Colecionismo em três atos
Relato das falas de colecionadores ocorridas em Diálogos da SPArte
João Carlos Figueiredo Ferraz
Todos três colecionadores convidados para os diálogos da sp-arte afirmaram ter se aproximado sem uma linha de pensamento específica e de uma maneira espontânea do colecionismo. Para João Carlos Figueiredo Ferraz, que foi introduzido ao mundo da arte pelos amigos na década de oitenta, foram sempre as obras que o escolheram como seu vigia: ele freqüentava o circuito e dirigia o olhar para aquelas que lhe provocassem o gosto, arrebatamento, estranhamento ou paixão.
Ferraz conta como na década de oitenta o nicho de atuação profissional era mais reduzido e por tanto as relações mais aprofundadas: contava com a orientação de críticos como Rodrigo Naves, com a disposição dos artistaspara se relacionar social e intelectualmente, com os amigos para construir o gosto,e com o olhardas galerias que já filtrava as obras.
Depois de quase vinte anos comprando obras e acumulando caixas, foiem 2001 que sentiu haver criado uma coleção maior do que o simples ato de adquirir. Houve nesse tempo, segundo ele, um tato invisível que atravessou o gosto e fiou uma harmonia entre as obras; mesmo de diferentes autores, épocas e pensamentos (diz-se que quem coleciona tem espírito de curador, como quem atua quer ser diretor).Quem elucidou essa trama, foi Stella Teixeira de Barros, fazendo a curadoria da Coleção Dulce e João Carlos Figueiredo Ferraz, no MAM, em 2001. Nesse momento Figueiredo Ferraz afina a direção da sua coleção, aprende sobre a renúncia em prol da coerência da sua coleção —focada principalmente em arte brasileira da década de oitenta até hoje, pontuada por obras internacionais— e começa a pensar sobre o projeto Instituto Figueiredo Ferraz, em Ribeirão Preto.
O instituto Figueiredo Ferraz, que abriga uma coleção de mais de 800 obras,teve 2.500 visitas já na primeira exposição, curada por Agnaldo Farias (curador da 29a Bienal de São Paulo) e é considerado um viabilizador do acesso à arte contemporânea no ‘deserto cultural’ da região. Inevitavelmente se pensa no Instituto Inhotim, de propriedade de Bernardo Paz; e num modelo de patronato que se está replicando dentro do Brasil: onde existe uma pequena estrutura de difusão cultural (oficial),são os colecionadores particulares que acabam por assumir esta posição, instituindo-se como emissores de conhecimento e cultura, e posicionando-se como mecenas da região.
É claro que uma palestra sobre colecionismo hoje assinala a prosperidade do circuito artístico brasileiro e atua como testemunha de casos de sucesso para gerar confiança no mercado. Como diz Figueiredo Ferraz, ‘a arte brasileira agora é mundial, pois participa das grandes coleções e exposições’. Mas não estamos falando de inversão em biocombustível: quando se fala de colecionismo, evita-se mencionar cifras, risco ou oportunidade; a aproximação tem um tom de paixão e desprendimento, onde o dinheiro é apenas um facilitador para uma tarefa maior, quase espiritual. E o maior arrependimento de qualquer colecionador, nessa busca, são as obras que deixou passar.
Catherine Petitgas
A francesa Catherine Petitgas, que se retirou do mercado financeiro há quinze anos, como muitos colecionadores,apresentou outro modelo de patronato na palestra, a partir de ações específicas: o colecionismo aprofundado de cada artista (collecting in depth), a adesão e subsequente patrocínio de museus e instituições e o apoio à publicação de livros e catálogos sobre determinados contextos e artistas. Petitgas é uma figura conceituada no circuito paulistano, pela dedicada atenção à arte contemporânea brasileira, que veio após anos de obsessão com aprodução mexicana.
Do mesmo modo que o Figueiredo Ferraz, Catherine Petitgas não identifica um conceito que entrose a coleção (da maneira como um curador faria). Porém, ela reconhece que seu passo pela Cidade do México nos anos oitenta, entendidocomo a experiência de viver na megalópole,criou uma intuição que foi traduzida em coleçãocom a orientação dos galeristas, que afinaram seu gosto. Antes de começar a comprar, Petitgas conta que fez questão de preparar o terreno, estudando na Christie’s e no Goethe Institut,e dando visitas guiadas na TateBritain. Ela defende uma aproximação informada e intelectual ao colecionismo, que comece pela aquisição de obras menores de artistas jovens, para passar à procurade trabalhos maioresdos heróis desses artistas. A presença constante em exposições, bienais e feiras de arte, a compra de trabalhos ambiciosos que possam participar em exposições relevantes, e o apoio aos museus e instituições próximas ao colecionadorrenderão credibilidade à coleção.
Petitgas comenta sobre sua experiência, há oito anos, no comitê de aquisições latino-americanas da Tate em Londres: metade dos membros paga a taxapara usufruir a vida social, e metade são colecionadores hardcore que aproveitam a discussão sobre a aquisição das obras. O curador apresenta mais obras do que o orçamento previamente definido poderia abarcar, para estimular a aquisição, os colecionadores se preparam para argumentar em prol das obras que querem favorecer, e o comitê deve assumir critérios alheios a suas coleções individuais para medir a pertinência de uma obra dentro da coleção do museu. A final, diz Petitgas, a ansiedade de ‘acertar’ na obra se deve à que quando a Tate compra, indica uma direção. Outros comitês onde Petitgas participa são o da Whitechapel Gallery em Londres, o Centre Pompidou em Paris, e Gasworks Residencies em Londres.
Para Petitgas, outro papel do colecionador é o estimulo aos chamados artist-runspaces, laboratórios para artistas jovens. Segundo ela, há um novo espaço na Tate que busca desenvolver espaços para a experimentação, onde curadores jovens possam trabalhar em parceria com instituições independentes de mercados emergentes. Cita como exemplo a SAPS, na Cidade do México e a SALT em Istambul.
E qual seria, segundo ela, uma das recompensas de ser colecionador? A relação de posse e a proximidade com as obras. Um exemplo: enquanto ninguém pode ver o que há por trás dos BlindSelfPortraits, obra do Mexicano Abraham Cruzvillegas, Catherine só precisa virar as telas da versão que ela adquiriu e olhar. Como esta obra, ela tem outras 350 ao seu dispor.
Luiz Augusto Teixeira de Freitas
Dos três convidados da palestra, Luiz Augusto Teixeira de Freitas é o único que criou sua coleção em relação estreita com um curador: Adriano Pedrosa, figura ubíqua no circuito artístico brasileiro. Luiz Augusto narra que no começo, ele apenas tinha algumas noções de arte, e comprava em leilão, por instinto, pela adrenalina de concorrer. Sem indicação de ninguém, foi rejeitado das principais galerias de Londres e Lisboa onde tentou comprar. Retomando o contato com o amigo Paulo Vieira, descobriu que ele era um colecionador reconhecido noBrasil, e pediu-lhe ajuda para entrar no mercado. Vieira indicou três pessoas para ele: a galerista Luisa Strina, quem, segundo ele, mal o atendeu na primeira visita, a galerista Marcia Fortes, quem lhe deu uma aula de arte brasileira de oito horas, e o curador Adriano Pedrosa, quem só aceitaria a empreitada se tivesse uma projeção institucional. Hoje Luiz Augusto possui não uma, senão três coleções e mais de oitocentas obras: sua coleção particular, a coleção de desenhos da Madeira Corporate Services, e a coleção de livros de artista que começou em parceira com sua filha.
Para Luiz Augusto, colecionar desenhos é uma forma rápida e econômica de fazer uma coleção, pois em pouco tempo se constrói um panorama significativo. Cita o exemplo da sua mostra “Desenhos A-Z” (2005) com curadoria do Adriano Pedrosa, exibida no espaço Porta 33 em Funchal. A mais recente exposição, “Em Obras, Arte y Arquitectura na Coleçao Teixeira de Freitas” (Tenerife, 2011) da conta da expansão de mídias e referências em dez anos de construção da sua coleção, com cinco salas coletivas e cinco individuais. Luiz Augusto planteia a visibilidade que este tipo de eventostrazem ao colecionador como um problema, mas justifica o seu como proveitoso para o deserto cultural de Tenerife.Participou em outras iniciativas de apoio como Projeto Pampulha e uma bolsa para residências no Brasil.
Uma das interrogaçõesda palestra era a relação com Adriano Pedrosa. Luiz Augusto a descreve como uma troca constante, de diálogo semanal, pesquisa e encontros regulares. Reconhece que é um processo lento, de visitas e descobertas conjuntas nas feiras e nas visitas aos ateliers. Esclarece que não compra exclusivamente o que Adriano lhe indica, e que várias obras suas não entram dentro da linha curatorial proposta. A orientação que foi-se perfilando na coleção tem a ver com construção, desconstrução e arquitetura na obra de artistas da geração do Luiz Augusto ou mais jovens do que ele. Hoje seu interesse está voltado à aquisição de obras mais históricas e conceituais dos anos setenta, que segundo ele, são menos cobiçadas pelo mercado do que peças mais materiais, como a pintura.
Luiz Augusto menciona que não tem mais o mesmo interesse (nem a necessidade) de participar nas práticas sociais relacionadas ao colecionismo que teve dez anos atrás. Para ele é um ato de resistência restringir sua presença a algumas das muitas feiras resultantes do crescimento hiperbólico do mercado. Afirma que sua coleção não é fácil nem esteticamente complacente, e alheia às armadilhas do mercado. Agora espera mudar o rumo do seu interesseda arquitetura para a literatura, nessa busca, que segundo ele, tem sido sua salvação.
Do ato de colecionar
Omito os artistas que os colecionadores mencionam neste relato (em caso de interesse, estão disponíveis no site deste Fórum Permanente os vídeos que registraram as falas), para me focar nas aproximações do colecionismo pelos convidados. O que começa como um processo desconexo, intuitivo, vai ganhando um espírito de descoberta e de conquista, do mercado, da história da arte, e na realidade, deles mesmos. Não podemos conceber uma coleção sem um processo interno de erros e acertos. O gosto esgota, os interesses mudam, as obras perdem ou ganham valor de acordo com o mercado,as peças se deterioram, os casais se desencontram na hora da compra ena coleção sempre vai faltar‘aquela obra’... Os interessados podem traçar neste relato uma série de estratégias úteispara começar a colecionar. Trata-se de estar informado, pesquisar, construir proximidade com certas pessoas, acompanharos artistas, assistir às feiras, investir sem o olho no dinheiro, começar aos poucos e crescer gradativamente. Essa é uma maneira de colecionar. Mas colecionar para quê, e em consequência, o quê, somente fazendo pode-se esclarecer.
Às vezes sinto o ato de colecionar como uma tentativa de recusar a própria morte ou a daquilo que nos interessa: pode ser uma época, um conceito, um lugar, uma teoria, ou até uma forma. Colecionar é materializar, em linguagens emprestadas, o indefinível na nossa própria individualidade. Nas palavras de Jean Baudrillard, “o que você realmente coleciona é sempre você mesmo”.