Novos sentidos para o non-sense
Em palestra sobre Kurt Schwitters, Ronaldo Brito fala de nosso momento histórico atual. Segundo ele, vivemos hoje um excesso de institucionalização da arte moderna, que se impõe como arte legítima do mundo moderno, mas às custas de sua própria capacidade de transformação.
Inicio este relato citando esta colocação por achar que a seqüência de eventos relacionados à produção de Kurt Schwitters, parte dela exposta na Pinacoteca do Estado, serve bem a reflexões sobre como obras dadaístas expostas atualmente reagem à sua recontextualização e como este novo contexto as resignifica (sem querer, é claro, reduzir a produção de Schwitters a sua fase dadaísta). Qual a proposição de sentido possível para trabalhos muitas vezes fundados no non-sense? Sendo o aleatório, o sem sentido, o imprevisível, quase que pressupostos metodológicos para a denúncia de uma racionalidade alienada criticada pelo dada, como expor dada e seus desdobramentos sem que se exponha a aleatoriedade, a falta de sentido, a imprevisibilidade ? Sem que se reative esta linha de questionamento?
Questões como estas parecem não terem sido consideradas pela organização linear da exposição. Uma linha contendo uma rica seleção da produção de Schwitters, embora traçada entre dois pontos, a meu ver, desnecessários: uma sala de projeção onde se vê um documentário sobre "a vida" do artista, e uma montagem cenográfica que simula um ambiente da Merzbau. Estes dois "extremos" da mostra atuam na leitura das obras dispostas cronologicamente com uma preocupação excessivamente pedagógica.
Coube aos três eventos paralelos à exposição posicionarem-se em relação a esta estrutura expositiva que lhes servia de pretexto, cada um à sua maneira.
A apresentação de Lucio Agra consistiu na performatização da "Ursonate", e de outros poemas de Schwitters, como "Annablume", numa tradução de Haroldo de Campos, de forma interpretativa. A figura de Lucio, desdobrando vocal e foneticamente os poemas, interagia com uma projeção que, numa grande colagem de imagens de várias obras (do próprio Schwitters, bem como de seus contemporâneos) cartazes e registros fotográficos de época, possibilitava relações das mais variadas entre estes elementos.
Anterior à apresentação comandada por Lucio, sua voz em off inicia a dar explicações e contextualizações sobre o que será visto; O texto lido era o seguinte:
"Em 1921, durante uma turnê dadaísta, Kurt Schwitters, criador e propagador de sua "arte MERZ", repetia, compulsivamente, fragmentos de um poema-cartaz de Raoul Hausmann. De então até 1932, Schwitters transformaria estes fragmentos de palavra na Ursonate (Sonata Primordial ou pré-silábica). 40 minutos de non-sense, baseados na estrutura da sonata clássica, com a sonoridade da língua alemã.
Anos mais tarde, em 1946, no exílio na Inglaterra, Schwitters começaria outro empreendimento poético, dessa vez usando a prosódia do inglês britânico.
Aqui serão apresentados fragmentos da Ursonate e a segunda audição, no Brasil, do poema Ribble Bobble Pimlico. O tratamento digital da voz em tempo real é feito por Vanderlei Lucentini. O Vjiyng é de Rogério Borovik."
Durante a leitura deste texto, no entanto, o microfone começa a falhar, deixando ouvir, por vezes, apenas alguns fonemas do que seria um texto linearmente explicativo. Por um momento me perguntei se o próprio procedimento pedagógico estaria sendo já objeto da recombinação de fragmentos contida na produção de Schwitters, mas ao final ficou claro que se tratava apenas de um problema técnico. Daí para frente o "non-sense" transcorreu sem maiores imprevistos.
. Verônica Stigger iniciou sua fala com uma explicação mais do que oportuna sobre as origens do termo "merz", utilizado por Schwitters ora como um conceito, ora como uma persona, muitas vezes ambos. O significado, como a própria obra, se transmutava de acordo com suas próprias demandas. Em um artigo, Schwitters explica: "é a segunda sílaba de Kommerz [comércio em alemão]. Ela surgiu num quadro onde eu havia colado, entre as formas abstratas, um fragmento recortado de um anúncio do KOMMERZ UND PRIVATBANK [Banco Privado e de Comércio]. Situando-se em relação às outras partes do quadro, a palavra MERZ se tornou parte integrante dele e lá deveria ficar". Em outro texto, prioriza em sua explicação uma razão etimológica; auszmerzen, «retirar», «extirpar», em alemão. Em um terceiro artigo, entretanto assinala o caráter mutante do conceito; A palavra Merz não tinha qualquer significado quando a inventei. Agora ela tem o significado que lhe dei. O significado do conceito Merz muda à medida que muda o conhecimento daqueles que continuam a trabalhar com ele». Mas depois a palestrante ainda propõe pensar o termo como uma derivação da raiz indo-européia *mer-, cujo primeiro significado é «atrair por meio de força mágica». Esta mesma raiz é encontrada nos vocábulos «comércio», «Mercúrio» (deus do comércio), «meretriz», «merecer», entre outros, muitos deles associados à troca comercial. O que me parece apropriado, afinal "força mágica" e "comércio", quando juntos, podem remeter a razões poderosas.
De resto, discorreu sobre o percurso do artista alemão; mais sobre o processo de elaboração da Merzbau (algo como "construção Merz"), ou seja, o acumular contínuo de objetos e imagens formando esculturas, que se transformaram em colunas, e que então passaram a ligar-se em espaços contíguos (seu filho Ernest diria; "Ela cresce como uma cidade"), as quais alguns poucos amigos mais próximos tinham acesso. Chamou a atenção para o recolhimento do material, o processo de purificação que Schwitters impunha ao material que recolhia das ruas, ao contrário do que vinha de sua casa ou de seus amigos. Um processo que simula, para ela, um ritual de sacralização, como se esses materiais, o "lixo da civilização", passassem por uma consagração religiosa, retirando-os do ambiente profano do mundo. Daí a relação entre a Merzbau e as catedrais góticas, já que a idéia de catedral pressupõe a construção de um mundo à parte do mundo profano. a Merzbau seria então como um templo, mas sem a missão de redimir o que havia de humano nos materiais recolhidos e realocados pelo artista.
Ao final, propôs a pergunta; se admitirmos este processo como um fazer ritualístico, e se rito e mito estão sempre associados, qual seria o mito encenado pela Merzbau? Ela mesma indica uma conclusão que se apóia na biografia de Schwitters. A primeira coluna construída já teria se erguido para o luto de um filho morto prematuramente. Para Stigger, seria o mito da morte do filho que Schwitters re-encena, uma construção do luto que se estabelece na Merzbau. Daí seu caráter de mausoléu apontado por um visitante, seu clima sepulcral. Também por ser um depósito autobiográfico, pela coleta de fragmentos, e portanto de registro, da vida pessoal do artista. Um ritual que traria para o presente o que está contado no mito, atualizando-o. Mas um ritual que não se encerra, que é inacabável, em um eterno presente. Um luto insuperável.
Ao final da fala, uma pergunta revela um certo incômodo em relação à réplica da Merzbau. Seria a réplica o mausoléu da idéia contida em Merzbau, de renovação, de um movimento orgânico de colagem dos elementos secretados pelo mundo moderno? Um trabalho de simulação, de reconstituição, não deixa de ser um proceder relacionado à morte (uma espécie de taxidermia), mas sobre o quê da morte que é incapaz de gerar algo, ao contrário de como ocorria na Merzbau, onde, se Stigger estiver certa, da morte originara-se um proceder orgânico, virótico mesmo, de aglutinação.
Para Ronaldo Brito, Schwitters era "um dadaísta que via, não a destruição que o fragmento impunha à forma íntegra, mas o índice de disponibilidade do homem moderno".
A colagem cubista inaugura a era do signo plástico emancipado e Schwitters teria levado a colagem a um princípio universal. O fazer da colagem, por este princípio de descontinuidade, corresponderia a uma capacidade do homem moderno de construir e reconstruir incessantemente os aspectos do mundo. Daí a visão de Schwitters da colagem, não na clave do fragmento sofrido, forma cindida, de decepção com a civilização das luzes governada pela ciência, mas como um outro tipo de unidade a partir da qual se pode recombinar e justapor, encarnando o mundo por vir. O mundo passa a ser a possibilidade eufórica de construção e reconstrução. A colagem se torna para Schwitters seu modo de vida...
O coroamento disso é a idéia da Merzbau, por tudo que ela tem de inacabável e sua correspondência clara com o mundo moderno por ser também ele inacabável, em processo perene de transformação. A idéia de livre aglutinação que chega ao seu apogeu.
Brito reitera a relação com a catedral gótica, que também teria um caráter interminável, empirista, sendo realizada por gerações e gerações. Ao mesmo tempo muito construtiva, uma forma liberta, de uma gestalt que não remete mais à natureza, à similitude. A Merzbau consegue ser idéia e matéria; o pensamento concretizado e sempre ainda pensamento. Constante reimaginação, atualização imaginativa.
Haveria então algo de muito generoso nesta não realização: a idéia de iminência e de possibilidade. Também a idéia de arte como experiência de vida, uma mobilização contra o intelectualismo opressivo. O ativismo de Schwitters seria tentar fazer a arte chegar à superfície do real. Uma arte que haveria de ser contemporânea do mundo para que pudesse transformá-lo.
A esta condição, Brito contrapõe o desencantamento de hoje, quando a questão dos artistas não é mais como dar visibilidade à arte, mas como manter suas singularidades e de suas poéticas dentro do mundo da arte, agora saturado e alojado na indústria do lazer e do turismo.
Voltando à colocação que citei no início deste relato: parece razoavelmente fácil apontar o academicismo que correspondia, para os dadaístas, à alienação e ao retrocesso. O difícil para a maioria do público atual é reconhecer justamente o peso institucional apontado por Brito, e seus efeitos em uma produção dadaísta exposta hoje. Curiosamente, as intenções pretensamente educacionais deste tipo de exposição pedagógica não problematizam a própria visão institucional que determina a leituras das obras.
Uma das perguntas do público retomava o incômodo com a montagem de uma réplica da obra. Incômodo com o fato de a obra já não mais existir, e também com a tentativa de uma remontagem, por principio muito limitada, de seus espaços. Parece ser difícil simplesmente aceitar que algo a que se chamou de Merzbau, fisicamente não exista mais, ou que exista através do relato.
Brito responde denunciando o desejo pelo original que pode esconder este incômodo. A Merzbau já não existe a não ser enquanto idéia, e se é assim, a montagem presente também é Merzbau, justamente por ser uma reconstrução, ou seja, um novo "procedimento Merzbau". Afinal pode se entrar em uma Merzbau sem que se saiba. É ao nomeá-la Merzbau que a idéia volta a se concretizar. "Se eu não tiver convivido com o nome Merzbau, entro na Merzbau e nem sei que estou na Merzbau" diz ele. Mas será que esta remontagem realmente se dá pelo mesmo procedimento?
Na observação de Ernest Schwitters, a cidade aparece como imagem viva deste modo de proceder agregador de fragmentos, como a realização contínua da idéia Merzbau. Talvez, estando em São Paulo, a remontagem cenográfica presente na exposição seja o único lugar da cidade onde não se está numa Merzbau, mesmo sendo o único lugar que leva seu nome....