O pulo do gato
Mesa: Mercado latino-americano.
Participantes: Patricia Sloane [Curadora, México], Virgílio Garza [Christies NY] e Alessandra D’Aloia [Presidente ABACT].
Na segunda mesa da programação cultural da SP-Arte 2011, o diretor de arte latino-americana da Christie’s, Virgilio Garza, a curadora mexicana Patrícia Sloane e a galerista e presidente da Associação Brasileira de Galerias de Arte Contemporânea (ABACT), Alessandra d’Aloia, estenderam parte das discussões da mesa precedente, Discursos sobre o mercado, e retomaram temas discutidos no ano anterior por representantes da Sotheby’s, na mesa Quanto vale? Um olhar sobre arte e design contemporâneo e latino-americano.
Neste relato, gostaria de aprofundar a discussão acerca da relação entre o mercado primário e secundário e da relação entre mercado local, regional e internacional, isentando-me da discussão sobre os desafios, limites e utilidades de categorias como “arte latino-americana” na promoção e comercialização da arte contemporânea, uma vez que já abordei tal questão anteriormente[1].
Mercado primário e mercado secundário
Alessandra d’Aloia entende que as galerias do mercado primário devem ter, primeiramente, um compromisso com a carreira dos artistas que representam. Trata-se de um trabalho de longo prazo que tem por base uma rede de relações com críticos, curadores e instituições.
De fato, além da comercialização, outras atividades inerentes às galerias do mercado primário incluem a documentação da produção, o incentivo e o apoio a exposições, publicações e à inserção em coleções institucionais importantes. Tudo isso contribui fortemente para a consolidação da carreira de um artista, e consequentemente, para a construção gradual e sustentável de seu valor no mercado.
Já o mercado secundário, segundo Virgílio Garza, “tem primeiramente o compromisso com seus consignatários”, ou seja, o que se busca é uma boa venda, que gere lucro para quem consigna, assim como para a casa de leilões que fica, via de regra, com uma comissão de 10 a 20% do valor de venda. Subjacente a isso, a repercussão dos preços alcançados, no caso dos leilões, é muito maior do que nas negociações privadas. Os leilões oferecem liquidez e visibilidade, o que pode ser benéfico para o circuito das artes, inclusive para os próprios artistas.
Deve-se considerar, no entanto, os seus riscos. Um artista que atinge um preço recorde num leilão, em geral, não tem direito a receber parte do lucro obtido na revenda de sua obra[2]. Ademais, tratando-se de um artista jovem, ainda não bem representado em coleções institucionais, isso pode ser um fator prejudicial, como apontou Patrícia Sloane, referindo-se a Francis Alÿs: se o preço sobe muito, “as instituições onde este artista gostaria de estar já não poderiam comprar, aí as instituições passam a depender do setor privado, para que doe a obra ou o dinheiro para aquisição”. Isso também pode criar expectativas e uma pressão sobre o artista que nem sempre são benéficas para a sua produção. Um efeito em cascata, com outros colecionadores e mesmo amigos do artista querendo se desfazer de sua obra em troca de lucro rápido, pode provocar um aumento da oferta e desequilibrar os preços; ou, ao contrário, o aumento da demanda pode pressionar o mercado primário e o artista a um aumento rápido da produção.
As questões-chave aqui dizem respeito à estabilidade e à sustentabilidade, fundamentais para o mercado primário e pouco importantes no mercado secundário. Uma vez atingido o preço recorde em um leilão, como a galeria do mercado primário deve reagir para garantir a continuidade do desenvolvimento da carreira do artista? Essa é uma questão com a qual algumas galerias deverão se deparar com mais frequência, dada a visibilidade que a produção brasileira vem alcançando no mercado internacional.
Nos últimos dois anos, assistimos a sucessivos recordes de duas artistas brasileiras contemporâneas vivas em leilões internacionais: Adriana Varejão e Beatriz Milhazes. O marco de um milhão de dólares foi ultrapassado, e isso é um valor significativo se considerados os departamentos de arte latino-americana da Christie’s e da Sotheby’s, mas é irrisório no contexto dos departamentos de arte contemporânea. Ou seja, o potencial de crescimento é enorme, e é possível que tais recordes voltem a ser quebrados por estas e muitos outros artistas brasileiros.
O interesse de colecionadores e de instituições internacionais pela produção brasileira e a crescente cobiça de galerias e de casas de leilões estrangeiras pelos colecionadores brasileiros podem ser positivos, desde que os agentes das diferentes instâncias do sistema da arte contemporânea no Brasil tenham consciência e controle da situação, de forma a ampliar o diálogo, mas não ficar refém de iniciativas e de agentes internacionais.
Mercado local/regional/internacional
Para a arte contemporânea, o diálogo internacional é fundamental. Olav Velthuis havia comentado, na mesa anterior, que o assustava o fato de o mercado brasileiro estar isolado: “podemos olhar para esta feira, e o que me espanta é que eu vejo galerias brasileiras, apresentando trabalhos de artistas brasileiros e colecionadores brasileiros comprando. Acho que o mercado brasileiro está indo bem, mas o foco ainda é muito brasileiro, vocês dizem que está mudando, mas olho para esta feira e vejo arte local sendo oferecida aqui. Por um lado, isso mostra que o mercado local está dinâmico, mas isso também é preocupante porque pode haver alguma relação com o mercado internacional, mas ao mesmo tempo há um isolamento, o que pode criar uma situação de bolha”.
A avaliação de Olav não é de todo equivocada, embora seja muito mais grave no contexto institucional do que no mercado. As instituições brasileiras, com exceção de Inhotim, talvez, não colecionam de forma consistente a produção nacional, muito menos a internacional[3]. Tampouco se interessam ou dialogam suficientemente com outros países latino-americanos, como parece fazer de forma exemplar o Museu de Arte Contemporânea da Universidade Nacional do México, citado por Sloane.
O mercado não está isolado, mas existem entraves a uma maior internacionalização. Os colecionadores já começaram a introduzir artistas internacionais em suas coleções e são cada vez mais assediados por galerias e instituições internacionais. As galerias brasileiras atuam fortemente nas feiras internacionais e representam também artistas estrangeiros. No entanto, sobre a importação de obras de arte incidem quase 50% de impostos. Os entraves fiscais e burocráticos para circulação de obras de arte são enormes. Isso explica porque galerias estrangeiras e casas de leilões internacionais ainda não se instalaram no Brasil.
A falta de políticas públicas adequadas para o setor mantém relativamente afastados agentes do mercado internacional. Por outro lado, tal isolamento permitiu que o setor se organizasse melhor sem muita pressão de uma concorrência internacional. Agora, no entanto, parece ser o momento para uma convergência entre as políticas públicas voltadas ao fortalecimento do sistema das artes como um todo e somadas a iniciativas do setor privado, como as capitaneadas pela ABACT, voltadas à expansão, profissionalização e internacionalização do mercado brasileiro, podem determinar o pulo do gato. Somente com um sistema organizado e fortalecido internamente – nos âmbito da formação, da produção, da crítica, das instituições e do mercado – o Brasil poderá finalmente se posicionar como um player importante no mapa internacional das artes.
[1] Ver: MoMA (re)descobre a América Latina, O Brasil na coleção do MoMA: Análise da inserção da arte brasileira numa instituição internacional e O peso do mercado secundário no processo de formação de valores artísticos no sistema das artes – o exemplo da Sotheby’s.
[2] Com exceção de países onde se institui o direito de sequência (droit de suite), originário na França e hoje estendido a outros países da União Europeia, em que os artistas ou seus herdeiros recebem um percentual sobre a valorização da obra por ocasião de cada revenda, durante a vida do artista até 70 anos após a sua morte.
[3] A deficiência das políticas de aquisição e outros aspectos sobre o funcionamento dos equipamentos voltados à arte contemporânea no Brasil foram analisados na pesquisa “Economias das exposições de arte contemporânea”, que realizei em 2009-2010, iniciativa do Ministério da Cultura, e participação do Fórum Permanente e Fundação Iberê Camargo. Os resultados da pesquisa permanecem inéditos até o momento. Para mais informações, ver: http://www.forumpermanente.org/.rede/ee