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Lastro e memória

relato por Gilberto Mariotti

Relato da mesa Coleções em museus (Luiz Camillo Osório, Marcelo Araujo, Tadeu Chiarelli, com mediação de Maria Hirzman)

 

A mesa, constituída de diretores e curadores de três de nossas mais importantes instituições, parecia garantir ao público da SP Arte a importância do papel desempenhado pelo Museu na dinâmica do mercado de arte; como lastro simbólico que oferece credibilidade ao colecionador privado. As aquisições feitas pelos museus hoje funcionam esquentando o mercado, na medida em que dão lavra ao trabalho de artistas que competem pelos selos de coleções importantes. Para realizar aquisições, o Museu depende inclusive de patrocínios e recursos privados, e essa dependência completa um ciclo que se reproduz continuamente .

A apresentação, portanto, de procedimentos, critérios ou estratégias de aquisição de obras desenvolvidas pelo Museu pode servir de guia ao investimento privado, quem sabe até para a quebra de alguns paradigmas quanto à relação das instituições mais tradicionais com a produção contemporânea e suas demandas, em que avanços significativos convivem com retrocessos frequentes.

Assim as falas se fizeram no encontro concorrente entre tais estratégias estruturadas institucionalmente para aquisições de obras e os contextos institucionais em que outras urgências se apresentam continuamente. Há soluções e limitações expostas em cada apresentação. Mesmo assim, para uma certa parte do público, a possível novidade nas falas de diretores de museus brasileiros é a ausência da reclamação pura e simples sobre as limitações institucionais. Os três palestrantes são exemplos de competência, cada um em sua área de pesquisa, ocupando cargos em que tais conhecimentos são postos à prova no contato com problemas práticos do dia a dia dos museus.

A fala de Luiz Camilo Osório, curador do MAM do Rio de Janeiro desde 2009, se serviu do tema da aquisição para um gancho com a apresentação do PIPA, prêmio criado com este fim, em sua segunda edição e sua inserção em sua proposta curatorial. Pensada a partir de três especificidades que se somariam para oxigenar o museu, enquanto espaço de problematização do presente, esta proposição nos faria ver o museu como tendo: algo de escola (por isso repensar o espaço pedagógico ou setor educativo) algo de parque (por isso pensar na relação do museu com o parque Burle Marx, enquanto mediação entre espaços da cidade) e algo de experimental, uma dimensão que perpassaria vários de seus projetos e atividades.

Osório aproveitou inclusive para retomar o pensamento curatorial frente ao acervo do MAM e suas particularidades, rearticulando a exposição permanente a partir de cinco eixos: “Brasil, visões e vertigens”, pensando o país em uma temporalidade heterodoxa; “Cidade partida: conflitos e afetos”, questões sociais ligadas à forma da cidade e a dimensão afetiva das diferenças; “Respirações geométricas”, composta por obras de aspiração construtiva; “Corpos lúbricos: identidades em trânsito”, onde o corpo é protagonista e “Mergulho na coleção”, onde um artista representativo da coleção é visto com mais profundidade, em que atualmente estão expostos desenhos de Roberto Magalhães.

Marcelo Araújo, diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo, começou contextualizando o modelo de administração por organização social, um modelo novo no Brasil que busca mais agilidade no enfrentamento dos problemas cotidianos e que, segundo ele, tem sido exitoso, embora ainda pouco compreendido. Haveria, segundo diagnóstico corrente ou senso comum, suposta fragilidade na constituição e possibilidade de ampliação dos acervos brasileiros. Portanto se coloca a necessidade de delimitação de prioridade para a política de aquisições. A chave para essa política, no caso da Pinacoteca, estaria no programa de exposições temporárias, que têm o papel de evidenciar produções que interajam com o acervo.

E embora artistas e colecionadores tenham sido extremamente generosos doando trabalhos, tem se buscado verba para aquisições, tanto por meio da lei Rouanet, quanto por editais públicos que prevêem prêmios para este fim, dentre os quais foram citados o da Caixa Econômica e da Funarte.

Ainda conta que, ano passado, graças à iniciativa do então secretário de cultura João Sayad, houve um repasse à Pinacoteca de três milhões de reais, o que possibilitou a compra de obras de vários artistas dos anos 1960 e 1970, além de uma obra estratégica para o acervo: “Imigrantes III”, de Lasar Segall.

Tadeu Chiarelli iniciou a fala revelando dificuldade em desvincular a discussão da experiência que tem tido na direção do MAC-USP de sua preparação para a mudança de sede do museu, a ocorrer em breve. Depois apontou algumas singularidades da história desta instituição: sua criação não surgiu de uma necessidade interna da universidade, mas de um acordo entre parte da direção do museu e Ciccilo Matarazzo, que alterou seu direcionamento original assim como seu nome, de MAM pra MAC. Segundo ele, a mudança de nome significou também uma mudança de natureza do museu.

Walter Zanini, então diretor do MAC, instituira uma atitude experimental em sua prática curatorial em conformidade com o contexto da universidade. A coleção Matarazzo chegou ao museu em sua fundação e foi reunida por meio de doações e premiações ocorridas nas edições da Bienal de São Paulo até então (primeira metade do século passado). Posteriormente vai sendo incorporada ao acervo a chamada arte conceitual dos anos 1960 e 1970, representada também por obras de fôlego. Mesmo assim é o acervo relativo ao período moderno que ainda produz o reconhecimento mais amplo do museu.

A partir da iminência recente de sua reinauguração (e inicialmente a urgência que lhe dava o prazo inicial que depois foi adiado) houve um mergulho crítico na coleção pela equipe do museu. O objetivo passou a ser propor uma interpretação da arte no século XX sem submeter o corpo curatorial ao que já havia sido escrito.

A partir da criação do que iniciou como um grupo de estudos e acabou por se tornar um espaço de reunião de jovens pesquisadores e curadores que tem colaborado com novos estudos e visões para o acervo e possíveis conexões com a produção contemporânea, começa a surgir o desenho de uma exposição de trabalhos de artistas que tem sido convidados a falar, no museu, de suas próprias trajetórias[1].

Na discussão do acervo realizada por este grupo de pesquisadores ficou claro que as atividades do museu devem ser pautadas pelas questões propostas pelas obras que compõem o acervo, para então se pensar em sua compreensão a partir da produção contemporânea.

 

 

Memória e experimentação

Por mais que possam diferir no jeito ou na aproximação com o tema da mesa, as falas refletiram o compromisso dos diretores com seus museus e acervos deixando ver a solidez de suas formações. E as concepções curatoriais se mostram convergentes em alguns pontos. Por exemplo, o descarte de qualquer postura historicista ou mesmo do uso de critérios cronológicos como organizador dos acervos. Também é comum a todas as falas a proposta de relação mais orgânica entre acervo e produção atual. 

Caso raro nas mesas do dia, surgiu do público uma pergunta muito interessante: qual a política de baixas? Ou seja, o que fazer com as obras que o museu não comporta mais?

Tadeu Chiarelli respondeu com a divulgação da exposição “MAC em obras” em que se problematiza a impossibilidade ou dificuldade técnica de manutenção de obras efêmeras características do acervo dos anos 60 e 70. A exposição pretende que essa discussão se dê entre especialistas e um público mais amplo. Mas colocou que o descarte seria radical demais para o museu.

Marcelo Araújo afirmou que o destombamento no Brasil é prática inexistente. Haveria um código de ética: quando uma obra, depois de revisão de apropriação, se mostra inadequada ou descontextualizada a ponto de a instituição considerar sua eliminação do acervo, sua venda reverteria em recursos para uma nova aquisição. Relatou também a polêmica gerada pela remontagem recente de instalação histórica (1981) de Rafael França no Octógono. Foi impossível remontar o trabalho como originalmente proposto por falta de suporte tecnológico, forçando sua readequação à novas tecnologias.

Enfim, colocada de outra forma, reaparece a pergunta que se faz há muito tempo: por que o Museu não pode esquecer? O lastro simbólico representado pelo Museu não compreende o grau de imaterialidade do objeto de arte, já apontado por alguns dos próprios trabalhos problematizadores dessas questões nos anos 60 e 70? Ou devemos ver isso como reação institucional a essa problematização, uma apropriação desta produção para saciar o fetiche mercadológico por uma referência material que se pretenda eterna? Paradoxalmente, o fortalecimento do lastro parece ser prerrogativa ou peça de apoio importante para a imaterialidade corrente.

Ao longo da discussão, a postura “experimental” de Zanini foi lembrada mais de uma vez por Chiarelli, como algo pertinente em relação à produção com que o antigo diretor tinha contato direto, incorporando na prática curatorial as problematizações presentes também nos trabalhos realizados no MAC, que hoje fazem parte do acervo. Seria essa possibilidade de experimentação na atividade do diretor, na prática de hoje, mais uma categoria museológica datada e arquivada? 



[1] Trata-se de “O MAC encontra os artistas”, série de palestras de artistas, ocorridas no auditório do museu, abertas ao público.