Expansão em vários sentidos
A tarde daquele sábado era quente e ensolarada e por isso imaginei que não haveria público para esquentar um debate sobre o sistema das artes com um sol daqueles brilhando lá fora. Afinal, como esperar que uma discussão sobre as relações entre os espaços da arte, da mídia e da vida pudesse vencer a irresistível atração de um dia ensolarado?
Mas a dinâmica cultural da cidade de São Paulo exerce uma atração como nenhuma outra sobre os seus habitantes. Pouco a pouco as pessoas foram chegando e se acomodando na sala de exposição que exibia ainda uma parte da mostra Galeria Expandida, em torno do qual uma série de encontros e debates, como o daquela tarde, haviam sido organizados.
Ao início da apresentação o público era predominantemente feminino, o que correspondia à mesa integrada apenas por mulheres para o debate. Representando cada uma um setor da produção cultural, foram reunidas naquele encontro uma curadora, uma galerista, uma artista plástica e uma jornalista cultural que também atua como crítica de arte. O grupo deixava evidente o quanto as mulheres têm exercido um papel cada vez mais ativo e participativo na dinâmica cultural em nosso país. Se até pouco tempo atrás a história da arte e da cultura do Ocidente era predominante¬mente escrita e produzida por homens, hoje já não restam dúvidas de que as mulheres desempenham um papel fundamental no registro e na produção da história do nosso tempo.
Paula Azulgaray abriu o debate apresentando um depoimento sobre o seu atual trabalho de divulgação do universo das artes visuais, na revista semanal Isto É. Para ela o trabalho de ocupação das páginas de um veículo da grande imprensa pode também ser entendido com uma variante da Galeria Expandida, uma vez que o espaço da revista veicula periódicamente a produção de resenhas e análises de exposições que procuram resgatar o espaço da crítica cultural nos meios de comunicação de massa.
Na atual dinâmica das publicações que circulam em dois formatos, o impresso e o on-line, Paula Azulgaray considera que o trabalho do jornalista deve ter uma flexibilidade com diferentes formatos de texto – aquele que necessita de uma forma acabada para o fechamento de uma edição impressa e um outro que está permanentemente em processo, adequando-se à dinâmica sempre mutável do fluxo das informações pela rede.
Essas transformações no universo das mídia corresponderiam, por sua vez, ao papel assumido pelos espaços culturais nos dias de hoje. Segundo a jornalista, uma exposição como a Galeria Expandida, que dá visibilidade à uma série de trabalhos efêmeros e ainda pouco conhecidos do público e da crítica, faz da galeria não apenas um espaço de comercialização da produção artística, mas também um espaço de produção documental, o que redefine o seu papel enquanto agente cultural ativo do seu tempo.
Como um exemplo da relação possível entre os espaços da mídia e os espaços da arte, Paula Alzugaray citou o projeto do artista-fotógrafo Mauro Restife, que se ofereceu para trabalhar como repórter fotográfico da Isto É para um projeto específico. Contratado segundo a tabela de honorários para os profissionais da área, Restife foi escalado para cobrir a 7a Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre em 2009. Ao ser incorporado ao grupo de foto-jornalistas da revista o artista propôs que as suas fotografias, produzidas pelo processo analógico, deveriam ser publicadas em preto e branco, o que contraria o padrão de publicação de imagens coloridas a partir de arquivos fotográficos digitais. Isso promoveu um intenso intercâmbio de adequações entre a proposta do artista e o modus operandi da revista, que publicou imagens de obras sendo instaladas para a bienal e não de trabalhos prontos para exibição, como seria esperado. Nesse sentido o trabalho do artista acabou criando um espaço expandido da revista, que naquela edição deixava de ser apenas um veículo portador de informações e se convertia num espaço de circulação da obra de arte, um espaço de produção documental de um processo.
Ao concluir sua fala, Paula Alzugaray questionou se o caráter de excessão adotado pela revista para este projeto seria o mesmo adotado pela galeria ao acolher o projeto da Galeria Expandida – assumindo com ele um papel cultural e didático que não corresponde necessariamente ao caráter comercial de suas atividades.
Essa apresentação foi seguida pelo depoimento de Mônica Nador, que falou da natureza do seu atual trabalho como uma estratégia de aproximação de um ambiente social normalmente excluído do grande sistema da arte. Em sua forma de trabalhar a artista se depara constantemente com a necessidade de também negociar seus projetos e proposições com o poder público – que é convocado pela artista e a comunidade ligada à ela à participar de um tra¬balho de revalorização do espaço urbano da periferia de São Paulo.
Mônica Nador criou o JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube), a partir do qual a comunidade daquele bairro é envolvida num trabalho de pintura de fachadas, interiores de residências e espaços públicos normalmente destituídos de cor. A artista sabe que essa forma de ação social, mediada pela arte, tem um grande poder de contaminação que agora se irradia do Jardim Miriam para outros bairros adjacentes, como o Jardim Ademar onde está sendo organizado um novo núcleo chamado Barracão Arte Clube.
Durante a sua apresentação Mônica Nador ainda mostrou um vídeo relacionado ao seu projeto de capacitação de jovens da periferia. Nesse documentário vimos os moradores de uma favela que aprendem à desenhar moldes para estampar com tinta, à preparar as paredes com um fundo adequado e à aplicar os desenhos recortados em espaços externos e internos das casas do bairro. Por conta desse trabalho os moradores declaram que pela pintura das casas e dos muros a favela havia se transformado numa comunidade. A cor valoriza o espaço e o ambiente, contribuindo para o aumento da auto-estima de quem vive por lá. Dessa forma o lugar perde o seu aspecto sombrio e desolado sendo ativado pela cor, adquirindo valor aos olhos de todos.
Ao falar dessa construção coletiva da pintura Mônica Nador informou a todos que estava animada com a inclusão de seu projeto como um dos novos “Pontos de Cultura” no Brasil – uma rede formada pelos núcleos comunitários de cultura (quilombola, caipira, serrana, da periferia) que recebem uma verba do governo federal para incentivo e manutenção dos valores culturais e locais da região. Para ela isso representa também um aspecto da Galeria Expandida, onde a relação entre arte, mídia e os espaços da vida são potencializados pelas políticas culturais e pelo engajamento do artista ao lado das comunidades.
A seguir Luciana Brito lembrou-nos de seus primeiros projetos realizados em conjunto com suas ex-colegas da FAAP, quando propuseram a criação de exposições coletivas que ampliavam a noção do circuito cultural. Buscando também ocupar os espaços da cidade nos anos 80, tal como fizeram os pixadores e os grupos de intervenção urbana do início da década, é dessa época o projeto Arte na Rua, uma mostra urbana na qual os artistas ocuparam diversos out-doors na cidade de São Paulo com peças gráficas concebidas exclusivamente para aqueles grandes paineis (Luciana Brito trouxe alguns catálogos da mostra com os registros dos trabalhos realizados).
Foi com base nessa experiência que a galerista afirmou que projetos como aquele já expressavam a idéia da Galeria Expandida. Por isso mesmo ela se identificou com o projeto de Chris Mello, que deverá ter continuidade para além do término da exposição nos espaços da galeria. Na internet o projeto poderá se expandir e adquirir outras configurações, desdobrando-se também para outros espaços no mapa da cidade.
Chris Mello, que atuou como mediadora no debate, lembrou nesse instante de um proposição do artista Waldemar Cordeiro (1925-1973) que, entre os anos 60 e 70, previa uma ampliação do público e da circulação da obra de arte por meio dos computadores. Para ele o computador deveria ser um espaço concreto de existência de uma nova arte e uma nova percepção, de uma nova forma de comunicação.
A tarde já havia avançado para bem perto das quatro horas, quando chegou o Ricardo Basbaum. Ele fora envolvido durante a manhã numa ação realizada com ônibus pela cidade e ainda conversou conosco antes de se preparar para o seu encontro com o público do segundo período da tarde.
A cidade não para de pensar e a tarde não se cansa de passar. A galeria havia se expandido para meus pensamentos enquanto eu bebia minha cerveja à espera do almoço do outro lado da cidade.