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100 anos depois – As peças no tabuleiro - Relato da 1ª mesa de conversa com artistas

Relato crítico do 2º Ciclo de Palestras Ready Made in Brasil – Por Maria Laura P. Iturralde Payo

Por Maria Laura P. Iturralde Payo

A mostra Ready Made in Brasil em homenagem ao legado de Marcel Duchamp foi montada pelo SESI-SP no Centro Cultural FIESP, com um conjunto de 150 obras de 50 artistas brasileiros, entre os que estavam desde os clássicos Oiticica e Clark até as novas gerações. O seu curador, Daniel Rangel, conta que “a escolha das obras se constitui a partir de dois eixos centrais: a proximidade direta com a obra de Duchamp e a conexão com o universo da indústria e da construção civil, aliado ao espaço cultural que abriga a mostra. A curadoria busca ainda refletir, de forma atualizada e contextualizada a partir da questão do readymade, acerca da referência da própria história da arte relacionada ao fazer artístico, sobretudo aquelas relativas à escultura.”

 

O título da exposição – Ready Made in Brasil – sem dúvida resgata o espírito duchampiano.  Rangel brinca com as termos assim como Duchamp gostava de brincar com jogos de palavra, com a linguística – sempre atrás de duplos sentidos e frases com vários significados. Daí que o recorte curatorial reaviva o pensamento de Duchamp e reincorpore a ruptura que a arte brasileira teve a partir da década de 1960 em diálogo entre gerações.

 

 

Made in Duchamp

 

A definição literal das palavras da língua inglesa made in é fabricado em. Contudo, a utilização corrente do termo nos remete a uma marca em si mesma - à origem -, talvez um selo de garantia para nós, para a indústria e para a lógica do comércio internacional. Representa ainda uma das marcas do valor do objeto industrial e o carimbo para a produção em larga escala. Desde outra perspectiva, valor econômico é diferente do valor simbólico, mesmo que mantenham uma estreita relação. Provavelmente, Duchamp tenha sido um dos artistas que, ao longo da vida, tentara entender empiricamente esta profunda contradição. Supondo que neste caso o termo made in indique uma origem, ele será a referência ao artista Marcel Ducham que há 100 anos, de forma anônima, agitou o cenário nova-iorquino com a obra Fonte (1917).

 

A obra Fontaine abre uma fissura na história da arte, questionando as categorias estéticas que determinavam o que é arte e o que não é arte. Logo, nos perguntamos: O que buscar na arte? Conforme dizia Duchamp, para que uma coisa seja considerada arte teria que produzir um eco estético. Eco estético em analogia com a Fé religiosa, mas também com a atração sexual. Tinha que nos produzir uma vibração, uma exaltação, um prazer categórico e forte, senão, não era arte. Tinha que apelar a nosso coração e nossa mente. Assim, o artista dizia que sentir a vibração do eco estético nas obras era similar a se apaixonar à primeira vista.

 

 

Readymade Brasil

Conversa com o artista Felipe Cohen e a dupla Gisela Motta e Leandro Lima

Mediação: Guilherme Giufrida

 

Durante o 2º ciclo de palestras Ready Made in Brasil, na conversa com os artistas Felipe Cohen e a dupla Gisela Motta e Leandro Lima, as perguntas lançadas pelo mediador Guilherme Giufrida abordaram, entre outros assuntos, de que maneira a ilusão e a posição do expectador, como parte da própria obra, constituíram o processo criativo.  Perguntas que tiveram por objetivo construir uma narrativa entre os trabalhos apresentados, os quais, apesar de semelhanças, possuem diferenças.

 

Questões como: a relação entre o acaso e o objeto; a utilização de objetos do cotidiano em combinação com as escolhas estéticas; a tecnologia; o mercado de arte e o paradigma da autoria, permearam a reflexão da conversa.

 

 

O terceiro elemento

 

Neste sentido, o trabalho escultórico de Felipe Cohen toma as possibilidades que o meio lhe oferece, para ir além do objeto em si, indo a busca de um terceiro sentido. Felipe escolhe os objetos do mundo real por eles trazerem informações e memória – o que lhe permite manipular a produção de novos sentidos, sem a intenção duchampiana do questionamento antiartístico – ou de valor da arte – como nos primeiros readymades. Identifica-se com Duchamp a partir de uma dimensão poética, na possibilidade de irradiação de um valor simbólico, como aquele que se desprende da obra O Grande Vidro, iniciada em 1913. O artista diz ter incorporado o expectador e a relação com o espaço quase de maneira inconsciente, para depois tratar da noção espacial enquanto fenômeno, no sentido amplo do termo.

 

Cohen trabalha com um objeto apropriado e outro construído, os quais, em justaposição, dão origem a uma nova interpretação que nasce do atrito entre os elementos, e acredita que o seu trabalho não é tão pensado quanto parece. Nesta mostra, a dupla de esculturas (Sem Título) propicia pensar nos momentos históricos. O que está dentro e fora das vitrines? As obras propõem produzir um eco, uma ressonância nelas mesmas e com o entorno. O espaço de dentro das vitrines é o fóssil do tempo, o tempo pensado, guardado com cuidado. Como criar um certo instante para uma coisa efêmera. Ao mesmo tempo, no par escultórico, há uma metamorfose e um fantasma preso no tempo e na memória. O conjunto requer do observador cuidado e uma atitude corporal curiosa e inquieta, o deslocamento de cima, de baixo e dos lados. Pergunto-me: o fantasma seríamos nós mesmos? Como dizia Lacan no escrito Le stade du miroir, “eu me vejo através da mediação do outro”, através das vitrines ou da procura do que buscamos na arte.

 

 

Perto de muita água, tudo é feliz?

 

Gisele Motta e Leandro Lima trazem o trabalho Chora Chuva, que aparece em cena como uma grande orquestra de baldes em tons brancos e azuis. A obra, sob o efeito da cinemática, originalmente concebida para um espaço expositivo em Vancouver no Canadá, se veste de baldes made in Brasil perfeitamente reconhecíveis de norte a sul, do sertão à costa brasileira. Um requisito na escolha de que eles fossem do lugar onde seria montado o trabalho, assim em Vancouver foram baldes canadenses, enquanto no Brasil foram usados recipientes nacionais. O projeto nasce com a vontade de simular esse momento da goteira dentro de casa, e como reflexo de uma situação de crise da qual se tenta cuidar provisoriamente. Pode existir metáfora melhor no espaço da indústria do que um produto nacional para o enfrentamento à crise?

 

Nota-se que no processo criativo, a dupla desenvolve o conceito da obra e, em paralelo, leva adiante uma pesquisa técnica de material. Com a tecnologia, atualizam o conceito. Com isso chegam ao protótipo de caixa à prova d‘água que movimenta a água.  Assim, atingem à solução do balde que move água e simula uma goteira que se completa sonoramente.

 

O trabalho do casal tem uma origem no vídeo, mas o tempo e a pesquisa os levaram a buscar a presença física do observador diante das obras, reconfigurando os meios para a criação. A escolha do recurso representa o lugar de ativação, a ferramenta para provocar e criar situações, tendo as instalações, a escultura e o meio, como situações onde o observador se questione, reflita. A prática do gatilho parece funcionar perfeitamente como ferramenta para que o expectador entenda o que se quer dizer. Nesse caso, o estranhamento representa o ponto de partida para a compreensão do trabalho. Por isso, o processo criativo envolve a preocupação do casal com o acesso dos vários públicos e a possibilidade de se generarem múltiplas interpretações.

 

 

Provavelmente, uma das reflexões mais interessantes do casal tenha se dado entorno do tema da autoria num trabalho conjunto. Onde e como identificar os traços de autoria em uma obra a dois? Um tema complexo para o qual se acharam respostas diretamente ligadas à prática, no entendimento, na identificação dos trabalhos com projetos e processos e não tanto em relação aos problemas estéticos ou sobre a técnica. Por tudo isto, os artistas enfrentaram algumas dificuldades na compreensão por parte do meio e do público, incompreensão provavelmente surgida do fato de não tentarem fazer um questionamento do belo e por não se apoiarem em uma mídia tradicional. É nesse este contexto que Gisele Motta dimensiona a autoria para além do individual, propondo o resultado como uma grande produção coletiva. Como dizia Duchamp, “a arte não é mais do que um pequeno jogo entre os homens de todos os tempos.”.

 

Neste sentido, o homem ganha por natureza uma definição social. O homem se faz socialmente tendo a linguagem como instrumento de transmissão da cultura e do conhecimento humano acumulado. Por isso, a assertividade do curador em trazer o encontro ecumênico, na Fé duchampiana, da conjunção dos tempos, mas também da Fé da arte para a vida.

 

A transparência da água, do vidro, da garrafa com água, e do som da gota não foi coincidência, houve uma escolha da curadoria em fazer dialogar os trabalhos dos artistas com os de Valtursio, Márcia Xavier, Cildo Meireles e Vinicius S.A, também presentes na mostra. Daniel Rangel reconhece que a água foi um elemento que o aproximou da escolha geral da exposição. Afinal, a água e o condutor, o conector da vida com o mundo, e onde tudo se origina. Não é mesmo?

 

Em síntese, como dizia Duchamp, “Jamais a arte pode ser definida de maneira aceitável, dado que a explicação de uma emoção estética mediante uma descrição verbal é tão inapropriada como uma descrição do medo quando se acaba de ter tido medo. Bem-vindos estamos de apreciar livremente qualquer obra de arte e tentar perceber o que eu chamo de eco estético.”. Os trabalhos de Felipe Cohen, Gisele Motta e Leandro Lima são um convite a isso.

 

No ano que marca o centenário da obra Fontaine, o trabalho curatorial de Daniel Rangel é uma ótima oportunidade para que o público brasileiro sinta a vitalidade criativa de Duchamp e como ela é fonte de inspiração para artistas contemporâneos. Made in Duchamp, Readymade Brasil .