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Declinações do moderno: América Latina

relato por Adriana Pucci Penteado de Faria e Silva (doutoranda do LAEL-PUC/SP- bolsista do CNPq)



Que fios condutores podem tecer uma trama da qual participam as noções de arte moderna no Brasil, no Uruguai, na Argentina, representadas por expoentes como Xul Solar, Torres García e Tarsila do Amaral? Como essa trama latino-americana dialoga com postulados estabelecidos por cânones do hemisfério norte? Como, ainda, essa narrativa histórica se relaciona com a constituição das coleções iniciais do Museu de Arte de São Paulo e do Museu de Arte Moderna de São Paulo?


Elegemos como fio condutor deste relato as relações de identidade e alteridade estabelecidas entre os diversos personagens dessa trama, evidenciada pela mesa 2 do Colóquio Internacional História e(m) Movimento: MAM 60. O conceito de personagem, para nós, abrange tanto as pessoas citadas nas palestras, como artistas e intelectuais, quanto as instituições e nações implicadas em suas peripécias.

Annateresa Fabris, que ao lado de Luiz Camillo Osorio é curadora da mostra MAM60, atualmente na OCA, foi a debatedora da mesa. Sua participação trouxe ao auditório, inevitavelmente, a voz dessa exposição, que conta a história do MAM/SP, evidenciando diferentes períodos de sua constituição. Encontram-se, na OCA, obras emblemáticas que representam as fases iniciais da história do museu, bem como vasta documentação que atesta o diálogo com outras instituições, como o MOMA de Nova Iorque, ou com figuras expoentes do mundo empresarial e artístico. No diálogo com o outro, portanto, o MAM historicamente se reconhece e se diferencia, constituindo-se.

Fabris, na abertura da mesa, delineou objetivos gerais do debate, destacando a discussão sobre a idéia de moderno e de arte moderna na América Latina. Ressaltou, no entanto, que o modernismo da América Latina não é particularmente contemplado no acervo do MAM. Essa observação poderia instaurar um paradoxo relativo ao tema de sua apresentação, em que objetivou estabelecer alguns elos entre o Brasil e na América Latina, tendo como eixo uma comparação entre as constituições inicias das coleções do MAM e do MASP.

No entanto, o conjunto das três apresentações revelou convergências e divergências constitutivas entre a história da arte moderna no Brasil e em outros países. Independentemente de sua participação no acervo do MAM, as obras modernistas da América Latina constituem a voz de uma identidade, ou uma declinação do termo, com a qual o modernismo do Brasil dialogou. A reflexão sobre o outro, assim, conduziu a algumas possibilidades de entendimento de vicissitudes da arte moderna no Brasil. Vejamos como.

Maria Lúcia Bastos Kern, na primeira apresentação da mesa, América Platina: Modernidade e Utopias, enfocou dois artistas emblemáticos da região do Rio da Prata, o argentino Xul Solar e o uruguaio Torres García, e a relação de sua obra com o mundo europeu e norte-americano. A palestrante ressaltou, inicialmente, que o projeto de modernidade desses artistas se coadunava com o desejo de proclamação de descolonização, de independência em relação aos grandes centros europeus.

Uma das obras projetadas por Maria Lúcia foi América Invertida, de Torres García.  Nessa tela, observamos o mapa da América do Sul de modo muito particular: ao norte da linha do equador, de cabeça para baixo em relação à representação convencional, como se o ponto de vista de quem desenha o mapa fosse determinante para o estabelecimento das representações geográficas.

Tal imagem ilustrou perfeitamente os projetos de Xul Solar e Torres Garcia, que não lidavam com o desconhecido, já que ambos estiveram na Europa, de onde regressaram respectivamente em 1924 e 1934, período em que a crise do pós-guerra havia-se instaurado. Ambos, contudo, nunca deixaram de ser homens da América Platina, que, de certa maneira, representava, para cada um deles, o “norte”, a identidade.

Xul esteve na Europa, por um longo período, com Emilio Petoruti, também argentino. A ele dedicou um texto ressaltando sua capacidade de  combinar o reconhecimento do sangue itálico com o grande desejo de construção uma identidade criolla. Pode-se entender, assim, que Petorutti seria o modelo daquilo que Xul definia como neocriollo, um homem latino capaz de conservar suas origens européias de modo ativo, ou seja, capaz de estabelecer uma identidade própria sem prescindir daquilo que o outro, ou a Europa, podia oferecer de mais valioso.

O projeto de superação do domínio cultural europeu, que aceitava um diálogo ativo com a cultura da metrópole, não se restringia, para Xul Solar, às artes plásticas. O artista argentino propôs o neocriollismo, uma língua que mesclava o português e o espanhol, aceitando também contribuições lexicais do inglês e do alemão. A partir de investigações feitas com Jorge Luís Borges, Xul também pregou uma simplificação da língua falada na Argentina, como modo de marcar sua diferenciação em relação à língua da metrópole.

Por um lado, Xul Solar teve grandes interlocutores na Argentina, como o próprio Borges os intelectuais ligados ao periódico Martin Fiero, que circulou de 1924 a 1927. Nessa interlocução, buscava-se uma possível articulação entre o nacional e o universal, entre a identidade e a alteridade. Por outro lado, o ambiente artístico de Buenos Aires era marcado por obras conservadoras e por uma crítica retrógrada.

Maria Lúcia Kern trouxe, na apresentação, a projeção da obra Chaco, de 1922, como emblemática da noção de nacional que permeia a obra de Xul. Citou, ainda, as aquarelas Nuevo Mundo e Tlaloc, em que palavras em neocriollo compõem um todo com as representações de índios e bandeiras, fortemente marcadas pela construção geométrica.

Pensando nas questões que propusemos como centrais para estas reflexões, ou seja, a da identidade e da alteridade, é imprescindível ter clareza sobre as especificidades de Xul Solar (bem como de Petorutti e de Torres García) dadas pela sua experiência de distanciamento da terra natal, proporcionada pela estada na Europa: esse afastamento parece-nos fundamental para que tais artistas tenham podido compreender sua identidade latina sem negar a porção européia que dela é indissolúvel. Eles puderam ver-se e ver a América do Sul a partir do ponto de vista do outro para, somente então, regressar ao seu lugar de origem, compreendendo sua identidade.

Annateresa Fabris, em sua fala, trouxe algumas considerações de Patrícia Artundo sobre esse tema do distanciamento: para a crítica, os artistas latino-americanos empreenderam uma “viagem estética”, conceito que abarca mais do que os movimentos de ida e a volta, pois tem no seu cerne a revisão da experiência latino-americana feita  por artistas que a partir da Europa lançaram um olhar a seus países.

A recepção das idéias de Xul Solar da de Torres García no retorno de suas estadas na Europa, entretanto, foram distintas. O argentino, segundo Kern, apenas recentemente suscitou o interessa da crítica e do meio artístico, não tendo formado uma escola, diferentemente do que aconteceu com o artista uruguaio, como veremos adiante. Outra diferença diz respeito aos movimentos que os influenciaram: Xul dialogou ativamente com o Expressionismo, enquanto Torres García se identificou com o Construtivismo que emergiu em Paris no primeiro pós-guerra, a partir do qual, também influenciado por um diálogo com Mondrian, criou, em 1943 o Universalismo Constructivo. Essa escola tinha como base as práticas culturais arcaicas do continente americano, como a arte pré-colombiana.

O retorno inicialmente infrutífero de Xul Solar pode justificar-se por uma série de limitações ao projeto modernista na Argentina, causada por questões políticas, sobretudo com o estabelecimento da ditadura militar argentina em 1930.

A autonomia da arte na Argentina foi recuperada paulatinamente: foram marcos dessa recuperação o movimento concretista, da década de 1940, e a busca de aproximação com os Estados Unidos promovida pelo governo Perón a partir de 1950, com o incentivo político às representações da modernidade. Durante essa retomada, destacou-se a atividade de Torres-García, tanto em Montevidéu como Buenos Aires.

O uruguaio, vivendo a crise do pós-guerra europeu, pregava, então, o fim da desconstrução e o início do estabelecimento do papel social da arte, que seria o da criação de ordem. Essa ordem significava a passagem do individual ao universal. A obra de Torres García era marcada pela presença de símbolos místicos, de origens diversas, constitutivos de uma poética que representa a ascensão, a busca da purificação que levaria à salvação espiritual e cultural da América.

Segundo Kern,  é provável que Torres García se tenha tornado conhecido no Brasil quando Maria Helena Vieira da Silva, artista luso-francesa, veio ao Rio de Janeiro, onde se estabeleceu entre 1940  e 1947. Nesse período, ela divulgou as experiências do Taller Torres García ou Escola Del Sur (1943-1961), instituição que promovia cursos e debates, divulgando os postulados do artista uruguaio. A atuação do Taller, assim como a circulação de periódicos como Circulo y Cuadrado, foi fundamental para relativizar o isolamento dos artistas argentinos em relação à Europa durante a II Guerra Mundial.

O artista uruguaio participou da Bienal de São Paulo de 1951 (quando a Bienal era promovida pelo MAM). Sua obra foi também divulgada nos Estados Unidos e em vários países da Europa, onde alcançou relativo prestígio e reconhecimento, cumprindo, assim, sua meta de legitimar a voz das artes na América Latina.

As vozes da arte moderna na América Platina, portanto, foram inaugurais na mesa Declinações do Moderno: América Latina. Em seguida, Maria Borsa Cattani apresentou Antropofagia e mitos: a pintura de Tarsila do Amaral. Instaurou-se, então, a voz de um dos movimentos do modernismo no Brasil, por um estudo de caso.

Cattani fez um recorte preciso, focando o período antropofágico da obra de Tarsila  do Amaral (1928-1929),  do qual destacou tanto a fragilidade como a importância na definição da modernidade brasileira. Atestada pela curtíssima duração do período, tal fragilidade, para a palestrante, teve raízes no peso que o movimento carregava por ter-se tornado um mito, mais precisamente o de ser um momento em que as tensões entre a identidade da arte nacional pareciam resolvidas em relação a seus modelos. Por outro lado, essa mitificação é uma das razões pelas quais o movimento permaneceu como uma referência para a arte contemporânea.

Nessa exposição, portanto, também foi central a tensão entre a identidade e a alteridade, ou seja, entre arte no Brasil e na Europa, e, mais ainda, entre os cânones da tradição e da modernidade.

O movimento modernista de São Paulo, no qual se inscreveu a obra de Tarsila, foi marcado pela busca de um enraizamento no Brasil, contrapondo-se à tendência internacionalista das vanguardas européias do século XX. Dessa forma, havia-se estabelecido um diálogo com a tendência do “retorno à ordem” vigente na Europa do primeiro pós-guerra, que pregava a valorização de diferentes tradições nacionais, por um lado, e o apreço pelos “valores eternos” da arte, por outro.

Cattani mostrou, a partir do ensaio A negra e o caipira, de Jorge Coli, como princípios vigentes na arte brasileira do século XIX estavam presentes na obra de Tarsila no início da década de 20 do século passado. Também destacou a fundamental a aproximação da pintora com o grupo denominado “Escola de Paris”, que procurava irradiar a arte e a cultura francesas ente os estrangeiros que acolhia. Tarsila estabeleceu com eles um diálogo, mas não aceitou simplesmente igualar-se aos outros. Procurou, com sua pintura, definir-se como uma interlocutora diferenciada, que não abria mão da busca por valores modernos e brasileiros.

A antropofagia, cuja única representante nas artes visuais foi Tarsila, respondeu ao desejo de estabelecimento de uma modernidade brasileira. Dentre as muitas dualidades destacadas por Cattani, ressaltamos a posição dos modernistas brasileiros, pertencentes a uma aristocracia de sangue europeu: de forma ambígua, situavam-se tanto no lugar do opressor europeu como no do oprimido sul-americano. Tal posição parece-nos antecipar a tese apresentada no final da palestra: a de que o período antropofágico da obra de Tarsila converteu-se em autofagia. Essa dualidade entre o ser dominante e o ser dominado também mostra que o gesto “devorar o outro buscando suas qualidades” particularizou-se num movimento em que o “eu” e o “outro” estavam, de certa forma, mesclados.

Cattani analisou o período antropofágico de Tarsila pontuando, evidentemente, sua intersecção com os ideais do Manifesto Antropófago de 1928, centralizando essa discussão na proposta, feita por Oswald de Andrade, da transformação do Tabu em Totem.

A hipótese da palestrante é a de que, além do tabu da Europa devoradora, coube a Tarsila transformar em totem também as questões de poder da classe aristocrática brasileira, à qual pertencia. A antropofagia tinha uma atitude mítica e estabelecia três processos fundamentais para a composição de obras: a pluralidade de corpos, sua migração e seu desdobramento ou multiplicação.

A partir do esclarecimento desses três processos, Cattani focou sua exposição na análise comparativa das pinturas A Negra, Abaporu e Antropofagia (1929). Mostrou a projeção das três telas simultaneamente, apontando as evidências dos processos: a migração dos corpos de uma tela a outra. Assim, reconhecemos em Antropofagia o corpo humano, a folha de bananeira e o cacto (multiplicado) presentes em A Negra, bem como o corpo do Abaporu. Não podemos, contudo, estabelecer nitidamente as fronteiras entre os corpos humanos, que poderiam estar amalgamados numa figura monstruosa. A migração de uma tela a outra acarretou, portanto, deformações nesses corpos.

Cattani aprofundou, com esse estudo de caso, várias outras questões. Pontuamos, neste relato, os processos que a autora identificou como característicos da antropofagia de Tarsila com o objetivo de continuar nossa reflexão sobre a alteridade e a identidade. Parece-nos que o processo de migração causou um fenômeno de desdobramento da identidade, ou seja, as telas citadas colocaram-se no papel do outro, que devia ser devorado, e do “eu”, que buscava na alteridade qualidades a se devorar. Se o modernismo na América Latina buscava uma utopia de cunho nacional sem prescindir do diálogo com cânones do Hemisfério Norte, a fase antropofágica de Tarsila tornou-se cânone de si mesma e se devorou, promovendo, como afirmou Cattani, uma verdadeira autofagia.

A autora encerrou sua fala procurando indicar possíveis articulações entre as questões levantadas e obras presentes na exposição MAM60. Indagou, então, se não seria uma resposta contemporânea à antropofagia a atitude de Lia Chaia, presente na exposição com a obra Minhocão (vídeo colorido e sonoro, de 2006), que apresenta cenas da artista deglutindo e regurgitando fotos de edifícios.

Seguindo seus passos, propomos outra articulação, trazendo uma obra do acervo do MAM que não está presente na atual MAM60, mas foi exibida no início do ano de 2008, no Panorama dos Panoramas: O Jogo dos Sete Erros – proposta 1, de Chico Amaral.

A obra, de 1999, traz uma mesa de pingue-pongue com suas escalas alteradas (56 x 1020 x 71,5 cm): altura e largura reduzidas e comprimento aumentado. Em lugar de rede, no centro há um painel eletrônico que anuncia, com intervalos de alguns segundos, em letras vermelhas: JOGUE – NA VEZ DO OUTRO – SEJA O OUTRO - NA SUA VEZ.

A leitura da “rede” não tem início predeterminado, e poderíamos, também, interpretar a seqüência como: “Na sua vez, jogue; na vez do outro, seja o outro”. “Jogar na vez do outro e ser o outro na sua vez”ou “jogar na sua vez e ser o outro na vez do outro” são regras de um jogo que não se estabelece, pois as identidades dos jogadores se confundem. São necessários dois interlocutores para que a conversa do pingue-pongue exista. Poderíamos, talvez, considerar a proposta de Chico Amaral como uma representação contemporânea da recusa ao diálogo, um aspecto semelhante ao que Cattani apontou para a fase antropofágica de Tarsila, que, por jogar sempre consigo mesma, desembocou na autofagia.

 

A terceira fala da mesa 2 foi a de Annateresa Fabris, que também focou diálogo entre as acepções do moderno em diferentes contextos, propondo uma articulação entre as palestras de Kern e Cattani. Ela elegeu como ponto de partida da palestra A travessia da arte moderna algumas questões sobre os programas de aquisição de obras do MASP e do MAM de São Paulo na época da fundação dessas instituições (1947 e 1948, respectivamente).

Para Fabris, a análise desses programas remete a várias manifestações modernas. O processo do MASP, cuja figura fundamental foi Pietro Maria Bardi, configurou-se por um viés histórico, que tomou o impressionismo como ponto de partida da arte moderna. Já a constituição do acervo do MAM foi pautada, inicialmente, pela questão cronológica, ou seja, definia-se como moderno o que era do século XX. Levado a cabo por Francisco Matarazzo Sobrinho, que contou com a assessoria de Margherita Sarfatti, tal programa caracterizou-se pelo enorme destaque dado à arte italiana e às manifestações realistas, ou seja, à arte que, no dizer do próprio empresário italiano, se parecia com ele.

No entanto, Fabris demonstrou como a opção de Matarazzo não respondeu apenas a uma idiossincrasia sua. Na verdade, a arte moderna no Brasil pautou-se por não por parâmetros impressionistas, mas por uma temática nacional. A palestrante enfatizou que própria “geração impressionista” no Brasil, representada por Eliseu Visconti, entre outros, fez uma leitura bastante particular da escola francesa e não abriu mão de uma retórica acadêmica e da preocupação com o “bem acabado”.

Não sairá da geração de Visconti o pintor considerado pelos modernistas como seu precursor. Tal título caberá a Almeida Júnior, sobretudo pela forte presença da temática nacional em suas obras. A opção, para Fabris, está relacionada a outra característica dos modernistas, que é o imperativo do retorno à ordem causado pela difícil convivência com questões postas pelo primeiro pós-guerra.

A “plataforma nacionalista” foi, dessa maneira, o grande destaque da arte moderna no Brasil, mas houve algumas leituras particulares e significativas dessa arte, como “o veio dessagrante” de Flávio de Carvalho e o “mergulho no inconsciente” de Ismael Nery. Para Fabris, mesmo tendo permanecido fiel ao referente, o modernismo visual no Brasil foi capaz de desequilibrar os preceitos acadêmicos da pintura e, por isso, representou uma “instância modernizadora”.

No contexto latino-americano, houve também representantes de um modernismo que teve no impressionismo uma “estrutura de mediação entre a busca de uma liberdade técnica e a manutenção de valores figurativos convencionais”. Foram citados, entre outros, Joaquin Clausell (México), Armando Reverón (Venezuela) e Martín Malharro (Argentina).

Fabris enfatizou que, no Brasil, apenas Anita Malfatti teve um período de formação na Europa, na década de 1910. Destacou, como já citamos, a importância vários artistas latino-americanos que tiveram uma experiência européia. Dessa forma, apontou, como Kern, para as importantes trajetórias de Xul Solar, que considera uma figura “excêntrica e isolada”, Pettoruti e Torres García, que divulgaram ativamente na Argentina e no Uruguai as lições aprendidas na Europa.

O clima político da década de 1930 foi um obstáculo à recepção inicial do Universalismo Constructivo. A politização crescente da época fez com que, por exemplo, o pintor argentino Antonio Berni se afastasse da interlocução com o surrealismo e a metafísica e se aproximasse da arte engajada, do realismo crítico.

A arte brasileira, apesar dessa tendência à retomada do realismo e da figuração, não foi de todo privada dos caminhos que levavam à abstração. Para Fabris, mesmo que por um “dever de atualização”, Matarazzo deu espaço no acervo do MAM a representantes do abstracionismo e de outras vertentes do segundo pós-guerra, que eram, em geral, rechaçadas pelos modernistas. Nesse período, para Fabris, o Brasil começou a dialogar com os postulados de Torres García e a receber influências de revistas latino-americanas como Arturo, de 1944 e Ver y Estimar, de 1948, entre outras.

Retomando a questão dos acervos posta no início da palestra, Fabris ressaltou que o MASP, embora tenha abrigado exposições de Calder e Bill, praticamente não possui obras abstratas em seu acervo, detendo-se em vanguardas mais figurativas como cubismo, fauvismo e surrealismo. O museu, assim, mesmo contando com aquisições importantíssimas feitas por Bardi, não teria completado a “travessia da arte moderna”, feito alcançado pelo MAM, que tem em seu acervo a presença das linguagens abstratas, embora conte majoritariamente com obras figurativas.

Assim, O MAM, apesar das falhas na história da constituição de seu acervo, representa uma visão mais complexa da arte moderna, construindo uma identidade institucional configurada pela abertura ao diálogo com inúmeras alteridades.

DEBATE

As perguntas e observações do público também, em parte, ressaltaram a questão do diálogo com o outro na instauração de uma identidade da arte moderna no Brasil. Inicialmente, Fabris foi questionada sobre a ausência e a recuperação da arte construtivista russa nos cenários apontados na mesa redonda. Para a debatedora, por questões históricas, a arte russa ficou confinada espacialmente e só começou a ser conhecida fora de seu território a partir da pesquisa de Camilla Gray. Havia também as limitações do mercado: quando se constituíram as coleções dos museus sobre as quais Fabris discorreu, não havia obras daquela escola russa disponíveis. Assim, não foi possível o diálogo entre construtivistas europeus e russos no momento da instauração desses movimentos.

Felipe Chaimovich, dirigindo-se à Icléia Cattani, retomou algumas questões levantadas na palestra. Para ele,  houve uma proposta de análise do impasse de Tarsila a partir da própria pintura e de considerações sobre uma dualidade insolúvel de sua posição social, a de ocupar simultaneamente o lugar de devoradora e devorada. Ele lembrou que, no momento seguinte, a pintora foi para a União Soviética e essa nova interlocução provocou uma abertura de sua obra para uma pintura, do ponto de vista da arte moderna, menos relevante.

Após essa retomada, Chaimovich questionou se, na visão de Catanni, outros artistas teriam feito esse mesmo movimento: aproximar-se das raízes de questões prementes para o modernismo, descobrir-se numa situação insustentável, pela sua própria posição social, e migrar para uma arte mais  realista.

Cattani respondeu afirmativamente, aceitando como emblemática do modernismo brasileiro a saída para uma arte de cunho mais realista a partir da década de 1930. Retomou, então, a influência sofrida pelos modernistas brasileiros pelo movimento de retomo à ordem da arte européia do primeiro pós-guerra.

Fabris, então, fez um paralelo entre as artes visuais e a literatura. Lembrou que Oswald de Andrade, de certa maneira, também teve sua jornada em direção ao retorno à ordem, que pode ser verificada pela passagem de romances como Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, das décadas de 20 e 30, à obra Marco Zero (I e II) da década de 1940. Afirmou, ainda, que a busca pela ordem, pelo homem novo, deu-se em todo o continente americano, inclusive nos Estados Unidos.

Kern, então, apontou para uma voz dissonante na Argentina, também no campo da literatura. Para ela, Borges, ao regressar da Europa a Buenos Aires, chocou-se com o discurso em voga e abandonou a temática nacional, partindo para um diálogo com questões universais presentes na literatura européia.

Fabris, então, aprofundou a questão do “retorno à ordem” com a hipótese de que houve uma crise instaurada pela I Guerra, responsável por inculcar nos artistas um sentimento de responsabilidade social e a busca por uma arte sadia. Para ela, não é possível pensar a arte moderna no Brasil sem tecer essas considerações, já que nós “entramos no baile em plena crise”. Mais adiante, ela propôs que os marcos da arte moderna no Brasil sejam mudados a partir de novos estudos sobre o século XIX.

Essas e outras questões levantadas sugerem que a trama da arte moderna na América Latina não é linear, pois há diversas  declinações do termo. Assim, ainda há inúmeras vozes que, postas em diálogo com as personagens trazidas ao debate, poderão evidenciar outras facetas da identidade modernista latino-americana.