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Em conversação com Carolyn Christov-Bakargiev

Lisette Lagnado, Instituto Goethe, São Paulo, 16/09/2010

Por onde começar? Qual será a primeira pergunta na cabeça do curador de uma Documenta, senão revisar as realizações de seus antecessores?

Eu sei, é descomunal procurar compreender “qual o papel das Documentas na história das exposições?”. Não fosse ela, não haveria como falar do “curador como produtor”, “curador como crítico”, “curador como educador”, “curador como agente cultural”, “curador como mediador”, “curador como artista”, “curador como ativista”, “curador como etnógrafo”, “curador como tradutor”, “curador como editor”, “curador como cidadão”... e não poderia faltar o “curador como iconoclasta” de Boris Groys.

Se tivessem de eleger uma aula a ser encomendada a um especialista (para atender ao quesito legado das Documentas), peço que reservem um tempo, no final da conversa com Carolyn, ao problema da espacialização das obras. Montar uma grande mostra coletiva de modo a dar sustento a uma narrativa é um tema que, nos últimos sessenta anos, se tornou central, com influências notáveis na agenda da museografia.

Essa centralidade se deve à importância dada à percepção estética do público visitante, seja leigo ou não: arte contemporânea não se define apenas por uma eventual qualidade intrínseca dos objetos à mostra como numa feira de arte, mas pela sua capacidade de criar uma atmosfera, um ambiente. Sendo assim, desde a fixação das obras, sua altura na parede, cor dos painéis, distância entre as obras e distância das obras com o espectador, a iluminação, a informação gráfica... tantos detalhes que, sabemos, não são detalhes, são a alma da exposição.

A Documenta de Kassel é uma referência hiperbólica em arte contemporânea no mundo. Caberia detectar os fatores que contribuiram na construção de um prestígio baseado na qualidade de sua reflexão crítica da arte. Afinal de contas, o que se julga nela está mais na sua capacidade de propor uma historização da arte do que na escolha das obras; por outro lado, sabemos que tal historização já não pode mais se fixar exclusivamente à Alemanha, nem mesmo à Europa ocidental da Guerra Fria, mas deve englobar todo um contexto sócio-político global.

Carolyn Christov-Bakargiev apresentou aqui “para quê/ quem se destina uma Documenta”, “o que é necessário” e um pouco de sua “metodologia curatorial”.

Trocar ideias e experiências curatoriais ao lado dela me reenvia forçosamente ao lugar que ocupei entre 2005 e 2006, como Curadora-geral da 27ª Bienal de São Paulo. O projeto daquela edição passou por um processo de seleção até então (e ainda hoje) inédito na história da Fundação Bienal. Pela primeira vez, a escolha de um projeto para a BSP se aproximou, ainda com algumas diferenças, do procedimento de uma Documenta. A saber:

um grupo de “notáveis” (entre diretores de museus e curadores de instituições culturais de diversas partes do mundo) se reúne para fazer um check-list de possíveis candidatos;

esta lista é discutida e costuma ser reduzida até cinco nomes;

os candidatos são convidados em caráter sigiloso a montar um projeto apenas com as diretrizes conceituais (no prazo de um mês, no caso da BSP);

cada projeto é analisado entre os membros do comitê organizador que recebe, depois, os autores separadamente para uma, ou mais, entrevista pessoal, durante a qual certos pontos são detalhados.

Imagino que outras grandes mostras no mundo inteiro tenham um procedimento similar para escolher o Diretor artístico de bienais de Veneza, Istambul, Sydney etc. Na Fundação Bienal, entende-se que a figura do Curador Geral é um cargo da confiança do Presidente. A história dos últimos dez anos da Bienal de São Paulo evidenciou o tipo de ingerência e promiscuidade entre direção executiva e projeto intelectual, colocando em risco a liberdade de expressão do curador e do artista que se comprometem com um programa rigoroso de reflexão.

Nesse sentido, discutir o prestígio de uma mostra de caráter internacional passa necessariamente pela profissionalização do trabalho de curadoria.

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A primeira parte de minha fala procura situar grosso modo a origem crítica da Documenta, seus desafios e missões, da modernidade à globalização. Alguns relatos que nos chegam talvez sejam da ordem do mito – estou pensando aqui, precisamente, na distância e independência em relação ao sensacionalismo da mídia e do mercado [Jeff Koons, Damien Hirst, Maurizio Cattelan...]

Na segunda parte, tento responder se há alguma correspondência possível entre a Bienal de São Paulo e a mostra de Kassel.

Para esses dois blocos, precisarei estabelecer a curva histórica de cada uma dessas mostras, e, enfim, espero, analisar alguns exemplos mais específicos. Seria interessante conhecer os arquivos da Documenta e aprofundar estudos sobre a recepção crítica da Documenta no Brasil – que certamente difere da recepção dessa mostra dentro da Europa, na África e no Afeganistão.

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1. Origens críticas da Documenta

A. Da modernidade à globalização

Fala-se muito da multiplicação de mostras bienais de arte contemporânea. Nem a Documenta pode ser comparada a uma Bienal nem a BSP é uma entre outras bienais.

De início, o que une essas duas mostras é a força de sua tradição histórica. Isto é: são duas manifestações artísticas bem-sucedidas em termos de grande escala e ambição inaugural e ambas surgem na mesma década de 1950 (1951 e 1955):

a BSP é o desdobramento do trabalho como “mecenas” do industrial ítalo-brasileiro Ciccillo Matarazzo que, desde 1944, acalentava a vontade de trazer a modernidade européia ao Brasil - primeiras BSP apresentam obras de grande porte de Picasso, Giacometti, George Grosz e outros;

a Documenta é uma iniciativa com uma missão redentória da identidade alemã: resgatar a arte moderna banida durante o regime nazista.

Portanto, ambas nascem “modernas”, com o objetivo de acertar ou ajustar o passo da sociedade com sua época. Dito isso, é importante frisar que não são fruto do mesmo espírito de construção e progresso.

A outra diferença diz respeito à vontade hoje de toda pequena cidade inventar sua própria bienal. O intuito atual é conseguir pertencer ao circuito do turismo cultural. E aqui vai um alerta aos entusiastas mais apressados: não confundir a internacionalização reivindicada nos anos 1950 com o mundo já globalizado.

 

B. O fator “tempo”

Quando a equipe de Carolyn inaugurar sua Documenta 13 em 2012, a Bienal de São Paulo estará às vésperas de sua trigésima edição. Mesmo que tenham despontado praticamente juntas, uma diferença de 17 mostras separa os dois eventos. Supõe-se que cada uma tenha acumulado um conhecimento e uma experiência condizentes com o ritmo de sua periodicidade: enquanto a Documenta se repensa de cinco em cinco anos, a BSP redesenha seus objetivos a cada dois anos.

Fica logo evidente a primeira característica que torna a Documenta um evento único no seu gênero: entre o momento em que o nome do diretor artístico é anunciado e a abertura da mostra decorrem quatro anos no exemplo de Kassel; enquanto no Brasil, na melhor das hipóteses, o curador tem um ano e meio para colocar em marcha uma máquina que se desmonta peça por peça. Esse tempo de preparação é um dado nada desprezível.

Iríamos longe demais seguindo considerações de cunho sociológico para refletir acerca das escalas de velocidade entre o continente europeu e o continente americano, mas vale lembrar que, além da Documenta, os alemães ainda mantêm, desde 1977, uma outra mostra com um intervalo ainda mais espaçado: a Sculpture Projects Muenster, que se faz de dez em dez anos!

O tempo tem sido, portanto, o maior capital da Documenta para poder enfrentar a ansiedade desenfreada em busca do “novo”. É da essência da Documenta prospectar, ou seja pesquisar: fazer uma análise profunda e direcionar a prospecção para um ponto preciso. Não me parece ser um espaço para apostas [em quatro anos, qualquer aposta se tornaria anacrônica ou vazaria para o mercado], mas um terreno propício para explorar uma hipótese ainda sem comprovação científica.

Para qualquer curador, a Documenta reúne certas condições sonhadas que lhe permitem receber uma ideia visionária, capaz de repropor, de tempos em tempos, um espaço distinto de fruição - lembrando que o principal edifício que abriga parte da mostra expositiva é o Museu Friedericianum (inaugurado em 1779) é o primeiro museu público do continente europeu e a Documenta abandona o slogan de “museu de 100 dias” para “evento de 100 dias”.

Mas será que o tempo é um capital exclusivamente positivo? No mundo da comunicação instantânea, ter quatro anos para organizar um evento não se torna uma máquina obsoleta, sem agilidade? Que tipo de prospecção esperar sabendo que o anacronismo é um alçapão que engole as perspectivas mais promissoras?

 

C. Desafios e missão

O primeiro desafio consiste em enfrentar as inúmeras demolições das teorias da arte. Várias são recorrentes e ninguém se entende quando se trata de discutir a autonomia da arte e a crítica dessa autonomia; a constante reavaliação da modernidade e dos projetos utópicos; a distopia e a heterotopia como narrativas anti-nostálgicas; as estratégias de resistência e ativismo em organizações espontâneas; a possibilidade de tomar essas manifestações informais como uma forma contemporânea de entender “classes sociais”; o avanço do espetáculo e do lazer e assim por diante numa sucessão interminável de perguntas.

Outro desafio consiste em manter um tipo de visibilidade, na agenda do capitalismo das ideias e das notícias, entre o anúncio da dOCUMENTA 13, em 2008, e a abertura do evento em 2012 – admitindo que Carolyn vá propor uma exposição porque nem isso hoje é uma garantia dada pelo curador.

As estratégias encontradas variam. Na Documenta 12, essa visibilidade contou com a plataforma de cerca de 100 publicações (“journals and magazines”) do mundo inteiro. Para a próxima edição, o site vem sendo alimentado por uma iniciativa artística intitulada AND AND AND.

Mas todos esses esforços pulverizados correspondem a quê exatamente, senão a uma realidade insidiosa que se esconde na passagem da Documenta de exposição para evento? De novo, vale ouvir o que cada contexto pretendia transmitir no seu tempo próprio. Neste caso, a difícil equação que a mostra se colocou com o turning point de Harald Szeemann, em 1972, com a Documenta V, pois hoje ninguém compete com reality shows.

Não sendo uma exposição histórica feita a partir de nomes consagrados, e assumindo o presente e o futuro como continentes pedindo para serem explorados, qual a missão agora? A tarefa do curador se equipararia a uma tarefa nada objetiva e puramente subjetiva: prometer uma mostra tipo “bolsa de valores”, que antecipa uma ideia útil para o futuro, lançando uma plataforma de talentos ainda inéditos.

Ora, se o artista goza da prerrogativa que o permite anunciar, antecipar; sabemos que a tarefa da crítica requer um tipo oposto de raciocínio: juntar, compor, recolher, reconstituir, estabelecer... Portanto, romper com padrões estabelecidos de leitura e fundar um novo paradigma de interpretação da arte e do seu tempo presente e vindouro: não há vocabulário mais evidente que a expectativa de lançar uma vanguarda continua sendo o fardo mais pesado que o curador da Documenta recebe quando escolhido.

 

D. Curadoria de vanguarda e curadoria crítica

E não é isso que acontece? Quando analisamos tanto a Documenta X (1997) de Catherine David como a XXIV Bienal (1998) de Paulo Herkenhoff, a situação que se apresenta é bem parecida: julgamentos raivosos durante a vigência da exposição foram substituídos, com o passar dos anos, por uma consagração como “melhor documenta” e “melhor BSP”.

Isso significa admitir um “antes” e um “depois” na proposição de uma narrativa curatorial. Significa, nos casos acima, admitir a justeza de retroprospectivo e antropofagia, para citar apenas um conceito de cada, dos dispositivos discursivos e de montagem (display), e a adequação de um sistema crítico para dar conta tanto das manifestações históricas como contemporâneas.

A partir da Documenta 9, a mostra foi absorvendo manifestações artísticas localizadas em países fora dos centros hegemônicos de difusão de cultura. Até que na Documenta de Okwui Enwezor (11), essa vereda foi explorada ao máximo com os estudos pós-coloniais, abrindo outra crise em relação aos rumos da mostra.

O ponto nevrálgico consiste hoje em trabalhar simultaneamente com o seguinte paradoxo: sem pretender buscar um paradigma universal, é preciso convocar outras formas de expressão artística, mas como fazê-lo sem massacrar seu contexto? Ou será mera veleidade? Será que ainda estamos debatendo a “velha” questão posta por Walter Benjamin: como deslocar (traduzir) um objeto de um contexto no qual goza de um valor de culto para um contexto onde terá valor de exposição?

Despossuídos do glamour (da grife, das roupas, dos apetrechos tecnológicos i-phone, i-pad, i-pod, i-mac etc.), a figura do curador reabilita a movimentação dos cegos de Baudelaire: “manequins; um tanto ridículos; terríveis, tão singulares quanto sonâmbulos”.

E o que procuram no Céu os curadores-cegos/cegos-curadores? Basicamente, procuram dar conta de um drama chamado Zeigeist, “o espírito do tempo” na filosofia da história [e carregam o fardo mesmo não sendo alemães], drama esse que os curadores da Documenta 12 ilustraram com uma cópia do quadro Angelus Novus de Klee, famoso pela interpretação que ganhou na leitura de Walter Benjamin.

Seria o curador um duplo do “anjo da história”, dividido numa tempestade chamada globalização?

Seria o curador (de Kassel, pelo menos) fadado a dar conta de uma atmosfera cultural e, para isso, sair pelo mundo em busca do ponto certo de inflexão entre passado e futuro?

Seria este o destino da Documenta que, finda a missão de regenerar uma modernidade degenerada, de trazer artistas proscritos pelo regime nazista, não se contenta mais com a ideia de um museu temporário e abraça o evento de 100 dias?

Ocupar esse lugar é tão desafiador e ingrato, quanto foi para Greenberg a forma de escrever a crítica de arte. Ora, em entrevistas ou conferências, Carolyn Christov-Bakargiev tem afirmado que a Documenta não é uma exposição, não trata de historização e seria antes da ordem de um “estado mental” (state of mind), já que assume, para si, a impossibilidade de historicizar.

 

Concluindo: será possível permanecer crítica?

A pergunta que mais me inquieta é: quando a gente sabe que toda a sensibilidade de uma exposição reside nos seus pequenos detalhes e nas articulações que consegue estabelecer dentro de um conjunto de obras, será possível manter o controle do projeto e orquestrar todas as partes envolvidas? Quando a gente sabe que a Documenta é devorada por visitantes que, na melhor das hipóteses, passam 4 ou 5 dias em Kassel para julgar um trabalho que levou cerca de quatro anos; quando a gente sabe que as horas de filmes da Documenta 11 davam uma soma superior à totalidade do período em que a mostra ficou aberta; quando a gente sabe que a Documenta entrou no cânone e não é mais “atitude”...

É a Documenta capaz de dar uma resposta agora que entrou no circuito de circulação das grandes mostras como mais uma modalidade de entertainment? Afinal, as discussões mais interessantes não seriam provocadas por exposições de importância lateral, escala modesta, dentro de pequenos programas alternativos?

 

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2. Alguma correspondência possível entre a Bienal de São Paulo e a mostra de Kassel?

A. Paradoxos da aposta sem erro

Mencionei várias “crises” até agora e isso não significa em absoluto que as crises de identidade da Documenta possam oferecer qualquer semelhança com as crises da BSP. Pois o que me parece louvável perceber nesse exemplo tão distinto é que a mostra alemã sofre dos próprios impasses teóricos que ela mesma se coloca. E cada cratera que reabre investe novamente na necessidade de continuar redefinindo o que é arte no momento em que será mostrada. Haveria melhor forma de explicar o que é “contemporâneo”?

A fetichização da Documenta no Brasil (claro que isso só ocorre em âmbito superrestrito) provém de um paradoxo que eu chamaria de paradoxo da aposta sem erro, que consiste em arriscar com a condição de ganhar – sempre. É assim que, pelo menos, o Brasil da minha geração recebia os ecos de cada Documenta, sempre com ares de novidades em alta voltagem e todas elas acertadas! E “acertada” significava, para um país que ainda se media com inferioridade em relação às grandes potências, “in-ques-tio-ná-vel”.

Hoje o quadro apresenta outras nuances e ganhou complexidade.

Passamos por mudanças tecnológicas e sociais tão profundas que as pessoas, nesse auditório por exemplo, não têm noção do que era, e ainda representa, a distância geográfica de Kassel, a dificuldade e o custo de uma viagem de um continente para outro trinta anos atrás. É uma pergunta a ser feita aos estudantes que lotam salas de formação de curadores. Fala-se com muita leveza sobre dezenas de aspectos que sequer já foram vivenciados no Brasil. Quais os casos reais de curadoria de artista que podem ser evocados?

Quantos de nós já viram uma única mostra de Münster, a mostra realizada de dez em dez anos que mencionei anteriormente? Vou contar uma experiência reveladora para mim: é verossímil encontrar um artista europeu em torno de seus 45 anos que tenha visitado, na sua infância e juventude, as quatro edições do skulptur projekte. Tanto é que pôde até ser convidado para a última, com um projeto público que faça citações explícitas a partir de uma seleção dos highlights das mostras anteriores, fornecendo assim quase um pequeno guia espacial [estou pensando em Roman de Münster de Dominique Gonzalez-Foerster, 2007]. Trata-se de uma realidade impensável na formação de um artista não-europeu!

Não é tão prosaico quanto parece a afirmação de que uma viagem específica para Kassel ingressou no roteiro das viagens de formação do olhar do artista brasileiro há cerca de quinze ou vinte anos. O mesmo pode ser dito do mais respeitado crítico brasileiro. Com certeza, este é um dos novos problemas que a Documenta deve enfrentar daqui para frente, uma vez que ela está inserida no Grand Tour das viagens de turismo cultural.

 

B. Um pouco da recepção crítica da Documenta no Brasil

A história da Documenta começa, para o circuito brasileiro, a partir da Documenta 8, de 1987, que foi dirigida por Manfred Schneckenburger. Cito aqui pelo menos três marcos discursivos que despontam simultaneamente por meio dos projetos de Sheila Leirner: o “fim da grande narrativa”, a “perda da utopia” e a “contaminação entre teoria e prática artística”. Não tenho notícia de outra bienal de São Paulo, antes de suas edições de 1985 e 1987, que tenham estabelecido algum vínculo tão claro com uma perspectiva “internacionalizante” da arte – lembrando que Sheila é também responsável pela chegada ruidosa das estrelas do neo-expressionismo alemão e da transvanguarda italiana por aqui.

Mas é a Documenta IX (1992), de Jan Hoet, que, de fato, deixará as sementes que ainda não foram estudadas. Devo contar uma pequena história pessoal.

Eu trabalhava como repórter da Folha de S. Paulo quando passou por aqui um dos colaboradores de Hoet, Bart de Baere (sujeito inesquecível pela sua altura). A notícia vazou para o jornal de um modo diametralmente oposto à situação que estamos presenciando agora. Bart estava hospedado incognito, e não esperava nem pretendia dar uma declaração oficial, quando apareço para tentar arrancar dele algum depoimento sobre uma eventual participação de um artista brasileiro. Décadas depois, quem se surpreende sou eu, folheando ao acaso livros numa livraria (em Estocolmo?), quando páro numa publicação (cujo nome não guardei) que reúne a fala de diversos curadores sobre seu ofício e lá encontro Bart de Baere citando muito jocosamente nosso encontro. E eis que ele conta que só sentiu a celebridade que se atribui ao curador quando esteve no Brasil, pelo modo como foi “descoberto”, “abordado” e teve sua fotografia ampliada num jornal de grande circulação...

Sobre Catherine David, bem conhecida da nossa cena, não vou me alongar. Depois da Documenta X, tornou-se visitante assídua, a ponto de implantar aqui o projeto “São Paulo/SA” no edifício do Copan.

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3. Analogias e diferenças entre a Bienal de São Paulo e a Documenta de Kassel

Não terei tempo de traçar linhas transversais entre a história da Bienal de São Paulo e a Documenta de Kassel. Quero apenas rememorar as palavras de Paulo Herkenhoff, quando foi convidado a fazer um balanço dos dez anos de sua Bienal:

Kassel mantém sua posição como uma mostra de reflexão. Isto não se cria querendo exposição de A, B ou C, de Richard Serra ou Anselm Kiefer.

A diferença potencialmente mais interessante entre São Paulo, Veneza e Kassel é que a Bienal de São Paulo tem uma grande cidade viva e produtiva por trás; Kassel é um pequeno burgo; e Veneza, um monumento turístico tombado. O que me dispus a fazer foi afastar São Paulo de Veneza e aproximá-la de Kassel. Isto é, desviar do modelo político de Veneza para o intelectual de Kassel. Fiz na surdina para não assustar os herdeiros de Ciccillo Matarazzo. [...]

Entre várias medidas tomadas por Herkenhoff, gostaria de destacar uma que, até hoje, permanece recalcada. A 24ª Bienal de São Paulo instituiu a retirada do termo “internacional” do título para se tornar a referência internacional – “um meio menos provinciano que o brasileiro”.



Jens Hoffmann lançou uma enquete no e-flux em 2003 que repercute até hoje, para verificar se “a próxima Documenta deveria ser curada por um artista”. Por que “por” e não “com” os artistas? Não é mera mania desconstrucionista: há uma percepção crescente de que a Documenta não pode ficar alheia à criatividade artística só porque assume um viés essencialmente crítico. Outra questão que perturba as autoridades culturais de Kassel são os rumores de deslocar a mostra de sua cidade de origem, proposta que Catherine David teria aventado. Segundo Dieter Lesage, o projeto Would you like to participate in an artistic experience, do artista Ricardo Basbaum para a Documenta 12, já sinaliza tal possibilidade. Cf. D. Lesage, “The Next Documenta Shouldn’t Be in Kassel”. e-flux Journal ≠ 1, dezembro de 2008.

Curioso observar que mesmo a Documenta vem engrossando a reclamação contra as críticas que fazem vista grossa sobre as obras dos artistas e se detêm exclusivamente na intenção curatorial.

Intervenção de Okwui Enwezor no 1st Former West Research Congress, citando Hélio Oiticica, é bem intencionada mas demanda um pequeno ajuste, sincronizando o arquivo da Documenta com o arquivo do artista.

A. Fabris, “Um ‘fogo de palha aceso’: considerações sobre o primeiro momento do Museu de arte moderna de São Paulo”. In: MAM 60. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2008. (p. 23)

AND AND AND is an artist run initiative, which will use the time between now and dOCUMENTA (13) in 2012 to consider with individuals and groups across the world the role art and culture can play today and the constituent publics or communities which could be addressed. The series of interventions, situations, and occurrences entitled AND AND AND are part of dOCUMENTA (13) and will compose a map of emergent positions, concerns, and possible points of solidarity.

Os títulos dos textos de W. Benjamin são fontes por excelência de inspiração para quem se debruça sobre o trabalho do artista: “A tarefa do tradutor”; “O autor como produtor”.

C. Baudelaire, Les aveugles, in: Les Fleurs du mal. Tableaux parisiens. Publicado pela primeira vez no dia 15/10/1860 na revista L’Artiste.

Cf. W. Benjamin, “Thèses sur la philosophie de l’histoire”. Paris: Denoël, 1971. “Il existe un tableau de Klee qui s’intitule Angelus Novus. Il représente un ange qui semble avoir dessein de s’éloigner de ce à quoi son regard semble rivé. Ses yeux sont écarquillés, sa bouche ouverte, ses ailes déployées. Tel est l’aspect que doit avoir nécessairement l’ange de l’histoire. Il a le visage tourné vers le passé. Où parait devant nous une suite d’évènements, il ne voit qu’une seule et unique catastrophe, qui ne cesse d’amonceler ruines sur ruines et les jette à ses pieds. Il voudrait bien s’y attarder, réveiller les morts et rassembler les vaincus. Mais du paradis souffle une tempête qui s’est prise dans ses ailes, si forte que l’ange ne peut plus les refermer. Cette tempête le pousse incessamment vers l’avenir auquel il tourne le dos, cependant que jusqu’au ciel devant lui s’accumulent les ruines. Cette tempête est ce que nous appelons le progrès.”

Carolyn Christov-Bakargiev, Timur Shah Mausoleum in Kabul, Afghanistan, 2/06/2010. Viagem com Michael Taussig (antropólogo) e os artistas Francis Alÿs e Mario Garcia Torres.

A adoção das viagens ao exterior como premiações ou estímulos aos jovens artistas talvez seja tão antiga quanto a existência de Salões. O Antarctica Artes com a Folha premiou os artistas vencedores com uma viagem para a Documenta de Kassel e a Bienal de Veneza daquele ano.

P. Herkenhoff, “Bienal 1998: princípios e processos”. In: marcelina | antropofágica, Revista do Mestrado em Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina, São Paulo, Fasm, 1º semestre de 2008.

Cf. P. Herkenhoff, op. cit., p. 21.