Relato do debate final
O debate final do Workshop “A Virada Global da Arte Contemporânea nas Coleções Brasileiras” consistiu de uma rodada aberta em que os participantes fizeram suas últimas colocações. Alguns retomaram temas que se destacaram durante as duas intensas jornadas, outros levantaram novas questões ou deram suas impressões gerais sobre o evento. A primeira – e mais extensa - parte do relato que se segue apresenta uma síntese do que foi levantado nessa ocasião – síntese parcial e subjetiva, como não poderia deixar de ser. Já a segunda parte do texto aborda um tema fundamental que apareceu em diversas outras mesas do workshop e foi ao menos enunciado no debate final, em forma de questão, embora não tenha havido tempo hábil para respondê-la. Trata-se da relação entre antropologia e história da arte.
Comecemos pela síntese das falas de encerramento. Hans Belting revelou que o simpósio superou todas as suas expectativas. “Aprendi muito mais sobre o Brasil do que em toda a minha vida. Volto com muitas idéias para pensar, sobretudo sobre a situação atual da arte, onde todos estão no mesmo solo, mas submetidos a diversos sistemas de agenciamento. E admito que terei que repensar meu projeto” (referia-se ao projeto Arte Global e Museu – GAM, que discute o impacto da globalização da arte nas instituições artísticas, na crítica e no mercado de arte).
Um dos elementos que mais o impressionaram em sua estadia paulista, segundo o próprio Hans Belting, foi nosso ímpeto em tornar a arte brasileira conhecida no resto do mundo. “Na Alemanha, Hitler era um nacionalista no terreno da arte e o slogan da União Européia é freie Kunst (arte livre)”. Ou seja, é difícil – e interessante - para quem cresceu na Alemanha pós-Guerra compreender a importância da categoria nacional no pensamento artístico-cultural brasileiro.
Belting anunciou também que, em 2011 ou 2012, está sendo planejada uma exposição “que seja diferente das outras, na qual os artistas não estejam sozinhos, em que o mercado de arte, a arquitetura do museu e as próprias obras estejam presentes”. E lançou o convite: “Estamos procurando parceiros para essa exposição, não queremos fazê-la sozinhos!”
Elegantemente, no entanto, deixou subentendido que gostaria de ter ouvido mais considerações dos colegas brasileiros sobre o projeto atual desenvolvido no Zentrum für Kunst und Medienwissenschaft (Centro para a ciência da arte e da mídia, numa tradução ao pé da letra), e isso acabou ficando em último plano nos debates.
O sociólogo Laymert Garcia dos Santos, diga-se de passagem, ao tomar a palavra, mais adiante, seria o único a tentar justificar tal lacuna: “Não reagimos diretamente ao projeto de vocês que foi apresentado no início, mas ele estava ressoando nas entrelinhas”.
Logo depois de Belting, Andréa Buddensieg, que dirige o projeto GAM, no Centro de Arte e Mídia de Karlsruhe, no Sul da Alemanha, comentou que, se por um lado realmente não existe uma identificação direta dos artistas alemães com a Alemanha enquanto nação, por outro lado “existe, sim, uma estratégia de internacionalização da arte alemã, que não é nada ingênua. As galerias alemãs estão cada vez mais presentes em Londres, por exemplo”. Andréa deixou, nas entrelinhas, uma provocação interessante: Será que olhamos muito para nosso próprio umbigo? Será que nossas raízes brasileiras podem se tornar amarras, diante do contexto global?
Andréa comunicou ainda que pretende publicar os quatro workshops – o de São Paulo, inaugural, e os posteriores - em inglês e que serão oferecidas 14 bolsas de curta-duração no âmbito do projeto GAM. Em relação à exposição mencionada por Belting, complementou que haverá vários módulos, para parceiros de diferentes tamanhos. Disse desejar manter contato com todos que participaram do workshop, mencionando a possibilidade de publicação mensal de artigos no web site do projeto. Andrea fechou sua fala com um elogio: “achei a discussão muito viva no Brasil! Na Alemanha nunca aconteceria assim”.
Vale a pena abrir um parêntese para citar uma declaração de Célio Torino, atual Secretário de Programas e Projetos Culturais do Ministério da Cultura que, em recente palestra na UNICAMP, comentou que: “temos algo que é o contrário do caso europeu, em que as instituições oficiais funcionam bem por fora, mas pode faltar vida e efervescência por dentro”. Observação perspicaz, que, aparentemente, encontra ressonância em observadores oriundos dos dois lados do Atlântico. Como se o Brasil ganhasse em plasticidade, efervescência e informalidade o que perde em estrutura institucional, funcionalidade e tradição. Feche-se o parêntese.
Martin Grossman, em seguida, resgatou as origens do Fórum Permanente: Museus de Arte entre o Público e o Privado, lançado em outubro de 2003, com a missão de propiciar o encontro e o diálogo entre criadores, estudiosos, gestores e interessados em artes, museus e áreas afins, para fomentar a reflexão em torno do papel dos museus em tempos de espetacularização e virtualização da cultura. Nesse sentido, o workshop com Hans Belting veio totalmente ao encontro dos objetivos do Fórum Permanente. E, embora sem a participação presencial de um público maior, “permitiu uma intimidade e uma intensidade de troca de idéias e experiências raramente atingidas, tanto no dia-a-dia operacional e na prática institucional, como nos seminários para grandes públicos”. O diretor do Centro Cultural São Paulo e coordenador do Fórum Permanente contou também que o modelo do workshop foi uma verdadeira negociação. “Hans e Andrea haviam sugerido alguns temas, inicialmente, que não foram seguidos à risca; aguardaram-se os títulos das contribuições dos participantes, para só então definir os temas”.
Por fim, Martin indagou a Hans porque a cidade de São Paulo havia sido escolhida para sediar o primeiro workshop do GAM, ao que Hans Belting respondeu: “somos Outros uns para os outros porque temos uma história em comum. O Brasil e a Alemanha compartilham a mesma história e, ao mesmo tempo, não têm a mesma história. O Brasil tem uma arte moderna, embora não seja a mesma que a Alemanha - é tardia e assume outra significação. Se pegássemos o caso dos africanos, nem tiveram a modernidade, foram lançados diretamente na pós-modernidade. Nosso objetivo era pensar como a globalização é compreendida em um país importante como o Brasil, como as pessoas reagem à globalização”. Em outras palavras, o Brasil urbano e atual parece representar, para o europeu, uma forma de alteridade moderada, em que o diálogo é possível e pode ser fértil, não uma alteridade tão radical a ponto de inviabilizar correspondências e analogias.
Na seqüência, vieram intervenções, de diferentes participantes, que diziam respeito às lutas de poder e brigas por espaço no campo das artes. Beatriz Carneiro perguntou “em que medida as instituições potencializam os efeitos libertadores da arte e em que medida acabam produzindo formas de controle”? Sua questão foi respondida, primeiramente, por Marcelo Araújo, diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo, ao contar sobre os bastidores da exposição temporária de Rubens Mano, então em cartaz, no espaço “Octógono”, que a Pinacoteca dedica à arte contemporânea. “O projeto colocou enormes desafios, porque exigiu a construção de uma ponte, que suscitou preocupações sobre acessibilidade, faixa etária adequada etc. Isso mostra que o poder do artista de interferir na obra cessa quando a obra está na instituição. Por outro lado, a Pinacoteca se compromete a registrar as intenções do artista, até por problemas de conservação. A documentação minuciosa das intenções e procedimentos é uma estratégia para tentar prevenir a perda de potência das obras”. No entanto, parece inevitável que sempre haja algum grau de negociação entre os artistas, as instituições, os patrocinadores, os poderes públicos e os demais envolvidos na viabilização dos projetos culturais. Talvez o mais importante seja garantir a transparência do processo e deixar claros os limites e a natureza da ação de cada parte.
Um segundo exemplo de conflito entre artista e museu, ou entre potência da obra e colecionismo foi fornecido por Felipe Chaimovich, que remeteu à tensão em curso entre o artista plástico Ricardo Basbaum e o Museu de Arte Moderna - MAM. Segundo o participante do workshop, Ricardo quer usar o circuito interno de filmagem em seu trabalho, contudo isso gera problemas de segurança, segundo a direção do museu. “No momento, estão negociando, lidando com os limites, até o momento em que a instituição se modifique ou então o artista ache que esta instituição não é capaz de abrigar sua obra”.
A crítica de arte Taísa Helena Palhares chamou a atenção para um outro problema: “nunca haverá espaço para todos, na era da globalização. Há artistas muito angustiados com essa situação. Existem bons nomes que estão produzindo por aí, mas não estão no mercado global. Na Barra Funda, está acontecendo uma exposição conjunta de três artistas, que é uma das coisas mais interessantes do momento em São Paulo. Porém, isso não aparece, enquanto a Renata Lucas, dessa mesma geração, foi para o mercado global”.
De fato, não apenas o capital cultural é distribuído de maneira desigual dentro do campo das artes, como bem mostrou Pierre Bourdieu – e, portanto, alguns artistas detêm mais diplomas, experiências e contatos sociais do que outros, elementos que fazem diferença na hora de lutar por ascensão e visibilidade – como talvez a cena atual esteja, de fato, mais saturada e competitiva com a internacionalização crescente.
O conceito de globalização, diga-se de passagem, não foi problematizado ou definido no âmbito desse workshop. Mas ele traz no seu bojo contradições que convém lembrar. O sociólogo britânico Anthony Giddens foi um dos pioneiros em alertar que “a intensificação das relações sociais em escala mundial, que liga localidades distantes de tal maneira, que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorridos a muitas milhas de distância. (...) envolve grandes desequilíbrios” (As Conseqüências da Modernidade. Editora da Unesp, São Paulo, 1991, p.79).
Embora não seja mais possível aceitar modelos simplistas do tipo “cultura dominante versus culturas dominadas”, ou “centro versus periferia”, nos quais se pressupõe que a hegemonia tenha um fluxo de mão única e não haja resistência, nem reelaborações locais da cultura de massa global, também não é possível ignorar ingenuamente as relações de poder que perpassam as trocas culturais contemporâneas. Por trás dos fluxos, contra-fluxos, hibridismos e creolizações em curso, existem agentes com muito mais voz, recursos mais abundantes e maior poder de barganha do que outros.
A utopia da aldeia artística global não pode nos cegar para o fato de que a produção de determinadas regiões do globo ainda têm que fazer muito mais força que outras para conseguir se viabilizar, circular e se legitimar.
O último ponto que gostaria de abordar nesse relato, embora tenha sido mencionado apenas de passagem no debate final, é a relação entre história da arte e antropologia, pois esta é uma das contribuições mais interessantes de Hans Belting. No livro O Fim da História da Arte (Cosac Naify, 2006), publicado originalmente em 1995, o autor fazia uma autocrítica disciplinar e um exercício de humildade cultural: “a assim chamada história da arte é uma invenção de utilização restrita e para uma idéia restrita de arte. (...) Numa cultura tribal – sim, ouso dizê-lo – não existe arte, mas não porque ali as imagens não tenham forma artística. Elas apenas não surgiram com a intenção de ser arte, mas serviram à religião ou a rituais sociais, o que talvez é mais significativo do que fazer arte em nosso sentido.” (p.101). Mais adiante, complementava: “a cultura ocidental, que se julgou demasiadamente capaz de representar todas as culturas étnicas, na medida em que as pesquisava e reunia, anuncia hoje o futuro de uma cultura universal da qual ela naturalmente reivindica a condução” (p. 104). Estava delineado, ali, seu interesse por criações de todas as tradições e regiões, rompendo com cânones e classificações etnocêntricas.
Hoje, ao se lançar em projetos como o GAM, Hans Belting continua na mesma linha de raciocínio. Em textos como “Contemporary Art and the Museum in the Global Age”, disponível on-line no Fórum Permanente, sustenta que, no modernismo, teria existido uma espécie de barreira protegendo a arte ocidental da “contaminação” pela arte étnica e popular. Hoje, ao contrário, a arte global interpela ao mesmo tempo a arte contemporânea (herdeira e transgressora da tradição moderna ocidental) e a arte pós-étnica, indígena, primitiva, ou como se queira chamá-la – aliás, o novo museu parisiense dedicado às artes não-ocidentais, como bem lembra Belting, para evitar polêmicas em torno dessa definição, optou covardemente por ficar com o nome do local em que foi construído: Quai Branly. De qualquer forma, de acordo com Belting, não faria mais sentido falar em arte étnica ou primitiva, em primeiro lugar porque esse termo só fazia sentido em oposição à arte “moderna”; em segundo lugar, porque não se pretende mais provar a “autenticidade” e o isolamento de nenhuma cultura atualmente.
Essa perspectiva de reflexão sobre a criação artística, na qual a diferença, a troca e o contexto cultural são tão fundamentais quanto aspectos formais e estéticos, resulta do cruzamento entre antropologia e história da arte. Numa publicação de 2001, que existe apenas em alemão e em francês (Pour une Anthropologie des Images. Gallimard, 2001), Hans Belting chega a se assumir como um “antropólogo das imagens”, interessado em compreender a tríade imagem – suporte – olhar. Nesse livro, o autor lança a hipótese de que a origem ontológica da imagem é a necessidade de suprir a ausência deixada pela morte, substituindo aquilo que falta, que não está presente. “A presença da ausência é a propriedade mais universal da imagem”, declara. Imaginar seria, justamente, a capacidade humana de construir com pensamentos ou com as mãos a imagem de algo ou alguém que não se encontra entre nós. Capacidade bastante universal, portanto, que não se restringe às instituições artísticas e tampouco às sociedades ocidentais. Para compensar o “fim da história da arte”, Belting nos brinda com sua antropologia da imagem.