Da Bauhaus a (Agora!): Uma Leitura da Curadoria
por Nestor Gutierrez
A arte está por todas partes, basta que você se junte a ela!
“Uma das mais prestigiosas coleções corporativas de arte da Europa”
tem São Paulo como ponto de visita na itinerância mundial começada em 2003 e
que terá fim em 2009. A exposição Da Bauhaus a (Agora!), integrada por obras da coleção de arte da corporação multinacional
DaimlerChrysler, está à mostra atualmente no
MASP. Um encontro entre Teixeira Coelho, curador do MASP, e Renate Wiehager, curadora
da exposição e chefe do Departamento de Arte da DaimlerChrysler, gerou um
debate que contou com a participação do público
presente.
Os temas mais recorrentes da discussão foram o papel educativo da
curadoria e a adaptabilidade da coleção com relação ao local de apresentação. Wiehager comentou com
orgulho o prêmio de arte para o fomento cultural oferecido anualmente pela
empresa na África do Sul, que segundo ela é o mais importante prêmio deste tipo
no país. O programa educativo foi criado em Johanesburgo quando por lá se
apresentava a coleção. Fizeram um programa de instrução de professores e
contrataram ônibus para “levar crianças e jovens adolescentes de subúrbio à
exposição” e assim realizar a formação de público. Questionada
sobre a possibilidade de o programa educativo
ser considerado uma estratégia
publicitária ela respondeu que o princípio norteador do serviço foi abrir a
exposição a uma faixa maior de público para que a
experiência desta não ficasse restringida a uma pequena elite rica
familiarizada com a arte de vanguarda. A educação, para Wiehager, seria “a
forma mais bela de se transmitir arte”.
Ambos curadores ressaltaram o fato
de a curadoria ter levado em conta o contexto d o local onde se estava
apresentando a exposição. De modo que a exposição não seria a mesma em Tókio,
São Paulo, Detroit, etc. A coleção se adaptaria para trazer “alguma comunicação
ao sistema local”. Segundo os curadores, no caso de São Paulo, a curadoria
precisou de “dez meses de visitas cuidadosas” para se realizar.
Teixeira Coelho mencionou uma pergunta que
um jornalista lhe havia feito no dia anterior, duratne a coletiva para a
imprensa: “A exposição não é um exemplo de neo-imperialismo cultural?” Tanta ênfase na questão pedagógica e tanto cuidado com
relação à especificidade local parecem querer respondê-la. Imperialismo
cultural talvez seja um termo forte demais, mas ficou claro no debate que o
tema problemático ao se falar de uma coleção de arte corporativa é como uma exposição
desta se justifica socialmente.
Durante os anos 80 o
sistema cultural internacional teve uma notável re-configuração que, no campo
da arte (e não só da arte), favorecia novas formas institucionais,como museus e
espaços expositivos flexíveis que incentivaram a circulação internacional de
obras, como qualquer outra mercadoria, seguindo a lógica do capital
transnacional. Não é mistério que uma mega-corporação utilize a arte como
compensação e/ou para fazer publicidade própria internacionalmente. Esse fato
em si não tira mérito de uma coleção de arte corporativa, nem é sua única
característica digna de ser mencionada, mas certamente influi na curadoria e
nas obras que apresenta.
Hoje em dia fica difícil justificar uma curadoria só em termos das
obras e sua qualidade. Ainda mais se a curadoria for composta por obras de uma
coleção corporativa. Se não é suficiente manter e cuidar de obras com
importância histórica, que representam um legado cultural a ser preservado no
tempo, então como justificar a curadoria de uma coleção de arte corporativa? A
resposta curatorial parece ser: pedagogia e especificidade contextual. Mas
neste ponto fica uma dúvida: Por quê em Johanesburgo e em São Paulo a coleção
precisa se justificar mediante o programa educativo e em Tókio, Karlsruhe e
Detroit não?
Vejamos como o discurso justificativo e publicitário influi na
curadoria e nas obras. Julgando pelo conjunto curatorial apresentado no MASP
pode-se dizer que a coleção DamlierChrysler separa-se em três grandes vertentes
(grupos) diferenciáveis de obras: tendências da arte abstrata, arte que faz
referência a carros e arte recente de artistas de países onde a empresa possui
“unidades de produção”.
No primeiro grupo, ponto forte da coleção e sem dúvida o principal
foco de interesse da curadoria, encontramos um espectro amplo de obras, não só
temporal mas também de tendências. Desde peças com reconhecimento
internacional, como as feitas por integrantes célebres da Bauhaus (Homenagem
ao Quadrado de Josef Albers, ou Varas e Planos de Johannes Itten), como também obras recentes e pouco conhecidas
no circuito internacional (Estúdio 2000 de Ester
Hiepler). Este grupo efetivamente faz uma relação interessante com o prédio, a
sala de exposição (que segundo Teixeira Coelho originalmente foi pensada como
galeria concretista) e o construtivismo brasileiro. Tive a sorte de visitar a
exposição antes desta ser inaugurada, quando as obras ainda não estavam
marcadas com título, nome do autor, etc. e o processo da montagem ainda não
tinha acabado. Este estado semicru promovia a relação dialógica entre
arquitetura, objetos utilitários, objetos cotidianos, cidade (vista pelas
janelas), obras de arte e espectador. Era-lhe permitido ao olhar o trânsito
livre entre uma escultura feita com fórmica, a cadeira do vigia e as lâminas de
compensado empilhadas no chão. No espectador ativo a arte incentivava a
aproximação à não-arte e vice-versa.
Já o segundo grupo de obras começou a fazer parte da coleção “em
1986, no 100º aniversário da invenção do carro a motor, o carro como um motivo
e ícone da mobilidade foram temas de obras encomendadas a Warhol pela
Daimler-Benz AG”. Uma obra mais recente deste grupo, da artista Simone
Westerwinter, é Sessenta Aquarelas com Nomes (Um Retrato da Companhia
DaimlerChrysler) de 2001. O texto curatorial a
comenta da seguinte forma: “a artista produziu por encomenda do grupo uma série
de 60 aquarelas com nome. Reunidas, elas resultaram num “retrato” da empresa no
verão de 2001: os nomes dos modelos mais recentes de automóveis, dos membros da
presidência bem como de diversos colaboradores de DaimlerChrysler produzem um
campo multicolor abstrato e pessoal ao mesmo tempo. Formalmente produzidas, as
aquarelas com nome refletem a crença abstrata, desindividualizada na marca
registrada e no logotipo”. Resta pensar se uma obra que nasce como uma (encomenda)
comissão desta natureza está em condições de exercer uma efetiva postura
critica, ou se qualquer aspereza que poderia ter tido, no contexto da coleção
resulta completamente limada e adotada como capital de reputação e publicidade para a empresa na forma
de arte com estilo critico.
O terceiro grupo começou a se formar quando a empresa quis se
“ocupar da arte jovem dos países onde a empresa possui unidades de
produção”. Este grupo é bem
eclético e sua unidade pode ser abstraída justamente do fato da empresa
ter tido a vontade de apoiar artistas jovens das regiões onde tem sucursais. O
que me interessa salientar é a diferença de algumas destas obras em relação à
linha original e central da coleção e os possíveis motivos curatoriais para
incluí-las. A seguinte citação foi tomada do texto curatorial que se refere ao
vídeo Snow White (Branca de Neve), feito em 2001
pela artista sul africana Berni Searle, que usarei
como exemplo da mencionada diferença, por ser esta a obra mais eloqüente nesse
sentido: “A água escorre pelo corpo nu da artista, farinha cai de cima,
misturando-se com a água em uma camada pálida que mascara o corpo, mais não o
deixa enregelado: Searle começa a moldar uma massa de farinha e água.
Frontalmente a ação se desenrola em uma corporeidade de caráter escultórico
arcaico, ao passo que a projeção na tomada central, de cima, mostra um efeito
pictoricamente plano de gestos. Na busca individual do que pode ser a
identidade além das atribuições categoriais, o corpo fornece a Berni Searle o
momento factual para reinventar-se”.
A obra apresenta um sujeito muito específico, de sexo feminino, de
raça negra, desenvolvendo uma atividade de características rituais. Agora
pensemos no sujeito universal, racional, permutável e aberto proposto pela arte
da Bauhaus, por exemplo. Por que esse grande desvio nas políticas curatoriais e de aquisição da coleção? Teixeira
Coelho o interpreta como flexibilidade curatorial no diálogo com o outro: “a coleção é flexível o suficiente para, mantendo as opções firmes
que fez de inicio, e que caracterizam e justificam toda boa coleção, abrir-se à
penetração – de resto impossível de conter – desse outro, desses outros que dialogam com os
princípios preferenciais da coleção e os contestam”. É inevitável pensar na
relação que a inclusão deste outro artístico tem
com políticas de quotas de minorias culturais, sendo os artistas jovens dos
países onde a empresa possui “unidades de produção”, a representação das
minorias no universo da coleção.
Para terminar gostaria de lembrar uma frase citada num dos textos
curatoriais, atribuída a um artista dos anos 60: “A arte está por todas partes,
basta que você se junte a ela!”. Sim, mas como e por que se dá essa
junção?