Uma História entre dois pólos: Isaac Julien e Fantôme Créole
Relato da conferência: “Fantasias polares e estética na obra de Isaac Julien” – Lisa E. Bloom
Seminário Internacional Isaac Julien
20 de Outubro de 2012
Por Tiago Machado
Expedição Polar de Robert Perry, 1909. Da esquerda para direita: Ooqueh, segurando a bandeira da NavyLeague;
Ootah, segurando a bandeira da fraternidade D.K.E.; Matthew Henson, segurando a bandeira Polar; Egingwah,
segurando a bandeira da D.A.R.; eSeeglo, segurando a bandeira da Cruz Vermelha.
“Um dia, os produtos dos Huichois; em outro, aqueles dos Haidas; outro, os naifs do Haiti; em outro, os dos dissidentes dos países do Leste; amanhã, os totens africanos... cada um dá três pequenas voltas e vai embora. O ocidente se acredita o centro do universo e quer provar isso. Infelizmente, ele esquece com frequência do quanto insáciavel é seu apetite, que dentre os gêneros mais delicados que ele introduz na cesta de provisões, alguns não aguentam a viagem. (...) Fracassados sob uma única ideologia, longe de sua praia, estes objetos tornam-se puros substitutos decorativos que não fazem mais sentido.”
Logo no princípio de sua fala, fazendo referência a intervenção anterior de Vinícius Spricigo,Lisa E. Bloom corroborou a afirmação de que a leitura da obra de Isaac Julien pode ser mais bem compreendida a partir das influências na historiografia advindas das propostas curatoriais da Documenta 11 (2002). Como se sabe a mostra quinquenal em Kassel, em sua décima primeira edição, organizada pelo nigeriano radicado nos Estados Unidos Okwui Enwezor, notabilizou-se por sua ênfase nos discursos pós-coloniais e pela possibilidade de pensar a produção contemporâneapara além de polos estavéis na geopolítica das artes (ou “regiões geoestéticas” como assinalou Vinicius Spricigo). Isso significou desfazer-se, no curso do trabalho curatorial, de categorias estanquescomo por exemplo, a dicotomia entre centro e periferia, optando, ao contrário, por uma visão crítica que mostrou as implicaçõese os subentendidos dessas categorizações. Outra afirmação incontornável dessa mostra foi a consolidação das artes multimeios, incluindo aí as instalações em vídeo. Essas, por sua vez, são duas das características mais marcantes na obra de Isaac Julien. Neste sentido, por ocasião da Documenta 11, o cineasta britânico apresentou pela primeira vez seufilme “Paradise Omeros”(que faz parte da mostra Isaac Julien Geopoéticas no Sesc Pompeia), obra que explora, através de uma instalação audiovisual com três telas, as fantasias e sentimentos relacionados ao que Isaac Julien chama de “crioulidade”: uma condição de hibridização cultural e linguística cuja ocorrência na história moderna, na maioria dos casos, está associada ao desterro forçado e violento de populações, iniciado a partir dos processos de colonização organizado pelos europeus a partir do século XVI.
Ao desenvolver e adensar essas temáticas apalestra em si baseou-se em dois pontos principais: a explicitação do viés implícito na narrativa das expedições polares, que transformaram os pólos em lugares privilegiados para as fantasias colonizadoras;e o modo como Isaac Julien a reelabora em seu trabalho, fazendo uso dos meios próprios ao cinema e à instalação.
Mais especificamente, em primeiro lugar, Lisa E. Bloom fez uma comparação entre a obra de Julien True North (2004)e o livro de sua autoria, que ajudou na elaboração do filme em questão, intitulado “Gender on Ice: American Ideology of Polar Expeditions” (1993). Neste livro Lisa E. Bloom analisa, de um ponto de vista crítico, as narrativas das expedições polares empreendidas no início do século XX pelos exploradores americanos Robert Perry e Robert Falcon Scott. Na construção dessas narrativas a autora detecta a preeminência de ideologias que enfatizam o heroísmo do conquistador branco, masculino, que luta contra as intempéries de um clima adverso, conquistando e domando a natureza figurada como região inóspita até então inalcançável, um lugar, que a partir de então, pode se tornar uma espécie de ponto de afirmação para o ato heróico (e fálico poderíamos acrescentar) do expedicionário que finalmente finca sua bandeira como marca de presença nos confins do globo terrestre. Em suma, a partir de então, segundo a autora, o Pólo Norte pode vir a ser incorporado como um lugar próprio às fantasias colonizadoras que marcaram a expansão da civilização europeia pelo planeta, sendo a conquista dos pólos uma de suas últimas figurações triunfantes.
Além deste recorte mais amplo a autora abordoutambém algumas questões tais como o duplo papel da relação da revista National Geographic no patrocínio da expedição de Perry. A revista seria tanto a patrocinadora financeira como também plataforma privilegiada de divulgação da aventura, marcando, assim,a construção de um olhar específico – que se coaduna com as “narrativas heróicas” de vida e sacrifício – sobre o Pólo Norte no imaginário de seus ávidos leitores. Deste modo,nos meios de divulgação de massa a expedição foi entendida como um sucesso do explorador, apesar de já à época, várias objeções tivessem sido levantadas quanto à veracidade da façanha. Um exemplo histórico do viés próprio a esta construção narrativa, que foi explorada por tanto por Bloom quanto por Isaac Julien,foi a omissão nos relatos de viagem da participação ativa de outros personagens como o explorador negro Matthew Henson e dos guias e ajudantes Inuit.
Em True North, por sua vez, Isaac Julien utiliza-se dos meios próprios do cinema e da instalação para recontar, ou melhor reelaborar, esta narrativa. Pois, como destacou a palestrante, o filme de Julien, apesar de se basear nos relatos recuperados, não procura propriamente reabilitar o papel de Matthen Henson, ou contar a história das explorações segundo seu ponto de vista ou dos ajudantes excluídos da história oficial. Se o filme se furta a apresentar a imagem dos grandes exploradores e dedica-se por longos minutos à exposição de personagens que lembram Henson ou os ajudantes nativos, ou ainda a colocação em cena de uma mulher negra desfilando em meio à paisagem do ártico em degelo, a questão desta reelaboração é totalmente outra. Uma vez que não se trata, para o cineasta, de simplesmente reposicionar papéis no interior de um peça, invertendo-se o protagonismo para, enfim, contar a mesma história.
Ao invés disso, para Lisa E. Bloom podemos pensar esta obra de Isaac Julien sob o signo da crítica (e mesmo do deboche) de um “desejo estético” pela exploração, que marcou a empreitada de Perry. Nesse sentido, True North busca, por um lado, recolocar em discussão um conceito fundamental da estética ocidental: o Sublime e, por outro lado, o filme se utiliza de meios técnicos para fazê-lo, no caso o trabalho de fimagem/montagem e da exposição não sincrônica em três telas montadas diante do espectador. Segundo Lisa E. Bloom, é na junção desta encruzilhada entre o estético e o técnico, que se torna possível para Julien, retomar a beleza do pólo de uma perspectiva crítica e não condicionada por uma narrativa simplificadora, como a do homem branco conquistador ou mesmo do negro redimido, por exemplo. Poderíamos lembrar queuma das definições mais influentes do conceito de Sublime foi fornecida pelo filósofo Immanuel Kant, para quem o Sublime era, sobretudo, uma deficiencia da razão conceitual diante de algo incomensurável, não mapeável pela Razão, cuja ocorrência se dá quando, por exemplo, o sujeito se depara com um deserto desconhecido, com a imensidão do mar ou da paisagem coberta infinitamente pelo gelo. Lisa E. Bloom, por sua vez, nos lembrou que em sua figuração romântica, o Sublime aparece vinculado, entre outras imagens, às pinturas enigmáticas e fantásticas de Caspar David Friederich (a palestrante inclusivemostrou um slide de “O Mar de Gelo”, 1823-1824). O Sublime gravitaria assim em torno do fracasso da razão conceitual e da fantasia construtiva da imaginação, sua representação é quase sempre incompleta e arruinada. Daí já se nota a importância da politização deste conceito quando se trata de pensar em uma maneira de se recuperar a história da conquista dos pólos através de uma obra cinematográfica.
Assim, “O Verdadeiro Norte” seria pontuadopelos fracassos expedicionários, no campo oposto à grandiloquência das narrativas de conquista de Robert Perry, bem como povoado pelos “fantasmas” que teimam em (re) aparecer neste terreno aparentemente neutro e extremamente belo filmado com a perfeição técnica de Isaac Julien. Lugar, portanto, perfeito para as projeções mais desvairadas e fantásticas.Para Bloom, este aspecto algo fantasmagórico da obra aparece mais claramente quando consideramos o filme complementar a True North, intituladoFantôme Creoule. Filme este que a partir de 2005 é exibido simultaneamente com True North em uma instalação de quatro telas chamada Fantôme Afrique (é esta a instalação apresentada na mostra em São Paulo). Fântome Afrique lança olhares sobre a arquitetura da cidade de Ouagadougou, o centro cinematográfico da África, e também sob a árida paisagem rural de Burkina Fasso, a partir de múltiplas perspectivas,algo que produz ao mesmo tempo uma familiaridade e um certo estranhamento. Este sentimento é melhor personificado na personagem representada pela modelo negra Vanessa Myrie que, como uma presença incorpórea, parece flutuar sobre o espaço, nos mostrando detalhes daquilo que já vimos em algum lugar, seja uma consrtução, um adorno, um afresco ou um tecido, que prontamente qualificaríamos de “africano” ou “primitivo”. Nesse sentido, a única certeza que o filme parece nos impor é o fato irremediável de que já vimos aquilo que está sendo mostrado na tela.Em outras palavras, sabemos quejá vimosaquilo, contudo não sabemos bem onde, seguramente em outro lugar, sob outro enquadramento.Talvez já os tenhamos visto na sala de algum museu histórico europeu ou norte-americano, desde que ele possua uma sessão dedicada à “arte africana”, ou mesmo em alguma exposição específica que tenha se prontificado a mostrá-los sob um eixo temático qualquer. Este aspecto desconcertante é reforçado ainda pelo intercalamento de materiais cinematográficos produzidos pelas primeiras expedições coloniais na região e da exibição de imagens de marcos urbanos específicos que sob algum motivo pontual foram registrados pelas cameras dos viajantes, exploradores, etnólogos, etc., indicando a dificuldade de construir uma representação visual endógena.
Encaminhado-se para o fim de sua apresentação, Lisa E. Bloom procurou enfatizar que os filmes de Isaac Julien fornecem novas perspectivas para um reposicionamento de categorias como ciência, história, raça e gênero. Como visto acima, é fácil perceber como uma certa utilização dessas categorias se entrelaçam para formar a base de sustentação do discurso colonial. Afinal, não é uma posição científica que sustenta a aventura do explorador Robert E. Perry, não é uma posição muito bem definida de gênero e raça que permite a ele escrever e divulgar sua história, constituindo, inclusive, uma visão fantástica do Pólo Norte? Contudo, é exatamente através da afirmação radical da artificialidade dessas categorias por meio do trabalho estéticoque seria possível contar uma outra história, uma que conecte tempos e lugares distintos,que assegure entre eles uma conexão antes insuspeitada ou vagamente pressentida.Assim, o mérito da palestra de Lisa E. Bloom, ao não se deixar levar apenas pela afirmação da reparação do lugar das minorias nas narrativas de conquista e exploração, foi o de deixar tão claro quanto possível que o estranhamento produzido pelos dois filmescomplementares de Isaac Julien, graças à aparente inadequação entre os lugares e os personagens fantásticos que os habitam é, em suma, o reverso de uma persistente familiaridade conceitual produzida pelas últimas narrativas coloniais oriundas do século XX.
Daniel Buren. “As imagens roubadas”. In.: idem, Textos e entrevistas escolhidos (1967-2000). Organização Paulo Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Centro de Artes Hélio Oiticica, 2001, p.154. As palavras de Daniel Buren fazem parte do texto que compõem sua intervenção na exposição Magiciens de La Terre, realizada no Centro George Pompidou, Paris, no ano de 1989.