Performatividade e narrativa
Em plena tarde de quarta-feira (08 de julho de 2009), véspera de feriado, o espaço do CCSP destinado ao evento estava cheio de gente para ouvir e conversar sobre Performatividade e Narrativa. Abrindo as primeiras falas destinadas ao público, Rafael, da dupla Los Torreznos, comentou que fariam o possível para não serem enfadonhos - e conseguiram!
Seguindo a verve do humor, Cristiane deu início à conversa agradecendo e comentando o estranhamento que sentiu diante do convite para participar de um evento sobre performance: durante muito tempo havia se perguntado sobre em qual categoria artística seu trabalho poderia ser encaixado.
Vinda do teatro, com forte influência da comédia Del arte e da nova-dança, o norte da sua trajetória artística foi a capacidade de compartilhar, evitando o que chamou de ensimesmamento. “Desenhar nos corpos e nas sensações algo que pudesse “derramar” dos palcos e chegar na platéia na forma de sensações e imagens”, disse ela. Nesta pesquisa, desenvolveu um trabalho na possibilidade de o espaço de apresentação oferecer a narrativa, com base em improvisação com relações temáticas de materiais recolhidos do rádio, TV e falas dos moradores.
Assim, entrou no que para ela corresponde à característica da relação entre narrativa e performatividade, pois enquanto a primeira oferece estrutura, e segunda desmonta as estruturas: “a performatividade beira o efêmero”, ela disse, “um risco para quem faz e para quem vê”.
No espetáculo “experimentações inevitáveis”, partiu da idéia de que “o que meu corpo faz minha cabeça não pensa”, organizado de modo a contar uma história de um modo não linear e focado no prazer da intensidade, propiciada pelo modo como se retira e se insere no cotidiano. Trata-se de um processo onde a narrativa não depende mais da relação causa-efeito - ou do drama – redimensionando a própria narrativa.
Desse modo, seu papel, como diretora, não foi mais o de favorecer o ensaio, mas o treino e o pensamento: combinar as estratégias do jogo, as regras de articulação das linguagens e facilitar o movimento como surge dentro das regras do jogo. Então o método vem junto com a idéia e o conceito que se pretende expressar e comunicar: “meu método é uma extensão dos meus anos de vida e do meu modo de vida: partilhar com os colegas, multiplicar, levar à comunicação, verificar”.
Usou uma expressão muito bonita: “significa jogar com o infinito no limite”.
A esse jogo ela chama: “possibilismo”.
E aqui o limite da narrativa ajuda: “a percepção do limite proporciona a capacidade de ir um pouco mais, e a narrativa pode funcionar como esse limite”.
Ouvindo Cristiane falar sobre seu método, lembrei de um filósofo analítico, Gilbert Ryle e do seu livro “O conceito de mente”. Neste livro, ao questionar a concepção de comportamento inteligente cartesiano, cujo imperativo é “pense antes de agir”, Ryle chama a atenção de que a ação inteligente não depende dos antecedentes - pensar, concluir e agir - mas do treino: fazer pensando. A concepção cartesiana pressupõe que o pensamento acessa a verdade subjetiva antes de o corpo entrar a ação, como se o pensar não tivesse nada a ver com o corpo. Mas se as conclusões verdadeiras sobre a ação devem ser antecipadas... a possibilidade de interagir com inteligência nas situações inesperadas é nula! Mas sabemos que na prática agimos de modo inteligente sem a antecipação de conclusões subjetivas. E poderíamos dizer que o método da Cristiane é focado na possibilidade de favorecer a ação inteligente dentro da situação imprevista, e dela nascem os aspectos performativos do seu trabalho.
Levando adiante o comentário de Cristiane sobre o espanto ao ser chamada para um debate sobre performance, Jaime observou que essa dificuldade de categorização se deve ao fato de que na performance o interesse é pela fronteira, e não pela diferença com as outras artes: a relevância está nas idéias e na livre escolha das linguagens para expressá-las.
A dificuldade de categorização implica, nas instituições apoiadas e noções convencionais, na impressão de um caráter “pouco sério”. Daí o nome “Los Torreznos” favorecer uma afronta com a “seriedade” da arte. Los Torreznos, em espanhol, é uma expressão que significa grosseiro, desagradável, um nome pouco atrativo, que fecha portas.
A dupla faz performances desde os anos 80, quando ainda era uma arte desvalorizada em toda Europa, portanto só se fazia isso por iniciativa individual, sem subvenções que facilitassem: “vivemos o ‘construir por si mesmos’”- disse Jaime.
O trabalho da dupla é muitas vezes apresentado como político. Diante disso, quis saber o que pensavam sobre uma questão que vem me intrigando já há algum tempo: a idéia de arte performativa é, eticamente, associada aos valores da democracia contra o autoritarismo, como: comunicação, respeito à diferença, atenção à situação. São valores bastante defendidos pela democracia do capitalismo contemporâneo. Até aqui tudo bem. Mas numa perspectiva de logo alcance, como se insere nas artes performativas a perspectiva da Utopia? Ou seja, uma perspectiva que nos possibilitasse a elaboração de um imaginário que levasse esses valores para outra dinâmica econômica, capaz de superar o capitalismo? Ou o capitalismo está dado como definitivo e o máximo que poderíamos imaginar seriam essas emendas de cidadania?
Compreendendo a minha pergunta e solidários com ela, disseram que a arte não é tão importante, outras instâncias da atividade humana têm mais poder para realizar essa transição. Acentuaram o caráter polissêmico do seu trabalho, novamente com caráter democrático, para evitar o risco de a arte política ser convertida em arte ideológica.
De fato, a arte sozinha não tem esse poder e é bom preservar sua polissemia democrática. Mas deixo aqui ao leitor a pulga, para que fique atrás da sua orelha: como a arte performativa poderia contribuir com um imaginário que nos permitisse visualizar uma sociedade pós-capitalista, preservando o caráter democrático e instável da improvisação inteligente?
De algum modo Los Torreznos já propõem um processo afim com essa questão, ao admitir que a formação da dupla visou romper com a concepção do “criador” na direção de um trabalho coletivo, onde são forçados a desenvolver o “exercício radical” do diálogo. Ao afirmar a criação coletiva esbarram de frente com a concepção de indivíduo e os “méritos individuais”: o suporte do capitalismo.
Sobre as características do seu trabalho, apontaram: a simplicidade: “não colocar em cima, mas tirar de cima”; relação com o contexto: acessibilidade, “contra os guetos da arte contemporânea” e um dos critérios para construir a narrativa; a construção da narrativa com quem observa: “cultivar um público que queira trabalhar junto” com cada tema.
São características que favorecem a limitação do âmbito do trabalho: “quanto o limite, maior pode ser a sua intensidade.
A isso eles chamam de “constrição”.
O humor característico do trabalho da dupla não é um objetivo, mas uma conseqüência: “um ponto de chegada que aparece espontaneamente” – disseram.
Quanto ao método, enfatizaram: “qualquer pessoa pode fazer o trabalho que fazemos”. Não se trata de um trabalho que exige o preparo físico especial de um “artista habilitado”. Pessoas “normais” poderiam realizá-lo. No entanto, reparam que nem tudo o que fazem pode ser “ensinado”, porque existe um pensamento anterior e as tentativas de ordenação: e isso é radicalizado na experiência. “Encontrar o conceito e o conceito a sua forma: esse é o trabalho, esse é o método” – essa é a síntese.
Enfim, foi uma ótima tarde, e espero que com esse texto possa oferecer um gostinho do que vivemos para quem não estava lá!