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Relato CICLO X: Sistema de arte tardio?

por Rafael de Campos

Índice do relato:

III - Laymert Garcia dos Santos fala sobre a desatenção do poder público e a indiferença das elites às artes plásticas no Brasil por meio da migração da coleção de Hélio Oiticica e Adolfo Leirner para o Museu de Houston (e elogia a iniciativa de Ivo Mesquita na Bienal de São Paulo)

II - O elogio da delicadeza - Paulo Sérgio Duarte faz crítica a qualidade da produção artística contemporânea por meio de uma revisão histórica da arte brasileira e faz elogio à geração formada durante os anos 60.

I - Marisa Mokarzel mostra panorama da produção artística de Belém do Pará


III
A denúncia é importante e interessa: um museu de Houston detém o monopólio sobre a obra de Hélio Oiticica e agora completa o botim por meio da coleção Adolfo Leirner, em um saque de divisas culturais comparável ao do colonialismo europeu no século XIX. Para embasá-la teoricamente, Laymert  Garcia dos Santos compara sua denúncia à de Roberto Schwartz sobre a universalização de Machado de Assis feita pelas universidades americanas, em que as condições concretas de existência que geraram o grande escritor são transformadas em um mundo hostil que testemunha o milagre. Está certo e não é novidade: a elite “capitão do mato” brasileira só paga pau pra artista nacional se gringo reconhece, assim como técnico da seleção não chama jogador que só brilha no campeonato brasileiro. Mas como arte tem uma parte importante de seu critério calcada na subjetividade, um campeonato não serviria para tirar a limpo a Verdade, assim como o consolo da História serve somente para quem não a conhece em seu funcionamento. A palestra é muito interessante: traça o desenvolvimento da moda de arte nos 90 que vai se transformando no que a moda é: maquiagem para produto. No caso o produto era a lavagem de dinheiro sujo, o tráfico de influência, as leis de incentivo à sonegação fiscal. Até aí, paciência: os Médici nunca foram santos e exortação moral nunca foi política. Nem mesmo política cultural. E o remédio ainda é o mesmo: pito e jaula pro malandro até ele devolver ao erário. O problema foi a inversão do “papel do Estado” nesse jogo (milhares, milhões de aspas histórico-políticas para o papel do Estado nessa frase, caro leitor) virando-se cada vez mais para o espetáculo midiático e menos para a produção cultural profunda e realmente experimental, que aqui como em qualquer parte, só é possível graças ao subsídio estatal. A não ser que o leitor seja um desses tarados que acha que o artista deve sofrer para produzir. Nesse caso eu recomendaria um psiquiatra. E pode ser da saúde pública, por que não?

Agora o que eu não sei é como uma Bienal platônica poderia resolver a crise. A crise não é crítica, ou melhor, a crítica é crise, e temos grandes artistas produzindo ao redor do mundo: de Peter Piller a Damián Ortega.

De qualquer forma, duvido que a Bienal de São Paulo seja tão vazia como o jornalismo cultural alardea. Muito das discussões em torno das eternas crises da Bienal recordam as discussões em torno da seleção brasileira: todo mundo queria estar lá, e o rancor é uma característica humana que não pode ser, simplemente descartada. Já fui informado de excelentes artistas convocados para discutir sua participação na Bienal. Ana Paula Cohen falava de Renata Lucas muito antes de que a moça se transformasse em uma estrela. Ou seja, como na Documenta de Kassel, não podemos usar o argumento filisteu de que “não vimos arte” ou coisas desse calibre. A trajetória de homens como Cage foi tão difícil como os que o apoiaram, e devemos ter mão leve para tratar do tema, para depois não fazermos mea culpa como esse escritor, que se arrepende a cada dia de suas observações sobre a Bienal de São Paulo. Culpa reforçada pelo apoio recebido de gente que, no final das contas, pensa de forma totalmente contrária a sua.
Mas, às vezes, tenho a impressão de que os curadores enrolam-se em justificativas metafísicas para as suas escolhas teóricas e de gosto, quando não para explicar reais dificuldades materiais para a realização do evento. Difícil imaginar por exemplo, um país que abra mão do maior evento de arte de sua história no mesmo ano em que ajuda financeiramente galeristas profissionais a participar de uma feira de arte comercial na Espanha. Soa tão estranho quanto uma improvisação desastrosa em uma Documenta de Kassel, se não mais.


II
Para Paulo Sérgio Duarte e para qualquer teórico que não caia no lenga-lenga neo-liberal do “fracasso do modernismo”, o próprio modernismo, por suas vicissitudes auto-críticas, mostra-se descontínuo, opaco a simplificações e estruturado (num paradigma que não pretendo simplificar) por suas próprias lacunas. Estruturado porque é dentro, e não apesar dessas lacunas, que as obras mais importantes da arte moderna, e também contemporânea - se não tratarmos as coisas por simples sucessões temporais evolucionistas - acontecem. Pensem no espiritualismo-tecnicista de Malevich ou no cristianismo-ecológico de Beuys. Paulo Sérgio sabe que um hiper-materialismo não deixa de ser um idealismo. E dos mais perigosos. Se a arte, como ele diz, é a “cultura condensada”, nada mais mergulhado nas contingências de sua época que o artista. Portanto, muito da queixa do crítico não significa um rechaço à narrativa autobiográfica, ou a vingança do recalcado realizada na arte contemporânea desde o conceitualismo. O crítico ressente-se de uma ausência de “formalização poética” por parte do artista, que acaba por transformar o conteúdo de mundo da obra em um tema, como o das redações escolares ou da propaganda institucional.

De certa forma o que o crítico quer é qualidade artística na obra, e procura dizê-lo de forma sutil para evitar a vociferação da crítica que faz patrulha ideológica (se você não gosta de uma obra que fale do índio brasileiro é porque você não gosta de índio brasileiro) ou da patuléia que esbraveja contra o “formalismo”, como eles gostam de dizer.

Ao invés disso o crítico concentra-se em uma forma de resistência artística ao mundo do mass media e da mercantilização da vida pelo que ele chama de “delicadeza”. Me fez pensar em uma definição de Barthes que afirma a delicadeza como uma soma de consideração humana e distância. Respeito e consideração para com a relação que constitui o objeto de arte (nenhum grande artista, nem mesmo no modernismo, acreditava na total autonomia do objeto de arte) e distância crítica para evitar tanto a propaganda por meio da forma quanto o formalismo alienado. Ou seja, uma adesão ao mundo de forma crítica e auto-crítica. O exemplo da grande Fernanda Gomes é perfeito. Nada mais dialeticamente vinculado ao nosso cotidiano a um só tempo industrializado e matérico, individualista e massificado do que a sua obra. Essa delicadeza, diz Paulo Sérgio acertadamente, pode caracterizar-se por um desejo de invisibilidade, um silêncio ao “comércio excessivo do mundo”  que procura manter alguma interioridade, algum rincão avesso ao escrutínio do capital desmaterializador.

Por último, o crítico tenta traçar uma espécie de topologia histórica assimétrica, em que acusa acertadamente o modernismo brasileiro dos anos 20 de uma amenidade simbólica que impossibilitou um rompimento apreciável com a arte mais retrógrada do país, caindo na babaquice do patriotismo (a raiz da palavra, dessa vez, não mente). Daí sua defesa da geração brasileira de artistas que, durante a ditadura dos anos 60, fogem dessa suposta identificação edipiana com o passado artístico nacional. É nesse momento que nossas opiniões divergem. Para mim, ao fugir dos pais locais, muitos dos artistas dos anos 60 e 70, no Brasil, correm para os braços dos pais solteiros do outro lado do Atlântico, como o filho rebelde de classe-média que segue o professor universitário. Postura que, se não atrapalha, não constitui per se um avanço – se é que estamos interessados nisso – com relação ao modernismo brasileiro. Uma crítica orgânica da própria tradição técnica, assim como de suas condições concretas de produção é o que o artista precisa, mas não para superação do seu passado nacional. Não há nada aqui a ser superado. Mas para alcançar a delicadeza almejada pelo crítico, capaz de penetrar, por uma via que por ser delicada só pertence à arte, no seio infinito do mundo.


I

O poder do Powerpoint de simular conteúdo por meio da ilustração – aprendido nas apresentações de campanhas pelos publicitários - pode dar uma sobrevida a assuntos desinteressantes que acabam por roubar muito do tempo útil dedicado a questões culturais. Ou, o que é pior, torna desinteressantes e ilustrativas produções culturais independentes, submetendo-as a “questões” de arte. Também um termo cujo uso indiscriminado merecia uma discussão, por ligeira que fosse. Marisa Mokarzel por louvável e importante que seja a sua iniciativa, deveria distanciar-se de seu próprio posto de Outro, ou de Um que dá atenção benevolente ao Outro para concentrar-se, acredito, na produção e questões em si que os artistas de Belém do Pará nos colocam. Assim não correria o risco de transformá-los em scholars que saem da própria pele em busca de uma justificativa escolar para sua produção. Esse crítico anotou furiosamente os nomes de Nassar, do grupo Foto Ativa, de Lúcia Gomes, Alexandre Siqueira, Paula Sampaio etc. E terminou com as piores impressões sobre tanta alteridade. Não por senti-la alheia, mas por senti-la reivindicativa de uma alteridade que, por fim, a legitimaria como establisment. E não acredito, sinceramente, que isso seja a intenção dos artistas em questão, e se for, não existe nenhum problema nisso. A arte é uma atividade institucional e vinculada à cultura que a cerca. E Belém do Pará não é a Lua, pombas!!

É evidente que precisamos produzir, incentivar e conhecer arte de todas as partes. Virar as costas para o fenômeno de produção cultural de ponta, só porque habitam fora dos centros industriais e comerciais só tem um nome: racismo. Mas Nova Iorque precisou esperar a vitória americana na guerra para adquirir um sistema de arte e ainda assim para perdê-lo 10 anos depois para a nova concepção multiculturalista que eles mesmo contribuíram para criar. Precisamos abandonar agora, não a exotização do Outro, mas a própria exotização para pensar as coisas como elas são: o novo espaço da cultura não se concentra somente nos grandes centros financeiros assim como o próprio capitalismo espraiou-se e dissolveu-se por quase toda crosta terrestre. A modernização, a transformação de um lugar em civilizado europeu não é a solução para nenhum dos problemas humanos, e muito menos de cultura. Londres está aí, com a sua artezinha milionária e medíocre para provar isso para quem quiser ver. Assim como a civilização, a modernização (outro nome para a mesma coisa com menos acento racista) é uma opção, e nem sempre a melhor. A contraposição simplista entre modernismo e pobreza -  se esquece quanto o modernismo contribuiu para a pobreza, a violência e a miséria. E isso não é porque o modernismo é “mau”, ou “fracassou”, como gostam de matraquear os críticos institucionais, de Crimp a Bourriaud. Mas porque o modernismo é um processo histórico, ou seja, não pode ser submetido a normas éticas ou morais, como infelizmente se costuma fazer com os membros de uma comunidade humana.

Como o Capitalismo, não encontramos o Modernismo pela rua tomando um café com sua amiga Revolução Industrial. Como a civilização, o modernismo, repito, é uma opção. Nem melhor nem pior que outras. Alardear o esforço de uns e outros para alcançá-lo, além de não ser teoria, é péssima propaganda.