Moderno hoje: desafios de dilemas

relato por Thais Assunção Santos

relato crítico I colóquio internacional do MAM-SP| história e(m) movimento

moderno hoje: desafios de dilemas

thais assunção santos

 

apresentações O tema da mesa que aconteceu dia 01|11|2008, - moderno hoje: desafios e dilemas, - talvez seja, dentre os outros, o que mais depõe sobre uma questão que simultaneamente forma e informa o MAM-SP. Luiz Camillo Osório, mediador da mesa e um dos curadores da mostra MAM60, explicou como o contato com o acervo e com a história da instituição colaboraram para dar vida ao tema; as persistentes [sombras][1] de uma coleção moderna e as sucessivas afirmações do (novo) caráter contemporâneo para o mesmo MAM-SP ainda subscrevem sua identidade. A persistência dessa memória provocou Luiz Camillo a retomar problema lançado por Lyotard: se “a reescrita da modernidade é uma forma de resistência à escrita (e portanto ao reconhecimento) da pós-modernidade”. O tema [moderno hoje: desafios e dilemas] como bem notou Antonio Cícero não deixa dúvidas sobre a permanência do moderno. Certo é que, embora a discussão não tenha sido colocada e nem acontecido circunscrita diretamente ao caso do MAM-SP, as definições trazidas pelos três participantes podem ser re-visitadas como instrumentos de grande valia para seguir adiante, agora depois da comemoração dos 60. Finda breve apresentação do tema, Luiz Camillo apresentou a ordem das participações: Delfim Sardo, Antonio Cícero e por fim ele mesmo. Quanto ao relato procurou-se nervos e nós: pontos de sustentação e entrelaçamentos das posições individuais, indicativos talvez dos caminhos por onde transitam a consciência atual do moderno, da modernidade e, claro, do próprio presente. Todo o raciocínio do texto está contido nas falas dos três, mesmo quando não consta a referência. É bom lembrar que a tarefa esmaece riquezas singulares do pensamento de cada autor, peço desculpas especialmente a eles. Mas trata-se de um problema moderno: há que se escolher um rumo, para não perder a paciência do leitor.

 

os ossos do moderno Talvez inspirados pela tal “arqueologia do moderno” proposta por Sardo comecemos por um primeiro consenso, a saber, o que chamamos moderno. Dois lugares foram criados a defini-lo. Um é limítrofe, carrega consigo bela potência poética ao mesmo tempo coerência perfeitamente cabível nos sistemas das [ciências] humanas: “estado de hiper-consciência do tempo” é como Delfim Sardo nos sugere considerar o moderno. Enxergá-lo feito de camadas, como fazem os arqueólogos, distinguindo sobreposições variáveis de sentido atribuídos a ele ao longo da história. Até como uma consciência da história, estado em que pulsam simultaneamente passado, presente e futuro. O outro lugar para o moderno, esmiuçado por Antonio Cícero e compartilhado por Osório, o devolve ao lugar que esperávamos encontrar, entre o renascimento, Descartes e o presente. Cícero não se refere exatamente ao moderno mas à modernidade, tempo histórico específico do ocidente. Os termos se confundem; e enquanto moderno e modernidade se avizinham, modernismo fica pouco distante das outras duas palavras primas. Não nos esqueçamos que nessa salada-cilada palavras não são mero detalhe; elas fundam os entendimentos sobre as coisas a que se referem; palavras criam. Não é à toa que Cícero e Sardo se detêm em falar cuidadosamente sobre a modernidade; desfazem assim equívocos sobre moderno e modernismo tal qual:  abandonar os dois termos a mera questão de estilo, de uma visualidade| estética superada e alijada de sua significância cognitiva. “Essa manobra”, diz Antonio Cícero, “permite que o contemporâneo por sua vez usurpe lugar do moderno” como se ser moderno fosse condição exclusiva ao período assim denominado, como se fossem categorias excludentes e progressivas, como se o moderno não nos pertencesse mais. Antonio Cícero especifica: a modernidade é definida por “crítica ao positivo”, de “separação, distinção, comparação, escolha, seleção, juízo”, não existe acabada ou em isolamento, mas em relação; se posta diante de. No caminho de Osório o moderno já está de saída à luz mais direta do modernismo; talvez a sua fala seja, entre as três, a mais desejosa por atravessar o moderno na detecção do contemporâneo. O presente é o eixo. Pela relação entre experiência e expectativa, no contrapeso entre as duas, associadas às duas temporalidades em questão, explora uma pela outra, numa “via de mão dupla” propriamente contemporânea, fugindo à “rua de mão única” de tempos modernos[2].

onde o moderno ainda vive Partem todos (Luiz Camilo, Antonio Cícero e Delfim Sardo) do mesmo lugar, de Kant e da crítica fundadora do problema do gosto - brecha para dois acontecimentos simultâneos: arte e crítica moderna de mais de um século depois. Kant como filósofo da modernidade; a razão está no centro de seu sistema de pensamento, explora objetos de conhecimento à devida distância, olha para eles procurando afastar-se delas. Cícero vale-se do ensaio de Montaigne sobre os canibais do Brasil; Sardo lembra Max Weber – a modernidade é a clivagem do religioso em três partes: a ciência, a moral e a arte. Kant é ponto de partida dado pelos três autores porque reportou sua crítica diretamente a estética, à arte enquanto sistema “autônomo”. Subsidiou interesse da arte por ela mesma, por sistemas complexos de representação e comunicação que se tornaram centrais para as vanguardas. Lembrando que esse interesse por si criou especialização no campo, tal qual acontece nas ciências de modo geral.     Seguindo, Sardo faz ressalva fundamental: “repare-se que este não é um processo de reflexão formal sobre as condições da imagem, mas um dispositivo de construir uma complexidade partindo da quebra da unidade do continuum espaço-temporal”. A colagem enquanto procedimento é no seu entendimento meio fundador desse moderno por excelência; presença plástica da tal “arqueologia do moderno”. Nela estão literalmente postas camadas de significados, naturezas, temporalidades distintas, antecedendo o ready-made, se entendido como espécie de “corte e cola”. Nessa suposição, bem como na que toma o projeto de Tátlin como exemplo, o autor português dá efetivamente vida aos objetos como eles mesmos expressões materiais da cultura, - das formas que pensamos e representamos o nosso universo consensual. Os nós ficam apertados, difíceis de apartar; o moderno parece presente por demais no contemporâneo. A linha que liga o pensamento dos três participantes se encontra de novo em Jackson Pollock; na crítica dirigida à sua obra está uma cisão; está em jogo uma mudança na perspectiva crítica da arte. Se as vanguardas são em si o próprio emblema da ruptura formal e cognitiva (como Cícero frisa não sem razão muitas vezes) a crítica que lhe é aparentada – que tem em Greenberg seu maior representante, - transforma-se quando surge um paradigma crítico distinto para o trabalho de Jackson Pollock; Harold Rosenberg e Allan Krapow junto com o grupo Gutai, são, conforme aponta Sardo, originários dessa crítica que busca transcender a forma no objeto trazendo, entre outras coisas, o corpo. Trata-se não só de expandir o que se entende por objeto, mas os próprios limites entre os meios expressivos. A radicalidade da forma e da crítica reconhecida como modernistas, a que Delfim Sardo adjetiva aproximando do horror e do escândalo, equipara acontecimento artístico em lugar de acontecimento histórico. A nova perspectiva crítica, que por isso em certo sentido rompe com a modernidade, quando lê a arte em tônica processual e subjetiva (a exemplo de Rosenberg) põe o acontecimento artístico no lugar do micro-acontecimento. Os limites até pouco deste tempo tão bem definidos e até explorados entre os meios expressivos, ao se romperem, rompem o moderno. Afinal, limite, ou “franja” como Delfim Sardo classifica é em si característica ontológica desse pensamento-período. Ruptura e construção são nele simultâneas; assim como  a tendência endógena e exógena da arte moderna, que alimenta simultaneamente a vontade de ensimesmar-se e de sair de si, a última marcada nas vanguardas modernas russas. E se por um lado,  não se há mais de romper e escandalizar por agora, ainda há o que clivar. Em certo sentido, a arte contemporânea mais destroça e divide a imagem, o sujeito, a narrativa, o tempo.

 

por onde o moderno não anda mais As vanguardas são certamente parte que nos lembra que não somos modernos. Um dos centros do pensamento de Antonio Cícero é esse: na distinção entre vanguarda e experimentalismo, a primeira tem papel histórico que o segundo nunca vai alcançar; nos forma agora na medida em que “possibilitou que a arte pensasse a si”. A diferença entre ser vanguardista e ser experimental tem a ver com consciência histórica, sobre o tempo; não há problema em experimentar retrocedendo. Mas assim não se rompe. Tomando por base essa constatação de Cícero: talvez o abandono momentaneamente de nossa condição temporal ou essa a consciência histórica em que cabem lapsos de tempos outros, mas sempre presentes ou passados caracterize em algum modo o esmaecimento da nossa condição moderna[3].  Continuamos a viver a ambigüidade de desejar ao mesmo tempo olhar a arte em si, como diz Sardo endogenamente, e inscrever nela alguma responsabilidade e alguma representatividade social. O ponto é que ainda mora na arte (e em nós) esse dilema moderno; mas sem sobressaltos, sem escândalos, como ele vivia nas vanguardas, embora não sem ambigüidades. Luiz Camillo define muito bem esse dilema quando passa pelas noções de experiência e expectativa – a balança em que salta aos olhos a nossa condição desregulada do moderno. Definida experiência por “passado incorporado no presente” e expectativa por “futuro presente”, o “ainda-não”, Luiz Camillo atravessa esses sentidos do moderno para nos lembrar que vivemos um tempo de muita experiência e pouca (quando não recusa) de expectativa. Talvez porque como no exemplo que usou de Baudelaire, vivemos ainda um modo inconcluso de lidar com esse anacronismo| hibridismo| pluralismo| heterogeneidade que nos constitui. Contrações excessivamente rápidas nas fibras musculares[4] fazem do contemporâneo momento do moderno em estado agudo: fim dos paradigmas universais, cidade como segunda natureza humana, sociedade civil democrática; podemos ser ainda modernos salvo pela constatação de que a história não necessariamente caminha para frente. Luiz Camillo não recupera expectativa e experiência à toa. Por isso sugere que o presente, e suas lacunas, devem ser ocupados com a audácia que herdamos do moderno.

 


 

[1] As [sombras] aparecem adjetivando a identidade de parte da coleção do MAM-SP em texto de CHIARELLI, Tadeu. Subsolo: Território de Sombras. IN: catálogo da exposição MAM [na] OCA – arte contemporânea brasileira no acervo do museu de arte moderna. MAM| Expomus| Copypress, São Paulo, , 2005.

[2] BEJAMIN, Walter. Rua de mão única. IN: Walter Benjamin – obras escolhidas II. Editora Brasiliense, Tatuapé, 200. Convêm transcrever: rua de mão única – Esta rua se chama Asja Lacis, em homenagem àquela que, na qualidade de engenheiro, a rasgou dentro do autor.

[3] Tanto Luiz Camillo Osório quanto Antonio Cícero recorrem à expressão “sem medo de anacronismos”, para falar do contemporâneo.

[4] Definição do dicionário AURÉLIO para a palavra fibrilação que nomeia o texto de Delfim Sardo.