Espaços corporativos, virtuais ou institucionais : possibilidades e desafios para o exercício da curadoria independente
Os debates Mercados Emergentes em curadoria, organizados pelo Senac Lapa Scipião, com mediação de Sandra Tucci e Ana Laura Taddei, deveriam discutir o panorama da curadoria e novos mercado de atuação profissão. A instituição tem uma pós-graduação em Curadoria em Arte, e parte do público era composta dos alunos do curso, interessados em atuar na área. O primeiro encontro, contudo, talvez tenha de sido para alguns desanimador: Tadeu Chiarelli, curador institucional no sentido mais clássico, ex-diretor do MAM-SP e do MAC-USP e José Marton, curador de sua própria coleção privada, formaram uma dupla que em certa medida espelha uma das mais graves dicotomias do sistema das artes no Brasil: a fragilidade das instituições públicas, incapazes de colecionar, pesquisar e exibir adequadamente a arte contemporânea, em oposição ao colecionismo privado, cuja visão particular e pessoal poderá um dia se tornar pública, por doação a uma instituição ou criação de uma fundação privada. Nesse encontro, se falou um pouco de mercado de arte, mas pouco de mercados possíveis para o exercício da curadoria e da crítica. O relato de Vinícius Spricigo aborda criticamente os principais temas discutidos nesse dia.
O segundo debate teve a participação de Rejane Cintrão, Paula Alzugaray e Giselle Beiguelman, e mediação do Sandra Tucci. As 3 curadoras independentes apresentaram projetos realizados e teceram reflexões acerca da sua prática curatorial e do entendimento da atividade na contemporaneidade.
Rejane Cintrão começou destacando o interesse que tem em desenvolver projetos fora do âmbito institucional, onde os públicos possíveis e prováveis não estão familiarizados e/ou não esperam se deparar com uma exposições de arte. Insiste sobre as oportunidades existentes fora do sistema da arte, mas ressalta o desafio que é trabalhar com um público aleatório, que precisa ser conquistado, citando dois projetos nos quais trabalhou por cerca de três anos, no Complexo Hospitalar Edmundo Vasconcelos e na torre do Banco Santander, ambos em São Paulo.
Certamente, realizar um projeto de arte contemporânea num espaço corporativo ou num hospital é muito diferente de realizar uma exposição num museu ou espaço tradicionalmente utilizado para tal fim. Os públicos do museu, ainda que não especializados, são públicos que vão às exposições voluntariamente. Em lugares com outra vocação, o público circulante está ali por outra razão, e interessá-lo e trazê-lo para a exposição é certamente um desafio, como deve ser também atender as expectativas corporativas das empresas que investem nesse tipo de ação e manter uma certa autonomia do projeto curatorial. Aqui penso num tema que com frequência discuto com meus alunos, entre a diferença entre um projeto artístico como meio e um projeto artístico como fim. A fronteira entre eles não é clara, sobretudo se pensarmos a atual proliferação de exposições que visam ‘legitimar’ projetos de outra natureza, como a atual “made by...”, no Hospital Matarazzo.
Ao mesmo tempo que destaca a importância do público, Rejane considera que o seu ‘cliente’ é sempre o artista, e entende o trabalho da curadoria essencialmente como o de estabelecer diálogos entre obras e artistas, sem perder de vista a individualidade das obras. Tal compromisso com o artista me parece louvável, contudo entendo que artistas, públicos e representantes das empresas que acolhem os projetos devem ser considerados na sua elaboração.
Os exemplos trazidos por Rejane, de um hospital e de um banco, onde se apresentaram exposições de Regina Silveira, Sadra Cinto, Albano Afonso, Vik Muniz, Mônica Nador, entre outros, ilustram bem a ideia de que é possível e interessante realizar projetos curatoriais em lugares e contextos não especializados, que têm pouco ou nenhum vínculo com o sistema de arte contemporânea. Não ficou claro de que forma os convites de intervenção em tais espaços chegaram à curadora, informação que seria do interesse de quem está iniciando uma trajetória como curador. Mas a relação da curadoria com os dirigentes de ambos os grupos parece ter demandado muita negociação, e, em algumas circunstâncias, a adaptação ou simplificação da proposta curatorial ou do projeto artístico. Também ficou claro, com o depoimento de Rejane, o quão difícil é envolver o público não especializado. Algumas propostas apresentadas na Torre Santander, voltadas, por exemplo, à sensibilização de funcionários para aquisição de obras de fotografia, resultaram inócuas. Por outro lado, a direção do banco adquiriu várias obras expostas nas diferentes exposições organizadas por Rejane Cintrão no período de 3 anos. Nesse sentido, as exposições serviram para atualizar a coleção do banco, que até então não compreendia a arte contemporânea. Essa informação sobre o colecionismo corporativo do bando contrasta com o depoimento de Tadeu Chiarelli, sobre o MAC-USP, cujas aquisições contemporâneas são esporádicas, prejudicadas pela falta de recursos e políticas adequadas.
De natureza bastante distinta, a fala de Giselle Beiguelman trouxe, não exemplos de projetos curatoriais, e sim questionamentos inquietantes e pertinentes acerca da prática curatorial, inspirados pela relação com a artemídia, mas que são válidas para muito além desse campo específico.
Giselle indaga sobre “o que a webarte ainda tem a nos ensinar (...), uma arte que só pode se realizar no contexto de rede, autenticada pela experiência de estar em rede, que engendra formatos curatoriais que apontam para novas interações, com o mercado e com o público, mas também novos conceitos e novas formas de pensar a curadoria.”
A partir da leitura crítica e atualizada de um texto Anne-Marie Schleider, “Fluidities and Oppositions among Curators, Filter Feeders, and Future Artists” (Intelligent Agent, vol.3, n.1), Giselle propõe que as funções do curador na contemporaneidade seriam de filtrar, linkar e compartilhar, e que a curadoria constituiria uma interessante plataforma de atuação, e a web uma interessante plataforma para o dispositivo curatorial. Cita exemplo de experiências como o ArtPort[1], do Whitney Museum (que traz a contradição de abrigar trabalhos comissionados para a web, mas que contempla apenas artistas residentes nos Estados Unidos há mais de três anos) e o Turbulance, que também comissiona net art por meio de editais há quase 20 anos.
Entre os pontos interessantes trazidos por esse campo específico e que poderiam repercutir para o campo institucional de forma mais abrangente, estão a relação entre espaço institucional (museu e galeria) e espaços periféricos e colaborativos e o status da arte como commodity e da arte efêmera, que traz desafios para sua preservação (“quais seriam as tecnologias de preservação daquilo que é feito para não durar? Se a vida é efêmera, porque a arte não pode ser?” indaga acertadamente Giselle, citando Paulo Brusky).
A patrimonialização da arte é feita pela instituição e pelo mercado, efetivamente, mas nem sempre essa é a proposição artística. Em tempos de um mercado de arte em expansão, e da comercialização de obras (e de registros de obras), que não foram concebidas para este fim, tal questionamento é fundamental. Um dos desafios do curador contemporâneo, justamente, parece residir em ser um filtro e um agente, a fim de encontrar, na web e fora dela, “formas de alterar as instituições por dentro”, de criar fluxos entre a produção, a instituição e o mercado e um diálogo entre conceitos e públicos, a ser amplamente compartilhado.
Importante ressaltar que foram estas proposições que mais parecem ter instigado o público presente, a considerar as questões levantadas no debate subseqüente, que girou em torno das possibilidades e da ética do compartilhamento, e da impossibilidade de se recriar/atualizar determinadas experiências artísticas de base tecnológica.
Paula Alzugary falou de sua experiência na realização de um projeto expositivo informado por anos de pesquisa. A discussão sobre exposições que têm como base um sério trabalho de pesquisa é muito pertinente em tempos onde é cada vez mais comum o fast curating, projetos curatoriais que respondem a demandas de um circuito institucional e de mercado em expansão, que exige rápida produção e consumo, e não deixa margem para trabalhos mais verticais de pesquisa e reflexão.
Paula retomou uma passagem da fala de Tadeu Chiarelli, com a qual compartilha: “a curadoria não deveria ser um fim em si mesmo, mas um processo de busca e construção de conhecimento que não se esgota no ato da exposição”, sendo uma “formação transitiva entre a história e a crítica, devendo refletir tanto sobre a arte contemporânea quanto do passado.” De fato, para que haja produção de conhecimento e sentido (funções importantes que aproximam a crítica e da curadoria, como bem ressaltou Paula), é preciso ter a pesquisa como premissa.
No exemplo dado, o longo processo de pesquisa empírica (testada em projetos expositivos anteriores) e acadêmica (o mestrado e doutorado da curadora, que a levou a estagiar no Centre Georges Pompidou) culminou com a exposição Circuitos Cruzados: o Centre Pompidou encontra o MAM, apresentada no MAM-SP de janeiro a março de 2013. Nela, Paula Alzugaray e Christine Van Hasche, então curadora-chefe da instituição francesa, colocaram em diálogo a coleção de arte brasileira do MAM-SP num recorte dos anos 70 até o presente e uma seleção de obras ‘internacionais’ icônicas dos anos 70, pertencentes aos Centre Georges Pompidou, organizadas a partir de conceitos-chave e apresentadas em seis seções, cada uma com base em instalações da coleção francesa (Vito Acconci, Peter Campus, Dan Graham, Bruce Nauman e Nam June Paik), e uma obra comissionada de Tony Oursler. Tal projeto fugiu ao tradicional modus operandi do museu francês, que costuma emprestar, sob pagamento, obras do acervo e organizar internamente exposições que depois itineram para países interessados, desde que paguem o preço pedido. No caso da exposição apresentada em São Paulo, tal modelo foi flexibilizado, o projeto curatorial foi de fato construído conjuntamente pelas curadoras, mas a instituição brasileira pagou pelo empréstimo das obras.
Paula Alzugaray concluiu dizendo que um dos resultados importantes da exposição foi a troca entre as duas culturas, o que permitiu ao Brasil ver pela primeira vez instalações fundantes da arte contemporânea e à França experimentar uma nova forma de pensar a exposição do acervo e novos modelos e possibilidades de relação entre as obras, quebrando de certa forma o seu funcionamento demasiadamente cartesiano. Não resta dúvida de que os públicos da exposição ganharam uma mostra de qualidade e o acesso a obras que raramente se vêem neste hemisfério, contudo, tenho dúvidas sobre o impacto de tal exposição na forma de pensar do museu francês e sobre seu genuíno interesse pela produção brasileira. Uma troca mais horizontal implicaria o financiamento bilateral, assim como a apresentação da exposição na instituição francesa, o que não ocorreu.
Talvez um desafio para os jovens curadores brasileiros seja não apenas estabelecer diálogos no âmbito internacional, mas participar de fato da construção dos valores e de novas narrativas acerca da produção contemporânea, atuando em instituições que ainda hoje ocupam posições de liderança na geopolítica das artes, como o Centro George Pompidou, transformando-as por dentro, como sugeriu Giselle Beiguelman.
[1] Artport is the Whitney Museum’s portal to Internet art and an online gallery space for commissions of net art and new media art. Originally launched in 2002, Artport provides access to original art works commissioned specifically for artport by the Whitney; documentation of net art and new media art exhibitions at the Whitney; and new media art in the Museum’s collection