Um dos temas tratados por Mariana foi a construção da Ponte Estaiada em São Paulo, que, inaugurada em maio de 2008, teve um tipo de processo interessante para tratar problemáticas como: capital financeiro e arquitetura contemporânea, e limite entre o público e o privado.
Fix começou pelo despejo, pois a ponte supôs a saída de famílias de baixa renda que moravam nas favelas. Daí, retomou várias histórias do rio Pinheiros, cujas margens durante o século XIX foram lugar de cortiços, assentamentos, decretos e expulsões. Basta lembrar, falou Mariana, que uma das grandes enchentes do rio, a de 1929, foi arranjada, realizada de propósito mesmo, para retirar de forma definitiva os moradores.
Dessa forma, Mariana afirmou: “A ilegalidade em relação à vida nas cidades é a regra nas cidades brasileiras e, portanto, o despejo não é eventual e sim rotineiro. E a espoliação urbana: característica da América Latina.”
Mariana mostrou como a ponte, antes de ponte, é um cartão postal da cidade, imagem-marca que levará o investimento para esse lado do mapa, apontando que se trata de um cartão que mostra uma só parte: o esplendor e não expropriação das pessoas, para logo expor os vínculos entre a construção da obra e Cidade Jardim. Um condomínio fechado de alto luxo com um shopping cuja publicidade propunha aos futuros compradores ter “a perspectiva de vida que a cidade nos roubou”.
Feos clandestinos na frente da Ponte Estaiada
A esta altura, Mosquera comentou como muitas bienais eram Pontes Estaiadas, logotipos da cidade encarregados de fazer ela conhecida ante o mundo, sem entrar de forma nenhuma à cidade nela mesma.
Ranking e Critério. Fix contou a anedota segundo a qual o prefeito de Singapura, interessado em fazer da sua cidade uma metrópole cosmopolita, mandou procurar um autor instruído para obter as instruções pertinentes. Algo como comprar uma receita para preparar um bom bolo, mas o prefeito teve uma surpresa, pois a receita ainda não estava pronta.
Em resumo, o objetivo então não seria modernizar a cidade, mas mostrá-la moderna, um tipo de pantomima muito comum nas sociedades atuais. E é o Ranking, o não o critério, quem da uma última palavra sobre se o trabalho ficou bem ou mal feito: Singapura ou Constantinopla está ou não está entre as vinte cidades mais qualquer coisa do mundo.
Comentário
Após 20 horas, cinco dias de exposições, os participantes compreendemos os temas e as questões dos palestrantes, suas pesquisas e pontos de vista, mas é possível afirmar que não aconteceu uma relação entre as propostas. Os relatos de Mosquera e Mariana compartilham generalidades, mas um diálogo nunca é geral, assim, faltou chegar a um ponto comum capaz de inflamar a conversa. Uma temática particular sobre a qual pudesse existir um intercâmbio de perspectivas.
De fato, os convidados da mesa pareciam cada um estar falando numa língua distinta. O que é um afirmação verdadeira: Mosquera falava em espanhol e Mariana em português, sem mediação de um intérprete, e assim é bem trabalhoso o estabelecimento do diálogo, pois sempre é preciso definir o código.
O espanhol e o português misturados são uma espécie de bomba, onde os chamados “falsos amigos” em espanhol, e “falsos cognatos” em português abundam, e a atenção se perde chegando a se esgotar no exercício de pular de um para o outro idioma, ainda mais porque a fronteira muda: as vezes é forte, as vezes sutil.
Mas não só eram as línguas as diferentes, também os temas tratados. Temáticas que, parecendo um mesmo assunto, eram distintas, ou melhor ainda: paralelas. É possível afirmar que os temas de Mosquera e de Fix, foram os verdadeiros “falsos amigos” ou “falsos cognatos” da mesa. Tanto Mosquera quanto Fix falaram de cidade, isso está claro, mas desde objetos distintos.
Mosquera tratou como a cidade e seu processo enlouquecido de crescimento durante o século XX, criou uma espécie de desastre com vida própria, um lixo reverberando que consegue se manter de uma forma surpreendente, gerando um fermento, que tem alimentado boa parte das propostas em arte contemporânea. Para daí abordar como as Bienais --cenários dessa mesma arte-- são impolutas, pulcras, não se misturam com esse lixo da cidade.
Limpas, as bienais chegam e saem do panorama citadino de dois em dois anos, sem alterar uma vírgula, e então o problema está já não só na sua relação com as cidades, mas com essa arte que dão a conhecer. E essa fratura é desoladora, porque a arte cheia de vida fica exposta, no que eu vou chamar, de refrigeradores frost-free, os quais se encarregam de conservar o produto, mas estático e detido, sem reverberação nenhuma. A proposta de Mosquera é quebrar o estático para fazer uma bienal que consiga se misturar, dai o projeto Cidade Múltipla.
O tema de Mariana, pela sua parte, é também a cidade, especificamente São Paulo, vista desde o processo de urbanização que vai dos cortiços de final do século XIX até a Ponte Estaiada do começo do XXI, isto é: a relação entre a configuração urbana e seus habitantes abordada desde a problemática do capital obtido da produção (fordismo) até o capital obtido do capital (financeiro), reparando em como nesse processo a classe trabalhadora têm sido, e continua sendo, expropriada de seus terrenos, em função da constante desvalorização e revalorização das zonas urbanas. O que não acontece espontaneamente, mas que tem todo um aparelho, escolhendo e planejando mais do que a cidade o lucro: a arte da renda, para usar palavras de David Harvey.
O tema de Fix e o tema de Mosquera não tem contato. São paralelos, estão perto, têm afinidades, mas não cruzam os caminhos. Resumo, de um lado, temos a relação entre as bienais com as cidades em crescimento; e, de outro, a relação do crescimento das cidades com os fluxos de capital. Isso é como um jogo de palavras, onde com peças semelhantes chegamos a conteúdos diferentes.
Não entanto, sendo temáticas paralelas poderíamos pegar um lado do trilho e puxa-lo até chegar no outro, assim como fez Mosquera quando comparou o fenômeno das bienais com o fenômeno Ponte Estaiada, mas além disso não percebi outros cruzamentos fundamentais.
E aqui vou me permitir especular sobre o porquê isso não aconteceu.
A quase inexistência de bienais que tenham uma verdadeira relação com a cidade é tomada por Mosquera desde uma posição flexível, sem dogmatismo nenhum. A saída não estaria em condenar as bienais ou as instituições encarregadas de apresentar a arte contemporânea, mas renová-las numa luta constante, examinando caso por caso, e assim entrar no sistema. “É preciso certa astúcia para usar certos canais, é preciso infiltrações”, afirmou Mosquera.
De fato, Mosquera tem aberto portas num dos espaços mais dogmáticos de todos os espaços possíveis: o comunista. Criou a Bienal da Havana em 1984, antes da Queda do Muro de Berlim, isto é, criou um lugar para uma arte que não era uma loa à Revolução, e para conseguir realizar essa tarefa é preciso astucia, saber se opor ao sistema, não completamente, mas se infiltrando. O dogmatismo comunista é severo, basta ler Pedro Juan Gutiérrez, que por vezes, na metade de um relato respira, e anuncia para o leitor que é melhor não falar sobre o que não se fala.
Lembro um dia que chegou um amigo cubano da minha irmã em casa, Bogotá, 1994, um sábado às 11 da noite. Minha irmã estava em Moscou, e ele disse que estava no aeroporto e que tinha conseguido sair de um grupo de esportistas. Para confirmar que era, sim, um amigo da minha irmã, perguntamos detalhes sobre ela, e depois dele não acertar nenhum, deixamos entrar em casa. Porém, o que lembro é do dia seguinte, quando chegamos ao supermercado para comprar um lombo e umas batatas. Lembro quando ele entrou naquele ambiente, ficou surpreso, olhando, perguntou porque tínhamos comida, e depois de uns dois minutos paralisado, continuou conosco como se conhecesse o assunto. Quando você vem de Cuba, o capitalismo não é esse inimigo que pode ser para alguns de nós que vivemos nele desde sempre.
Mosquera vem de Cuba, e acho que é impossível ser dogmático depois de viver no socialismo. A proposta dele, porém, não é se render ao capitalismo, não é que o capitalismo seja ótimo: está o supermercado, mas também a fome e a miséria ao lado, na sua porta. Contudo, é claro que um poder único e central próprio do comunismo é uma sem-saída. A proposta de Gerardo é se infiltrar, entrar no sistema, levar o fermento para as bienais, trabalhar com seus dinheiros, seus fundos, com suas finanças. Em resumo: um jogo com o capitalismo e com seu capital financeiro, o que, vale mencionar, tem bastante em comum com Félix Gonzalez-Torres.
A posição de Mariana, de outra parte, no seu estudo sobre cidade e capital financeiro e seu trabalho com as comunidades carentes, leva em si mesma um juízo geral e anterior à pesquisa, um juízo frente ao capitalismo, sua forma de acumulação e sua aparente auto-geração de riqueza, e falo aparente porque nenhuma riqueza se faz por si mesma; todo "capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés", para lembrar Marx.
E esse juízo é sem dúvida correto, uma verdade conhecida, então é preciso entrar nele para ver as saídas. Na parte última do Manifesto Comunista, Marx faz uma catalogação dos tipos de “socialismo reacionário”: o feudal, o burguês e o “verdadeiro”, linhas cujo humor é comparável a Cervantes. No “socialismo burguês”, muito em voga em nossos dias, cabem: “...economistas, filantropos, humanitários, melhoradores da situação das classes trabalhadoras, organizadores da caridade, protetores dos animais, fundadores de ligas anti-alcoólicas, reformadores ocasionais dos mais variados”.
Porém, não é ai que eu localizo o discurso de Mariana, seu discurso pertence mais a série do “comunismo crítico utópico”, onde cabem aqueles que “Estão decerto conscientes de defender nos seus planos principalmente o interesse da classe trabalhadora como a classe mais sofredora. Só deste ponto de vista de a classe mais sofredora o proletariado existe para eles”.
Eu percebo uma concepção da “classe trabalhadora” como uma vítima do capital financeiro, e não uma personalidade própria do caso específico, de pessoas particulares. Percebo um juízo antes do caso, um juízo geral que condena o capital financeiro, e que dá numa rua sem saída, pois já sabemos o sabido: os poderosos roubam os fracos. O problema está em permear os primeiros, não aos segundos. O outro, é que essa tarefa deve ser feita num panorama, como sempre, obscuro, pois já não existe a catalogação “classes sociais”. A desigualdade na distribuição de riqueza é abissal, mas os grupos se perderam, agora, quase cem anos da revolução de Outubro.
Em resumo, além das línguas e dos temas, a diferença esteve nos pontos de vista. Formas de conceber os problemas, uma particular a outra geral. O Capitalismo que rege nosso momento, o financeiro, aquele que finge flutuar no espaço sem ter relações com a gravitação do planeta, está acabando com o mundo. E tem de ser furado, mas isso não acontecerá criticando ele desde fora; a única estratégia é o Cavalo de Troia, uma estratégia que Félix Gonzalez-Torres emprega com a agudeza de um Cervantes e a perfeição de um relojeiro, mas essa já é outra história.
Ficha dos assistentes Convidados: Mariana Fix e Gerardo Mosquera Mediação: Tatiana Ferraz e Gilberto Mariotti Adriana Gianvecchio, Ana Luiza Bringuente, Daniel Jose Barclay Panizo, Eladia Martin, Fábio Tremonte, Keila Kern, Leonardo Pereira La Selva, Lilian Shimohirao, Lívia Burani, Rafaela Tasca, Tete Tavares, Xenia Salvetti, Lucas Jara Soares, Mauricio Topal, Daniela Labra, Marcio Harum. Participação de curadores das instituições de arte de São Paulo: Zé Augusto Ribeiro (Centro Cultural São Paulo), Priscila Arantes (Paço das Artes), Chico Davina (Videobrasil), Julia Buenaventura (Instituto Tomie Ohtake), Taísa Palhares e Regina Teixeira de Barros (Pinacoteca do Estado de São Paulo), Cauê Alves (MAM-SP). |
Vale lembrar que em 2003, Mosquera curou no MAM-SP a mostra Panorama da Arte do Brasil que é realizada desde 1969. Nessa ocasião propôs introduzir dois artista estrangeiros, novamente para questionar a noção de “arte nacional”. Em 2010, esta posição foi levada ao limite por Adriano Pedrosa, que organizou o “panorama nacional” sem artistas nacionais.
Isto me lembra o bogotano Francisco Álvarez de Velasco y Zorrilla que, em 1698, leu os textos da mexicana soror Juana Inés da Cruz, e desesperado de amor, vendeu tudo o que tinha para ir à Espanha, único caminho possível para chegar ao México de seus dias. Foi somente quando chegou à Madrid que soube que soror Juana tinha morrido fazia anos. México e Colômbia, então chamadas de Nova Espanha e Nova Granada, estavam sob o mando de um único e mesmo rei, o de Espanha, o que longe de significar união significava divisão. Divide e vencerás diz o provérbio. Hoje a perspectiva não é tão diferente, um colombiano só pode ter um bom grau de certeza do visto para entrar no México, quando tem o visto de USA, que representa o centro de nossos dias, ainda seja um centro no ocaso.
Essa tentativa de fazer entrevistas, mesas e todo tipo de interlocuções um em espanhol e o outro em português já tenho visto em várias ocasiões, Videobrasil e na Bienal do Mercosul, por exemplo. E tenho comprovado que as pessoas que não dominam uma ou outra língua ficam perplexamente fora, porque esse fora não é total. Acho interessante a tentativa de nos unir, mas acho que não é um caminho certeiro, quando eu --que sou nascida na Colômbia-- estou com alguém que sabe falar espanhol, ou falamos em espanhol ou em português, mas cada um não fala sua própria língua.
De fato, entre O Capital de Marx e O Quixote de Cervantes, teríamos um único e mesmo tema: o teatro da sociedade humana, o primeiro sobre o vazio dos títulos nobiliários, o segundo sobre o vazio do dinheiro. Dois estudos dos códigos sociais. E, além do mais, ambos, Marx e Cervantes, têm bastante semelhança no tom: suas piadas não erram no objetivo de despertar a gargalhada de qualquer leitor desocupado.