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Diálogos Arte e Mercado

relato por Ana Letícia Fialho

Casa Daros, Rio de Janeiro, 12 e 13 de março de 2013

 

Introdução

A casa Daros organizou, como parte de seu programa Diálogos, um encontro com o tema Arte e Mercado, dias 12 e 13 de março de 2014, com a participação da galerista alemã Godula Buchholz Liebig, de Munique e do marchand Jones Bergamin, da casa de leilões Bolsa de Arte, do Rio de Janeiro e mediação de Hans-Michael Herzog, curador e diretor da Coleção Daros Latinamerica.

Hans-Michael Herzog abriu o evento comentando sobre a importância de se discutir as relações entre arte e mercado, e destacando o papel de Godula Buchholz Liebig, palestrante do primeiro dia, na promoção da arte latinoamericana na Europa. Para ele, Godula seria de certa forma uma precursora da missão que a Coleção Daros Latinamerica se propôs e que a Casa Daros vem implementando no Brasil, de divulgar a arte latinoamericana[1]. Ele introduziu também o tema a ser tratado no segundo dia do encontro, cujo ponto de partida seria a discussão sobre a valorização pelo mercado de obras que inicialmente foram concebidas para serem reproduzidas e baratas, indagando sobre a existência de uma ética nessas negociações.

O primeiro dia do evento foi centrado na palestra de Godula Buchholz Liebig. No segundo dia, a conversa foi mais informal e teve a participação de Jones Bergamin, Godula Buchholz Liebig, Eugénio Valdés Figueroa e Hans-Michael Herzog.

 

A promoção da arte ‘latinoamericana’ na Europa: a galeria Buchholz e sua estratégia comercial avant la lettre.

Godula Buchholz Liebig nasceu em Berlim, em 1935, onde passou a infância, mudando-se com a família para Madrid em 1948, onde seu pai estabeleceu uma livraria especializada em arte, e depois para Bogotá em 1951. Segundo Godula, a livraria/galeria livraria/galeria Buchholz, de propriedade do seu pai, era ponto de encontro de intelectuais, artistas, mas também de artesãos e camponeses e foi para ela um primeiro lugar de aprendizado. Estudou em Paris de 1955 a 1958, e voltou a Colômbia onde passou a dirigira a livraria/galeria. No início dos anos 60, por iniciativa de seu pai com apoio de uma associação alemã, organizaram a exposição “Arte Alemán Actual”, apresentada em Bogotá e depois em Caracas, Lima, Buenos Aires, Montevideo e Santiago do Chile. Responsável pelo tour da exposição, Godula aproveitou a itinerância para visitar artistas em cada uma das cidades e planejar uma exposição de arte latino-americana em Bogotá, apresentada na Biblioteca Luis Ángel Arango[2]. Godula acredita que essa tenha sido a primeira exposição de arte latino-americana na Colômbia[3].

De Bogotá, a exposição de arte latinoamericana seguiu para a Sala de exposições Eugênio Mendonza, em Caracas. Na época,  segunda a galerista, Caracas era um centro artístico internacional importante, lá estavam Gego e Cruz Diez, e havia grandes colecionadores. De Caracas a exposição foi de barco para Hamburgo e Godula foi para Nova Iorque, onde pretendia encontrar outros artistas latinoamericanos lá residentes, e buscar mais obras para ampliar a exposição, a ser apresentada na Alemanha, entre eles, Fernando Botero, a quem viria a representar por um longo período.

A mostra de artistas latinoamericanos na Alemanha foi a estratégia de Godula para regressar a seu pais de origem, o que consumiu dois anos de planejamento. A exposição foi apresentada em Bonn, em 1963, incluindo 33 artistas e mais de 70 obras, acompanhada de um catálogo. Bonn era a sede do governo alemão, onde estavam as representações diplomáticas e os cheges do governo alemão. A exposição teve boa repercussão, de depois seguiu para Berlin, sendo apresentada na Akademie der Kunste. A estratégia de Godula para se reinserir no campo artístico alemão, depois de longa ausência (havia deixado o país aos 13 anos), funcionou e ela recebeu o convite para assumir o cargo de curadora da Kunsthalle de Baden Baden, onde ficou por 2 anos[4] e adquiriu contatos e ferramentas que foram úteis a seu projeto de abrir uma galeria, concretizado em Munique, em 1965.

Por 7 anos a galeria trabalhou exclusivamente com artistas latinoamericanos. A primeira exposição, com a participação de Botero, Mateos e Obregon (Colômbia), Pantojo (Bolívia) e Szyszlo (Peru), teve uma boa recepção mas apenas uma obra foi vendida a um diplomata norte-americano. A segunda exposição, dedicada ao argentino então residente em Paris Romulo Macció, teve melhor êxito, o diretor do Stedejlik em Amsterdam, escreveu sobre a mostra, e a revista de arte Kunstwerk dedicou a capa de uma edição ao artista. As exposições seguintes também tiveram melhor êxito comercial. A galeria Buchholz realizou, de 1965 a 1972, exposições dedicadas à gravura brasileira (Arthur Pizza, Ana Letycia Quadros, Maria Bonomi[5], entre outros), Fernando Botero[6], Sergio Camargo[7], Carlos Cruz-Diez, Julio Le Parc, Edgard Negret, Jesús Soto, Vera Chaves Barcelos, entre outros. Trabalhou em algumas ocasiões com o galerista Hans Meyer, de Düsseldorf e com Denise René[8], de Paris, pois ambos também representavam artistas latinoamericanos como Soto. Em 1968 participou da primeira edição da feira de Colônia, precursora das feiras de arte contemporânea, onde foi a única a apresentar artistas latino-americanos e a única galerista mulher entre 20 galeristas participantes.

Apesar de denotar certa ousadia em sua escolha por investir em artistas pouco conhecidos na Europa e em projetos experimentais, como o dedicado ao artista argentino Luis Fernando Benedict, que apresentava um labirinto de formigas, ratos brancos e rãs e uma série de desenhos[9], a partir de 1972 a galeria deixou de ser especializada em arte latinoamericana, buscando na arte europeia alternativas de negócios mais viáveis comercialmente. Nas palavras de Godula, “a galeria se abriu mais à arte internacional”, deixando clara a distinção feita na Europa entre o que é “internacional” e o que é “regional”. O seu programa mudou, segundo ela, devido ao contato com artistas europeus que começaram lhe interessar. Os altos custos com transporte de obras de artistas que viviam na América Latina e em diferentes cidades, como Paris, Nova Iorque, Madrid, Barcelona, somado ao fato de serem artistas desconhecidos, também motivou a mudança de perfil da galeria, embora ele informe que continuou a trabalhar com alguns deles, e que “ graças a meu trabalho se encontram obras desses artistas em coleções públicas e privadas europeias”.

Sem dúvida Godula Buchholz teve um papel significativo na promoção de alguns latinoamericanos se não na Europa, certamente na Alemanha. E é interessante observar que ela tenha escolhido trabalhar com esse recorte regional numa época em que a “categoria” arte latinoamericana ainda não tinha se firmado como estratégia comercial de casas de leilão como Sotheby’s e Christie’s[10], e muito antes de departamentos com curadores especializados na produção latinoamericana tenham sido criados em museus norteamericanos e europeus. Embora ela faça a distinção entre arte latinoamericana e arte internacional, e tenha optado por esta última a fim de assegurar o desenvolvimento de seu negócio como galerista, parece-nos que durante o período em que trabalhou exclusivamente com artistas latinoamericanos existia uma abertura maior na Europa à produção de outras regiões, o que muda ao longo da década de 70 e 80, quando a Documenta, por exemplo, não exibe nenhum artista brasileiro[11].

Quando questionei sobre a relação entre suas escolhas e um contexto mais amplo de mudança do sistema internacional das artes, cada vez mais centrado, a partir dos anos 70, em alguns países da Europa e com grande destaque para os Estados Unidos, Godula teve dificuldade em aceitar tais determinantes geopolíticas, preferindo destacar que as trajetórias são individuais, que os artistas são reconhecidos independentemente de sua origem. Embora tenha concordado que às vezes existem fenômenos de moda, como a valorização dos artistas norteamericanos na Alemanha[12], afirmou que nunca seguiu a corrente da maioria dos curadores e críticos.

Indagada por Eugênio Valdés, curador de arte e educação da Casa Daros,  sobre a projeção de sua galeria num contexto internacional e sobre sua relação com empresas que investiam em arte, Godula comentou apenas que em alguns projetos trabalhou com o apoio de empresas, citando um banco de Zurich que teria comprado uma obra de Cruz-Diez (em sua fala ela havia citado também a parceria com a Osram na organização de uma exposição de Júlio Le Parc). Mas afirmou que seu contato maior era com museus e com colecionadores mais jovens. Sobre as mudanças observadas no mercado de arte ao longo de sua trajetória, comentou que o mercado mudou completamente, que quando começou existiam muitas galerias pequenas, que vendiam localmente e que conheciam os seus clientes, e que hoje os leilões adquiriram um peso muito maior[13]. Ela mesma, quando tem obras mais históricas, da década de 70 por exemplo, realiza as vendas por intermédio de casas de leilão.  Com mais de 50 anos de atividade no mercado de arte, Godula não mantém mais a galeria em funcionamento. Aos quase 80 anos de idade, ela prefere a liberdade não ter que manter um local  fixo, o que a permite viajar mais: “hoje sou mais colecionadora do que galerista”, afirmou. Resta evidente o seu vivo interesse pela produção contemporânea: “busco sempre novas estruturas de pensamento, a aventura do espírito”, demonstrando uma abertura a novos horizontes muito maior do que a observada em muitos galeristas europeus de gerações posteriores, que só recentemente passaram a se interessar pela produção artística de outros continentes.

 


[1] Em conversa informal com Hans-Michael Herzog, em jantar em homenagem à então curadora da Bienal do Mercosul, Sofía Hernández Chong-Cuy, em 2012, lembro do curador comentar que a Casa Daros deveria desempenhar um papel fundamental na promoção de diálogos e trocas entre os países latinoamericanos, o que a seu entender não acontecia,  e isso a partir do Brasil, país que tradicionalmente não se relaciona com seus vizinhos no campo das artes. Cabe aqui uma ressalva, que embora de fato esses diálogos mereçam sem dúvida serem intensificados, existe, sim, desde a criação da Bienal do Mercosul, um dialogo entre o campo artístico no Brasil e de outros países latinoamericanos, e que historicamente, curadores e críticos como Walter Zanini, Frederico Morais e Aracy Amaral tiveram projetos e relações estreitas com artistas, críticos e curadores dos países vizinhos.

[2] A Biblioteca Luis Ángel Arango é parte do complexo cultural do Banco de la República, e responsável pela administração de um conjunto de equipamentos culturais, inclusive o Museo de Arte, que compreende hoje uma importante coleção de arte latinoamericana, onde estão representados expoentes do modernismo e das vanguardas de vários países do continente, mas com pouca representatividade de artistas brasileiros. Sobre a coleção, ver: http://www.banrepcultural.org/coleccion-de-arte-banco-de-la-republica/acerca-de-la-coleccion

[3] É pouco provável que no início dos anos 60 a instituição ainda não tivesse estabelecido um programa de exposições e aquisições que abrangesse os demais países da América Latina, mas valeria uma investigação para verificar tal afirmação.

[4] No período, Godula organizou, entre outras, exposições de Torres-García e de artistas colombianos, e entrou em contato com artistas, curadores, museus da França, Suíça, e de outras cidades da Alemanha.

[5] Uma exposição individual de xilogravuras da artista foi realizada em 1971, incluindo a publicação de um catálogo com texto de Mário Pedrosa.

[6] Foi Godula quem organizou o primeiro livro dedicado ao artista na Europa, por ocasião de 5 exposições organizadas pela sua galeria em museus europeus.

[7] A primeira exposição dedicada a Sergio Camargo foi subseqüente à participação do artista na Documenta de Kassel em 1968. Segundo Godula, foi nessa exposição que Sergio Camargo teve uma primeira obra adquirida por um museu alemão.

[8] Godula deixou entrever, em sua fala, um certo antagonismo frente a Denise René, possivelmente porque a galerista francesa, pelo peso que tinha no mercado, impunha as condições de compartilhamento de artistas como Soto, e também porque, a meu ver, há uma certa disputa simbólica referente à importância de uma e outra na promoção da arte latinoamericana na Europa. Sem dúvida, Denise René tem uma reputação mais amplamente reconhecida, embora tenha ficado evidente o engajamento e o ineditismo de algumas iniciativas de Godula nesse sentido.

[9] A instalação e os desenhos foram vendidos para uma instituição alemã.

[10] Na Documenta IV, em 1968, participaram Almir Mavigner e Sérgio Camargo. Depois mais de duas décadas transcorreram até que os artistas brasileiros voltassem a Kassel, na Documenta IX, de Jan Hoet, que convidou Waltércio Caldas, Saint Clair Cemin, Jac Leirner, Cildo Meireles, José Resende. Sobre o tema, ver Fialho, Ana Letícia: L’insertion internationale de l’art brésilien. Une analyse de la présence et de la visibilité de l’art brésilien dans les instutitions et dans le marché. Paris: École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), tese de doutorado, 2006 e O Brasil está no mapa? Reflexões sobre a inserção e a visibilidade do Brasil no mapa internacional das artes. In BUENO, Maria Lucia (org.). Sociologia das artes visuais no Brasil. São Paulo: Senac, 2012, pp. 141-160.

[11] A respeito da invenção e usos da categoria ‘arte latinoamericana” pelas casas de leilão ver: Fialho, Ana Letícia. O peso do mercado secundário no processo de formação de valores artísticos no sistema das artes – o exemplo da Sotheby’s. Fórum Permanente, 2010. Disponível em: http://www.forumpermanente.org/.event_pres/exposicoes/sp-arte-2010/relatos/sothebys.

[12] Quem visita as instituições de arte contemporânea na Alemanha pode observar claramente a forte presença de artistas norte americandos e europeus (sobretudo alemães) nas coleções, o que denota mais do que um fenômeno de moda, e sim uma visão essencialmente eurocêntrica do colecionismo institucional.

[13] Não por acaso, talvez, a organização do evento tenha convidado o leiloeiro Jones Bergamin para o segundo dia do encontro Arte e Mercado.

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