Relato Crítico: “Conservação de Obras em Trânsito/Empréstimo”
O terceiro encontro da série “Mesas-Redondas em Conservação e Restauração” foi dedicado à reflexão sobre a conservação de obras em trânsito, com foco no empréstimo de obras para exposição. O debate ocorreu no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo, no dia 16 de março de 2018, e contou com a participação de Ana Helena Curti (produtora da empresa Arte 3), Eugênia Gorini Esmeraldo (museóloga), Valéria de Mendonça (conservadora-restauradora) e Vitória Arruda (diretora de produção do Instituto Tomie Ohtake). A mediação foi realizada por Martin Grossmann, coordenador acadêmico da cátedra Olavo Setúbal no IEA.
O debate foi transmitido em tempo real e contou com a participação virtual dos alunos e professores do Curso de Graduação em Museologia da Universidade Federal do Pará (UFPA) e profissionais da Associação dos Amigos do Arquivo Público do Estado do Pará (Arqpep), reunidos por iniciativa de Ethel Soares no Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP), em Belém, dos profissionais da Associação de Restauradores e Conservadores de Bens Culturais (Arco.it) reunidos por iniciativa de Ana Caniatti no Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba, e dos alunos da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) reunidos pelo professor Thiago Sevilhano Puglieri do Departamento de Museologia, Conservação e Restauro (DMCOR-UFPEL).
Os encontros desta série são organizados pelo Grupo de Pesquisa Fórum Permanente: Sistema Cultural entre o Público e o Privado, a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) e o DMCOR-UFPEL. Martin agradeceu ainda a Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron (diretor da BBM) e a Alexandre Macchione Saes (vice-diretor da BBM), presente no evento.
Após um minuto de silêncio em memória e solidariedade à Marielle Franco, assassinada no dia 14 de março, no Rio de Janeiro, Martin Grossman apresentou a proposta desta série de encontros motivados pela preocupação permanente da conservadora Isis Baldini em fomentar o diálogo entre os profissionais das instituições de arte no Brasil em torno da da conservação do patrimônio.
Pioneirismo
Eugênia Gorini Esmeraldo relatou sua experiência no Museu de Arte de São Paulo (MASP) instituição com uma importante e requisitada coleção internacional, pioneira na realização de exposições com obras de instituições internacionais como o Museu de Arte Moderna de Nova York (MOMA), que possuía, já na década de 1980, uma vantagem em relação a outras instituições brasileiras pelo fato de contar com um sistema de ar condicionado e atender, portanto, a este requisito fundamental. Entretanto, apesar do MASP ter condições de abrigar as obras, os trâmites alfandegários sempre dificultaram o empréstimo de obras para o Brasil. Como relata Eugênia, a obra de uma artista brasileira pertencente ao Metropolitan Museum of Art, não pode ingressar no Brasil quando solicitada para empréstimo nos anos 1990 por não ser possível prever quanto tempo a obra ficaria retida na alfândega, mesmo com a autorização expressa da artista.
Valéria de Mendonça também relembrou sua trajetória na Pinacoteca de São Paulo como coordenadora do Núcleo de Conservação e Restauro, e o pioneirismo da instituição na formação do conservador-restaurador, na adequação de suas instalações com reservas técnicas e laboratório de conservação e na preparação de obras para empréstimo. Ressaltou a importância de prever a trajetória que uma obra realizará ao ser emprestada, da saída ao retorno à instituição, para que a obra seja preparada especificamente para este trajeto, com medidas de proteção que auxiliem na prevenção de riscos.
Interdependência
Ana Helena Curti, produtora na Arte 3, empresa com 32 anos no mercado, envolvida na produção de grandes eventos como vinte e quatro edições da Bienal de Arte de São Paulo, a mostra Brasil +500 e o festival Europalia, ressaltou a importância destes grandes eventos que impuseram soluções para minimizar os riscos que a movimentação de obras e sua exposição podem apresentar. Como produtora, ressalta que ao colaborar com as instituições assume todas as responsabilidades sobre aquele patrimônio, do transporte à conservação. Alguns aspectos do empréstimo de obras são especialmente desafiadores, como é o caso, por exemplo, da climatização em espaços museológicos de obras que não estão armazenadas em ambientes com controle de temperatura e umidade. Mencionou o caso de uma peça barroca proveniente de uma igreja de Salvador com cerca de 75% de umidade relativa, que rachou durante a mostra Brasil +500 após ficar exposta por uma semana no pavilhão da Bienal em um ambiente com 45% de umidade relativa.
Outro aspecto relativo aos riscos que o patrimônio pode sofrer durante o trânsito são as leis que incidem sobre a logística do deslocamento de obras mas não consideram a especificidade do patrimônio cultural: na alfândega, as obras podem ser abertas para checagem mas esta simples abertura pode comprometer sua integridade. E, ainda que não seja factível, é necessário trafegar com a nota fiscal das obras, o que torna ilegal o seu trânsito sem este requisito. Ana Helena afirma que uma adequação na legislação é fundamental, ainda que não se trate de criar excepcionalidades, é importante reconhecer as particularidades da área da cultura.
Referências internacionais
Alguns eventos foram fundamentais para ampliar o repertório e conhecimento dos profissionais brasileiros, como a exposição O Brasil dos Viajantes, de 1994, e a Mostra do Redescobrimento: Brasil +500, realizada na efeméride dos 500 anos do Descobrimento, os quais possibilitaram a capacitação dos profissionais envolvidos e de instituições brasileiras que comumente não realizavam empréstimos.
Vitória Arruda, diretora de produção do Instituto Tomie Ohtake, inaugurado em 2001, afirma que levar as obras ao público é a principal motivação dos profissionais envolvidos na realização de empréstimos, o que se alinha com o propósito das instituições envolvidas. O Instituto realiza um número expressivo de exposições, de 16 a 18 ao ano, incluindo grandes exposições internacionais. Para que seja possível realizar o empréstimo de obras desse porte, é necessário seguir as normas internacionais e obter o reconhecimento dos profissionais de outros países que muitas vezes desconhecem o fato de que uma instituição no Brasil pode contar com profissionais capacitado e ter a infra-estrutura adequada. Esta conformidade com as normas é importante mesmo no caso de exposições realizadas com obras de instituições brasileiras, pois o número significativo de obras e profissionais mobilizados para uma única exposição já indica a necessidade de seguir os protocolos.
Intercâmbios
Após as convidadas apresentarem suas experiências em instituições com significativo trânsito de obras, foram realizadas perguntas sobre as questões de conservação especificamente envolvidas no transporte de obras, a definição dos termos do Facity Report e relatos da experiência de profissionais de outros estados.
Eugênia trouxe o tema das embalagens utilizadas para o transporte de obras. No exemplo do MASP, o seu aperfeiçoamento foi realizado a partir do conhecimento adquirido com empréstimos para países como o Japão, cujo método de elaboração de embalagens foi utilizado como referência por Pietro Maria Bardi ainda nos anos 1970. Além da confecção adequada da embalagem para transporte, mencionou que outra preocupação é manter a obra o menor tempo possível nesta embalagem provisória. A troca de experiências do MASP com outras instituições na década de 1980 também refletiu nos termos dos contratos que passaram a ser adotados pela instituição, elaborados com a referência dos adotados por outras instituições internacionais que solicitaram empréstimos de obras ao MASP.
Valéria acrescentou que o trâmite para empréstimo começa com a análise do Facility Report, relatório no qual constam as condições técnicas do imóvel onde serão exibidas as obras emprestadas, as condições ambientais dos espaços expositivos e aspectos relacionados à segurança, que fornece informações fundamentais para que seja possível prever e minimizar os riscos oferecidos pelo trajeto e exibição das obras. Ela mencionou o caso de uma exposição de carrancas na Pinacoteca na qual o ar condicionado foi desligado para simular as condições nas quais as obras se encontravam anteriormente.
Ana Helena mencionou diferentes aspectos relacionados ao transporte terrestre e aéreo de obras que apresentam riscos para a sua segurança. A maior parte das vezes o deslocamento terrestre é realizado a noite o que reduz o tempo dos trajetos mas as vulnerabiliza a roubos, as estradas podem estar esburacadas e as barreiras de fiscalização não necessariamente são sensíveis à especificidade do patrimônio. Por sua vez, o transporte aéreo também apresenta dificuldades já que cada vez menos companhias aéreas aceitam transportar patrimônio cultural e quando o fazem ficam responsáveis por definir uma parte do trajeto terrestre caso este precise ser realizado.
O transporte apresenta ainda uma problemática específica, relacionada ao cronograma das exposições: é difícil prever prazos para o trajeto das obras que viajam em cargueiros, além disso muitas vezes podem surgir entraves como atrasos nas autorizações que devem ser fornecidas pelo IPHAN. Valéria mencionou a importância de termos controle do que está ao alcance das instituições e dos profissionais já que muitas questões relacionadas ao transporte não podem ser resolvidas com facilidade. Para isto, contar com uma equipe fixa responsável pela montagem e conservação é fundamental.
Responsabilidades compartilhadas
Martin ressaltou a importância de exigir que gestores se sensibilizem em relação à necessidade de garantir a integridade das obras, uma vez que a responsabilidade sobre o trâmite é da instituição e não apenas do conservador. Valéria complementou que a autorização para empréstimo passa necessariamente pelo parecer do núcleo de conservação, que indica ainda as necessidades específicas para o transporte e exibição das obras em situação de empréstimo, mas passa por todos os outros departamentos. Em geral, as observações realizadas pelos conservadores são seguidas e os custos envolvidos são absorvidos pela instituição que solicita a obra.
Em comum todas as palestrantes afirmaram a importância de garantir o acesso ao patrimônio cultural, mas ressaltaram as responsabilidades necessariamente compartilhadas pelos diferentes profissionais envolvidos na garantia da integridade das obras, uma vez que são bens público. Ainda que não apresente danos aparentes, as diferentes causas de deterioração do patrimônio tem efeito cumulativo e uma obra pode apresentar danos no futuro.
Pelas experiências e relatos de caso apresentados no encontro, é possível identificar a necessidade de ampliar a discussão sobre o tema dos empréstimos. Observado desde múltiplas perspectivas pelas a partir das significativas experiências no âmbito do trânsito de obras apresentadas, os desafios identificados vão de questões práticas relacionadas à adoção de soluções específicas para o transporte e exibição de obras em cada situação de empréstimo até questões relacionadas às normas e procedimentos, legislação aduaneira, formação dos profissionais e necessidade de criação de instrumentos para intercâmbio de referências e informações.
A diversidade de materiais componentes das obras e estado de conservação sempre apresentará riscos intrínsecos ao trânsito, afinal quanto mais uma obra se movimentar maior o risco de apresentar danos. Entretanto, a importância da sua circulação torna necessário superar esse desafio com rigor e profissionalismo no modo de nos relacionamos com as obras. Para isto, é fundamental que as instituições contem com um corpo permanente de profissionais especializados. A formação dos profissionais foi um tema tocado por Valéria, apesar da existência de graduações em conservação no país e da ampla disseminação de conhecimentos sobre conservação preventiva a partir da década de 1980, o desafio ainda é incorporar estes profissionais no mercado de trabalho para que possam adquirir experiência após concluírem suas formações.
Grandes exposições internacionais e nacionais realizadas com volume significativo de obras representaram um ponto de inflexão, com o intercâmbio de conhecimentos e práticas entre profissionais e instituições que ampliaram o repertório sobre os cuidados envolvidos no empréstimo de obras em todo o Brasil mas é preciso compreender melhor como outros estados brasileiros realizam empréstimos, quais as dificuldades que encontram e quais as soluções possíveis uma vez que foram apresentadas particularidades do estado de São Paulo.
De forma propositiva foram sugeridas iniciativas como o cadastro de empresas transportadoras, a contratação de profissionais especializados nos laboratórios de conservação das instituições e a adoção de soluções acordes às necessidades específicas de cada obra para garantir que possam ser expostas sem prejuízo de sua conservação. Como exemplo desses recursos Valéria citou o uso de vidros de proteção e barreiras térmicas e ainda a vedação das molduras, medidas que podem ser tomadas após a examinação cuidadosa das obras.
Para que os empréstimos sejam realizados com segurança é necessário reconhecer a especificidade do patrimônio cultural e encontrar um marco comum, compartilhado por todas as instituições e profissionais envolvidos, a partir do sejam definidos os procedimentos adequados e traçadas as expectativas para que os problemas ainda hoje encontrados sejam superados.