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Arte a intenção no gesto e no objeto – Relato da 1ª mesa, o pós-Duchamp no Brasil

Relato crítico – 1º Ciclo de Palestras Ready Made in Brasil – Por Diego de Kerchove

Por Diego de Kerchove

 

A mesa inaugural do primeiro ciclo de palestras da exposição Ready Made in Brasil foi mediada pelo curador da exposição, Daniel Rangel. O encontro contou com a participação de Paulo Sergio Duarte, curador, dirigente cultural e pesquisador e com o artista e curador Waltercio Caldas. A temática da mesa foi similar ao da exposição e analisou o pós-Duchamp no Brasil, abordando assim a ruptura que as inspirações brasileiras no artista francês trouxeram ao cenário artístico nacional a partir dos anos 1960 até os dias atuais.

O primeiro a tomar a palavra, após a introdução de Daniel Rangel, foi Paulo Sergio Duarte. Sua fala centrou-se, a princípio, na exposição, para a qual teceu elogios, e a destacou por ser “absolutamente contemporânea”, mesmo tendo trabalhos que remontam aos anos 1960. Ao utilizar o termo “contemporâneo”, Duarte tomou a definição do filósofo italiano Giorgio Agamben, que se distingue do significado convencional, baseado em conceitos de presente e efemeridade e que reforça a necessidade de se distanciar daquilo que é moda e enxergar o que está por trás dela. Há nessa concepção uma preocupação com a perenidade daquilo que é produzido artística ou culturalmente, tornando apenas contemporâneo aquilo que enxerga, critica e resiste ao tempo presente. Sob essa óptica, a exposição Ready Made in Brasil se faz contemporânea, segundo Duarte, pois escapa e ignora os temas controversos que parecem pautar as demais exposições ultimamente, como, por exemplo, a sexualidade.

Ao construir esse raciocínio, o palestrante fez duras críticas ao momento atual da arte conceitual, na qual, segundo ele, há muita produção de baixíssima qualidade e ocasionalmente é confundida como lixo pelo pessoal da limpeza. Duarte defendeu que a arte deve ser uma criação de conhecimento que se distingue da religião e da ciência, à medida que ela não se baseia em dogmas e muito menos num processo rígido como o científico, mas que se constrói essencialmente na experiência subjetiva e de fusão entre a obra e o público – algo que se perde na arte voltada para o mercado e para o espetáculo que se reduz à entrega de um prazer imediato e não convida à reflexão e introspecção do público frente ao objeto artístico; elementos que, pelo contrário, estão presentes na exposição Ready Made in Brasil, que, de certa forma, é uma resistência ao problema maior dos modismos que é a diluição da história, na qual movimentos artísticos muito distantes e distintos uns dos outros se confundem aos olhos do público.

Retomando essa última colocação, Waltercio Caldas concordou com a visão de Duarte de que há uma diluição da história da arte e que isso se estende para a posteridade e deforma o significado das obras. Caldas notou que Duchamp foi um dos primeiros artistas a perceber a diferença entre a persona artística e o artista e os riscos e as deformações que a moda e o sucesso mercadológico poderiam trazer, a ponto de anunciar publicamente o fim de sua prática artística, apesar de continuar em segredo privadamente e dedicar-se ao xadrez.

Nesse espírito nasceu seu readymade mais famoso: o urinol, assinado com o pseudônimo R. Mutt e intitulado Fonte. Segundo Caldas, apesar de ser considerado um readymade, não se trata de um, pois há uma construção na escolha do objeto. Ao inscrever e enviar o urinol ao 17º Salão dos independentes, que se dizia livre, pois abdicava de uma seleção das obras por seu júri (do qual Duchamp fazia parte) e tinha como única exigência o pagamento de uma taxa, ele denunciou com muito humor essa falsa liberdade, propondo como arte um objeto banal, masculino, privado em sua função mas público em sua disposição (sendo um aparato comum em banheiros públicos). Portanto, segundo Caldas, não houve acaso na escolha de Duchamp, algo que, segundo ele, é fundamental na definição de um readymade.

Daniel Rangel complementou que havia em Duchamp certo cansaço com a arte “retiniana”, ou seja, uma arte centrada na imagem, na pintura focada apenas no olhar. No Brasil, essa ruptura com a arte concreta, inspirada nesse movimento iniciado por Duchamp, aconteceu nos anos 1960 e se estendeu até a década de 1970, quando começou a haver uma consciência do objeto em si. Vale notar que esse período no Brasil não só foi o da ditadura militar – que, por sua definição, representou o conservadorismo e a rigidez em todos os sentidos –, mas também um momento de grande experimentação na classe artística, como, por exemplo, das mostras Jovem Arte Contemporânea (JAC), organizadas por Walter Zanini no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP).

Ao retomar a palavra, Paulo Sergio Duarte retraçou o surgimento dos readymades. Ele recordou que essa forma de expressão artística nasceu no contexto da Primeira Guerra Mundial, um momento extremamente trágico e de grandes crises e rupturas com as instituições preestabelecidas. Na arte, o readymade veio se opor ao sistema artístico vigente, que tinha se tornado quase uma religião para a sociedade laica europeia, na qual, segundo Duarte, os templos seriam os museus, os sacerdotes, os curadores e críticos, e os santos, os artistas. O readymade, juntamente com o movimento dadá, veio se opor a essa arte formalista e resgatou sua essência descrita séculos antes por Da Vinci como cosa mentale, em que a ideia, o conceito, o pensamento passam bem à frente da perícia na execução da obra.

Duarte ainda reforçou que nos Estados Unidos, a pop art, que bebeu diretamente dos conceitos por trás dos readymades, veio também de encontro a uma ordem preestabelecida – que, no caso, era o abstratismo. A pop art fez isso através de uma razão cínica e não crítica, levando para o museu representações de objetos frutos da industrialização, como as latas de sopa ou quadrinhos, e se contrapondo às manchas de tinta do abstratismo. No Brasil, a “nova figuração”, encabeçada por artistas como Rubens Gerchman, se diferenciou da pop art uma vez que ela não se contentou em levar uma representação fiel do objeto industrial nem da cultura de massa para o museu, mas operou através da poética e da caricaturização desses objetos, dando a eles contornos mais enigmáticos do que a pop art se propunha a fazer, o que pode ser explicado em parte pelo contexto da ditadura e da censura vigente no país.

Ao passarem para a rodada de perguntas, Daniel Rangel fez a primeira para Caldas, perguntando se ele teve contato com a obra de Duchamp desde sua primeira exposição, em 1973. Caldas contextualizou a influência exercida pelo trabalho de Duchamp afirmando que essa lhe interessava por tratar questionamentos de processamento e renovação de uma linguagem artística. Como exemplo, citou a habilidade do artista francês em brincar com a palavra e com o objeto que ele expunha. Por exemplo, com a obra In Advance of the Broken Arm (Antecipando o Braço Quebrado), que se trata de uma simples pá para remover neve, Duchamp criou o significado plástico da obra na intersecção entre a palavra e o objeto concreto.

A essas considerações, Daniel Rangel trouxe uma frase do artista brasileiro Tunga, que disse que, com sabonete, pode-se lavar as mãos ou fazer uma escultura; tudo depende da intenção. Essa frase captura bem o trabalho de Duchamp e os readymades em geral. Neles, o objeto pode ser artístico em diferentes níveis. Pelo estético, afinal, existem formas interessantes em objetos comuns e industriais, como, por exemplo, o urinol de Duchamp, que pode remeter a um orgão sexual feminino, por seu contexto e sua intenção, ou ainda pela brincadeira com seu título. Desde que exista um exercício mental real entre o artista (através da obra) e o público, qualquer objeto pode ser arte.