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Relato CICLO X: “Afinal, o que é arte brasileira?”

Por Ilana Seltzer Goldstein

1. Visão geral do debate  

O título dessa mesa-redonda remete a uma pergunta fundamental, tão antiga, quanto controversa: “afinal, o que é arte brasileira”? Uma questão dessa natureza não poderia ser resolvida em um evento com duração de duas horas. Embora, por sua própria complexidade, o problema continue parcialmente em aberto, os participantes da mesa ofereceram pistas interessantes para ajudar a resolvê-lo, cada um à sua maneira. 

O primeiro a se pronunciar foi Agnaldo Farias, professor da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e conservador do Instituto Tomie Ohtake. Sua fala, de certa forma, tangenciou a questão proposta, na medida em que traçou um panorama histórico da arte contemporânea brasileira, destacando como marcos o movimento neoconcretista e o reconhecimento internacional de Hélio Oiticica e Ligia Clark, mas não ofereceu proposições generalizantes sobre eventuais especificidades da arte brasileira. A abordagem de Agnaldo Farias foi diacrônica, pautada no eixo temporal e na descrição de poéticas individuais, ao contrário das duas intervenções que se seguiram à sua. Talvez porque Agnaldo Farias simplesmente não acredite que existam características da arte brasileira enquanto conjunto, mas apenas criadores e movimentos pontuais e relativamente autônomos que, em determinados contextos, abrem novos caminhos e tornam-se influentes para os demais. Mas isso é somente uma conjectura dessa relatora, apoiada no contraste observado entre a tônica da participação de Agnaldo Farias e a dos outros dois membros da mesa.  

Luís Camillo Osório, professor da Universidade do Rio de Janeiro (UniRio) e Moacir dos Anjos, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e curador do Brasil na Arco´08 arriscaram-se um pouco mais em relação ao mote proposto, buscando uma abordagem sincrônica. Embora com muito cuidado, para não serem acusados de estereotipar e congelar a arte e a identidade brasileiras, ambos procuraram apontar recorrências, traços que perpassam a produção artística brasileira como um todo. E o curioso é que houve grande convergência nas interpretações desses dois palestrantes. Luís Camillo tratou da informalidade que pauta a sociabilidade brasileira e que teria levado à predominância do informalismo na arte. Já Moacir dos Anjos norteou sua reflexão pelas idéias de sincretismo e antropofagia, procedimentos de deglutição das diferenças que estariam presentes, tanto no funcionamento da sociedade brasileira, como especificamente nas criações culturais. Ambos os especialistas, portanto, procuraram relacionar o campo artístico às demais esferas da vida social e ambos se utilizaram de autores da História e das Ciências Sociais – Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Hermano Vianna.  

Abaixo estão os resumos da participação de cada um dos convidados da mesa, recheados com trechos transcritos de suas falas. Como fechamento, são apresentadas algumas reflexões sobre o teor antropológico do debate. 
 
 

2. A arte brasileira segundo Agnaldo Farias: vontade construtiva e astúcia 

O interesse pela produção artística de países “periféricos”1 surgiu, segundo Agnaldo Farias, simultaneamente à crítica dos valores modernos – autonomia, pureza, eurocentrismo, distância em relação ao espectador, entre outros. Além disso, no final dos anos 1980, os mercados europeu e norte-americano, inflacionados e saturados, necessitavam de ampliação. O ápice do interesse pela condição periférica deu-se, portanto, nas duas últimas décadas, acompanhado por uma maior condescendência da crítica internacional nos julgamentos de nossa produção. Isso fez aumentar o fluxo de colecionadores e marchands por aqui, especialmente a partir da Bienal de 1989. De acordo com Farias, foi nesse momento que ocorreu a descoberta internacional de dois protagonistas do movimento neoconcreto: Lígia Clark e Hélio Oiticica. O convite à participação do espectador e o aspecto relacional de seus trabalhos vieram ao encontro da tendência internacional de se aproximar arte e vida.  

O lançamento do manifesto “Ruptura”, elaborado por Waldemar Cordeiro, em 1952, e a exposição “Opinião 65”, na qual passistas da Mangueira vestiram os Parangolés de Oiticica, podem ser considerados dois momentos fundadores da arte contemporânea brasileira. Nas palavras de Farias, os concretistas brasileiros procuraram “evitar as oscilações e o embaraço ideológico dos primeiros modernistas, como Tarsila do Amaral, Portinari e Di Cavalcanti, cujas pesquisas plásticas eram parcialmente refreadas pelo desejo de construção de imagens tipicamente nacionais. Embora não se deva concluir que o adensamento do debate estético no Brasil tenha sido feito exclusivo dos concretos, é fato que sua contribuição foi grande. Mesmo Oiticica diria, pouco mais tarde, que sua obra plurisensorial era fruto da vontade construtiva geral da arte brasileira”.  

Soma-se a essa “vontade construtiva geral” um segundo elemento constitutivo da arte contemporânea brasileira: a combinação entre a problematização política e a experimentação estética, sobretudo durante a ditadura. Aqui, mesmo a Body-art, o Pop e a Nova Figuração incorporaram críticas abertas ao imperialismo norte-americano e aos contrastes sociais típicos do subdesenvolvimento, ao contrário do que se observou em outros países. Ilustrações disso são “Berço Esplêndido” (1968), trabalho no qual Carlos Vergara fez uma alusão macabra ao hino nacional brasileiro, logo após o A.I.5, e um trabalho de Antonio Manuel a partir de matrizes de páginas de jornais censuradas, protesto poético contra o amordaçamento da livre expressão naquele período.  

A astúcia, a capacidade de driblar obstáculos materiais e simbólicos e de fazer provocações veladas estão presentes, de diferentes formas, nos trabalhos de vários artistas brasileiros das décadas de 1970 e 1980, que viveram e criaram sob o impacto do Golpe Militar. Ana Maria Maiolino, Amélia Toledo, Cildo Meireles, Ana Bella Geiger e Artur Barrio entre outros, construíram “obras fundadas em elipses, avessas a metáforas fáceis, e que se faziam notar por frestas sutis, cavadas nos interstícios da mídia.” Artur Barrio, por exemplo, espalhou trouxas ensangüentadas às margens de um ribeirão, na cidade de Belo Horizonte, atraindo a atenção de bombeiros, transeuntes e da polícia, que não sabia como lidar com aquilo.

O boicote nacional e internacional à Bienal de São Paulo – que a ditadura mantinha aberta como prova de que o país era “democrático” - aliado à ausência de espaços para os artistas na imprensa e no mercado, gerou o surgimento de coletivos em torno de escolas e revistas de curta duração. Mas, segundo Agnaldo Farias, essa separação entre esfera pública e reflexão cultural não impediu a qualidade das experiências de artistas como Tunga, José Resende, Waltércio Caldas, Regina Silveira, Carmela Gross, Paulo Bruscky e Vera Barcelos Neto (verificar nome,creio que ele disse Vera Chaves Barcelos). “Mas a condição experimental se tornou invisível, secreta”.  

De meados de 1980 até meados de 1990, com o desafogo após anos de regime militar e a volta da abertura para o debate internacional, houve, segundo Farias, uma repentina ampliação do número de artistas. Os novos artistas brasileiros passaram a reconhecer a qualidade da produção anterior e o circuito de artes começou a se encaminhar rumo ao profissionalismo. A produção artística brasileira ganhou visibilidade pública, foram criados museus e centros culturais, promulgaram-se leis de incentivo à cultura e tudo isso gerou um grande desenvolvimento do setor cultural.

Artistas como Leonilson, Nuno Ramos, Luís Zerbini e Daniel Senise faziam eco à transvanguarda italiana e ao neoexpressionismo alemão. Essa produção caiu no gosto da mídia, que passou a divulgá-la. “O novo conjunto representava uma reação à arte hermética, purista e intelectual predominante nos anos 1970, espetáculo calcado na emoção e no prazer”. E, se até meados da década de 1980 predominava a pintura, em 1988 surge o grupo Visorama - composto por Ricardo Basbaum, Rosângela Renó, Eduardo Coimbra – propondo o entrecruzamento de várias linguagens e áreas do conhecimento.  

Por fim, Agnaldo Farias distinguiu duas vertentes na produção nacional pós-moderna: uma afinada com propostas internacionais, sem qualquer pretensão de “brasilidade”; outra que faz confluir o debate internacional com a produção nacional de gerações anteriores. É nessa segunda vertente que Nuno Ramos “olha” para Goeldi; Ernesto Neto bebe em Lígia Clark e Oiticica; Beatriz Milhazes e Adriana Varejão voltam em direção ao Barroco brasileiro.  

Após descrever tamanha diversidade no campo artístico nacional, Agnado Farias deixou no ar três respostas – bem diferentes entre si - à questão proposta pela mesa-redonda. Em primeiro lugar, destacou que a arte brasileira vista de fora não é necessariamente a mesma que conhecemos e/ou valorizamos dentro das fronteiras nacionais. Ou seja: não basta perguntar “o que é a arte brasileira?”, seria preciso acrescentar para quem.  Em segundo lugar, o palestrante mostrou que a arte produzida no Brasil muda de “cara” conforme o contexto político, social e cultural, e que cada grupo de artistas assume atitudes e poéticas bem distintas mesmo dentro de uma mesma geração. Dessa perspectiva, não se pode falar em uma arte brasileira no singular. Mesmo assim, Agnaldo levantou três aspectos comuns a alguns artistas brasileiros, em momentos diferentes: a “vontade construtiva”, forte nos anos 1950 e 1960; o uso sagaz de elipses e metáforas, incentivado pela repressão da ditadura militar; e o diálogo respeitoso com as gerações anteriores, a partir da abertura política, nos anos 1980.  
 
 

3. A arte brasileira segundo Luís Camillo: informalidade e informalismo 

Luís Camillo começou afirmando que o tema proposto para a mesa era bastante arriscado. Em primeiro lugar, pela dificuldade de se falar em singularidade cultural em um mundo globalizado. Em segundo lugar, pelo perigo de se escorregar para o nacionalismo e a ilusão de que existe uma essência fixa brasileira.“O que se pretende não é uma definição de brasilidade, mas a caracterização das especificidades de uma produção poética produzida a partir do Brasil. Esse local não é substrato da arte brasileira – o local é um suplemento que se insinua junto a sua inserção global. É uma diferença que se desprende da obra para incluí-la e excluí-la em uma contemporaneidade plural policêntrica.” 

O palestrante sugeriu a apropriação de categorias criadas por Darcy Ribeiro, segundo o qual Venezuela, Chile e Brasil são “povos novos”, que se distinguem dos “povos-testemunho” e dos “povos transplantados”. Entre os “povos novos”, o marcante é o processo de hibridação cultural. O estudioso afirmou que a marca experimental e moderna da cultura brasileira viria da mistura generalizada das matrizes européia, africana e ameríndia. Nossa cultura “nasceu do encontro conflituoso e carnal entre matrizes civilizatórias distintas, que se fez a partir das trocas”.  

Na falta de um modelo fixo e de um padrão único, teríamos escolhido o caminho da informalidade, “no sentido de estarmos constantemente nos tornando Outro, num processo simultâneo de invenção e dissimulação”. No plano artístico, a tradução desse fenômeno seria o informalismo, ou seja, a hibridação de meios e materiais e a marca do inacabamento na realização - que não pode ser tomada como escassez, mas como absorção de processos criativos díspares. “As poéticas informais assumem o contato afetivo com o espaço e o espectador, como momento determinante de um processo aberto e dinâmico de formalização”. 

Recuperando o conceito de “homem cordial” - cunhado por Sérgio Buarque de Holanda para se referir à mistura nem sempre salutar entre as esferas pública e privada, entre a lei e a amizade2 -, Camillo afirmou que, da mesma forma que a cordialidade permite a convivência entre opostos, “o informalismo é o termo do meio entre a obra e o processo, a criação e a recepção, a atividade e a passividade”.  

Ilustrou essa idéia com a obra de Oiticica, destacando os aspectos sensorial e dialógico. “Quanto mais ele se afirmou nos elementos locais, mais se universalizou sua poética, no sentido da diferença, da heterocromia marcada pela recusa da cor pura e pela vibração tonal. (...) A dimensão de matéria da cor e seus matizes de luz surgem pelo movimento e a espessura das pinceladas: vontade de trazer a cor e a forma geométrica para sua dimensão táctil. (...) Oiticica trouxe o olhar construtivo para o chão precário da realidade brasileira, injetando nela perfume africano, dendê, uma intoxicação sensorial a mais. Levou a um reposicionamento sensorial, a partir de um corpo tocado por uma situação específica de improvisação e precariedade. A equação vanguarda e subdesenvolvimento, tão cara à época, encontrou em Oiticica uma medida experimental radical, capaz de precarizar a forma, para abri-la à processualidade e ao contato com o Outro. A aproximação do corpo que começa nos Bólides, passa pelos Parangolés e chega nos trabalhos finais não deve ser vista como dissolução da forma. Assim como a apropriação da energia popular é diferente de populismo, assim o informalismo é diferente de dissolução da forma.” 

A partir dos Parangolés, a poética de Oiticica será contaminada pela experiência com a Mangueira, em meio ao samba e à arquitetura do morro. Nas palavras do artista, conforme citação do palestrante: “O Parangolé, em 1964, é a fundação da raiz brasileira em oposição à folclorização desse material raiz. A folclorização nasce da camuflagem opressiva. (...) O Parangolé se ergue contra essa folclorização opressiva, é raiz, estrutura e é não-opressiva, porque revela uma potencialidade viva de uma cultura em formação. Digo cultura em formação como possibilidade aberta de uma cultura, em oposição ao caráter por que se designa habitualmente algo cultural. Em certo sentido é anti-cultura”. 

Oiticica era bastante atento, portanto, quanto à plasticidade da cultura e ao perigo de sua essencialização, sem contudo deixar de se interessar pela “raiz” e pelas tradições culturais que conformaram o Brasil. Não foi à toa que o antropólogo Hermano Vianna escreveu que a poética de Oiticica aponta para uma mutação cultural singular: “o artista não fala pelo Outro, mas com o Outro e junto com o Outro, “apostando na complexidade e numa construção de vozes e formas de vida heterogêneas”. Outro trabalho emblemático: na mostra Nova Objetividade, Lígia Pape expôs sua “Caixa Brasil”, com pedaços de cabelo das três principais etnias que formaram o Brasil. A partir desse momento, “procedimentos artísticos oriundos da cultura popular passam a se articular com experimentações poéticas de vanguarda. Não se tratava apenas de tematizar a marginilidade e de solidarizar-se com as camadas populares, mas de se apropriar de padrões estéticos resistentes à norma, viabilizando formas de arte plurais”.  

Um exemplo recente desses procedimentos encontra-se no concerto de Guilherme Vaz e Sérgio Bernardes, de cujo vídeo o palestrante exibiu um trecho. No vídeo, três índios aparecem tocando instrumentos tradicionais e assoviando, em meio à Orquestra Filarmônica de Manaus. Estão serenos, sentados com os outros músicos, “numa justaposição de esperança e desespero, delicadeza e violência”. Nesse e em outros trabalhos, a exclusão e a mestiçagem, cicatrizes e facetas complementares de nossa formação cultural, tornam-se matéria-prima dos artistas brasileiros. 

Na visão de Luís Camillo, portanto, a arte brasileira funciona como um canal de comunicação entre segmentos sociais e matrizes culturais que, paradoxalmente, se misturam e se excluem, num “equilíbrio de antagonismos”, para usar uma expressão de Gilberto Freyre. Este seria o traço compartilhado por várias poéticas brasileiras contemporâneas, entre elas a de Fernanda Gomes, Cildo Meireles, Franklin Cassaro e Ernesto Neto. Conforme concluiu Camillo: “o Brasil que se revela na arte brasileira é uma experiência contínua, em que as diferenças de tom e de tempo não são unificadas ou subtraídas, mas potencializadas pela composição. A informalidade e a sensualidade de muitas poéticas produzidas a partir do Brasil criam um campo simbólico capaz de transformar espaços de conflito e zonas de confraternização, onde convivem o moderno e o primitivo, o íntimo e o impessoal.” 
 

4. Moacir dos Anjos: a antropofagia enquanto procedimento nacional 

Antes de mais nada, Moacir dos Anjos deixou claro que discorda dos autores que, apostando na diluição de diferenças em escala global, julgam impossível referir-se, hoje, a uma produção artística nacional. O curador do Brasil na Arco´08, ao contrário, sustentou que, apesar das pressões para desmanchar fronteiras, exercidas pelas culturas hegemônicas européia e norte-americana, existe, sim, algo de particular na arte brasileira. “Os artistas se baseiam em acervos de signos e comportamentos que contêm – tenham eles consciência disso ou não - as particularidades sob as quais vivem, sejam elas históricas, sociais, econômicas etc. (...) Existe um intervalo largo de recriação e reinserção identitária entre dois pólos extremos: a afirmação de diferenças absolutas e irredutíveis e a submissão completa a uma cultura homogeneizante”. 

Fazendo coro com Luís Camillo, Moacir enfatizou a dimensão da relação com o Outro no processo de invenção e afirmação identitária. “Em vez da idéia de pertencimento que ignora ou exclui o diferente, é preciso adotar uma noção de identidade que não apenas reconheça o Outro, mas que dependa dos conflitos e trocas com o Outro para se representar”. Como ilustração dessa proposta, projetou uma imagem de “Babel”, trabalho de Cildo Meireles que representa o contato de tradições diferentes no mundo contemporâneo por meio de uma experiência auditiva, na qual se escutam muitas vozes diferentes, emitidas por rádios empilhados. Cildo Meireles estaria “afirmando o direito de narração do mundo, cem vozes que se confundem umas nas outras”. 

Segundo o curador da Arco´08, a arte contemporânea brasileira se afirma e se refaz justamente no atrito com o Outro. Mas só isso não basta para conferir distinção à produção simbólica de um país, já que a hibridez é praticamente a norma das produções de regiões não-hegemônicas. O que importa, então, é a maneira pela qual os elementos locais e os externos são confrontados e combinados pelos artistas, gerando algo distintivo do que é feito em outros lugares. “O que individualiza a arte brasileira não é um conteúdo, nem um repertório estanque de narrativas e gestos, mas os modos pelos quais esse conteúdo é afetado pelos repertórios de outros lugares e como os afeta. (...) É preciso discutir os modos com que os criadores do país contrapõem e aproximam elementos simbólicos diversos. Aqueles provenientes de uma tradição da qual reconhecem descender e aqueles que, originados em outras tradições ameaçam, alargam e constantemente transformam aquela primeira.” 

De acordo com Moacir dos Anjos, existem dois vetores que estão presentes em grande parcela dos artistas que se destacaram nas décadas de 1990 e 2000. O primeiro se refere à revalorização da antropofagia como modelo de relação com o Outro – um processo de incorporação e elaboração, desde o ponto de vista do Brasil, de pressupostos do sistema cultural hegemônico. A antropofagia destaca criadores que subvertem elementos das culturas dominantes a partir de perspectivas locais e sincréticas. A pertinência da antropofagia como conceito operativo foi confirmada na 24ª. Bienal de São Paulo, em 1998, sob curadoria de Paulo Herkenhoff. O segundo vetor é a tradição experimental da arte nacional, cujo momento fundador foi o neoconcretismo da década de 1950. Como afirmara anteriormente Agnaldo Farias, foram muitas as exposições e os textos críticos internacionais, com poder de legitimação que, a partir de finais da década de 1980, passaram a falar de uma produção simbólica antes quase desconhecida. As obras de Oiticica, Lígia Clark e, em menor medida, Lígia Pape foram apontadas como pesquisas artísticas simultâneas ou precedentes às dos centros hegemônicos nas décadas de 1950 e 1960, e não mais como manifestações locais de discussões originadas nos países centrais. Paralelamente, no Brasil, esses trabalhos foram valorizadas por constituírem-se em exercícios de liberdade, com base no método de construção e na contínua subversão dos limites dados, em que o processo criativo importa mais do que o resultado.  

“No final dos anos 1980 e começo dos anos 1990, ocorreu a legitimação internacional de artistas brasileiros que já desenvolviam trabalhos experimentais desde a década de 1970: Cildo Meireles, Artur Barrio e Tunga. Já os novos artistas que surgiram a partir de metade da década de 1990 têm conseguido inserção simultânea no Brasil e no exterior, como no caso de Ernesto Neto, Jac Leirner, Adriana Varejão e Rosângela Rennó, Rivane Newschwander, Rubens Mano e Lia Chaia. Isso coloca os artistas brasileiros em contato com artistas jovens de outros países, por meio de residências, exposições e publicações. A profusão de mecanismos institucionalizados ou informais de absorção de informações é de tal ordem, que mesmo os artistas não aceitos no circuito internacional são atingidos. Chegam pesquisas de outras partes do mundo com intensidade até então desconhecida. Temos, hoje, um pertencimento ambíguo: a genealogia interna (antropofagia e experimentalismo) se combina com a percepção de afinidades externas, que levam os artistas a associarem o que produzem a poéticas de outros lugares de gerações equivalentes”.  

Da mesma forma que para Agnaldo Farias, também para Moacir dos Anjos é preciso diferenciar entre a arte feita no Brasil e a arte brasileira. Falar em uma arte feita no Brasil é fazer referência a trabalhos de criadores residentes no Brasil, porém pautados por um conjunto de códigos provenientes de regiões hegemônicas. Já falar em arte brasileira tem outro sentido: significa afirmar não apenas o lugar de origem da enunciação, mas também uma diferença fundamental e estrutural na maneira de compor os elementos: a deglutição antropofágica e o experimentalismo.

A conclusão de Moacir dos Anjos lembra a de Luís Camillo, ao destacar a capacidade brasileira de conciliação: “Não é na iconografia ou em conteúdos narrativos específicos que reside a particularidade da arte brasileira, mas no modo de aproximar elementos que, em outros contextos, se antagonizam e se repelem: tardio e atual, vernacular e erudito, pronto e inacabado, interno e externo. Daí vem o sotaque peculiar da arte visual produzida no Brasil: traduz o caráter flexível, a capacidade adaptativa e criativa da cultura do país, que, por isso mesmo, frustra expectativas de classificação rígida. Sem dúvida, o ‘sotaque’ revela também a vinculação a um contexto ainda incipiente em relação ao campo hegemônico internacional e faz lembrar as desigualdades no poder de legitimação, expondo ambigüidades da história do país. (...) A articulação de signos dessas poéticas, carregadas de invenção, adaptação, mobilidade, repetição e melancolia, traduzem o cotidiano do país, gerando ao mesmo tempo incômodo e conforto. Esses trabalhos, entre muitos outros sentidos, espelham a indeterminação que o futuro oferece ao Brasil.  
 

5. Considerações finais: as várias versões de nosso mito de origem 

Como as questões do público, no momento do debate, não fizeram referência aos argumentos expostos pelos três componentes da mesa, mas a outros aspectos da Arco´08 - como o projeto arquitetônico do espaço do Brasil e a relação entre artistas e galerias - permito-me fechar esse relato com algumas reflexões conceituais sobre a questão da identidade nacional brasileira.   

A representação da identidade nacional é, grosso modo, a idéia que um país faz de si mesmo. Essa idéia depende não apenas de um repertório simbólico interno, mas também do contraste com outras nações. Assim, a identidade nacional não é, de maneira alguma, um fenômeno estático: ela pressupõe a constante “invenção de tradições“, para usar o conceito cunhado por Eric Hobsbawm. 

O encontro entre portugueses, índios nativos e africanos pauta a discussão sobre o Brasil desde os seus primórdios. Nas últimas décadas, tornou-se quase consensual a existência de um mito originário de penetração profunda em nossa sociedade: o “mito das três raças”, que repousa na fusão entre os elementos brancos, negros e indígenas. Ele é recriado nos livros didáticos, nas festas populares, nas políticas públicas, na produção artística nacional e em sua crítica, como se viu na mesa-redonda relatada acima. Enquanto em algumas versões do “mito” a mistura biológica e cultural levaria a uma sociedade mestiça e aberta, na qual pessoas de diferentes origens étnicas convivem sem grandes confrontos, em outras versões impera a denúncia de que se trata de uma ideologia perigosa, que visa a encobrir as mazelas da escravidão e o racismo presente em nosso dia-a-dia.  

São antigas e variadas as raízes do "mito da democracia racial” brasileira. O alemão Von Martius, um dos pioneiros em escrever a história do Brasil sob o prisma dos elementos étnicos, afirmou, em 1840, que "a vontade da Providência predestinou o Brasil a essa mescla”. O crítico literário Sílvio Romero, cinqüenta anos depois, considerava o homem mestiço "o verdadeiro brasileiro" e apontava a miscigenação, física e moral, como o centro da História do Brasil. Mesmo Nina Rodrigues – determinista racial, como grande parte da geração do final do século XIX - sustentava que "os prejuízos de cor, que certamente existem entre nós, são pouco apurados e intolerantes por parte da raça branca. Em todo caso, muito menos do que dizem ser na América do Norte".  

Gilberto Freyre, nos anos trinta do século passado, efetuou uma releitura particularmente positiva do "mito das três raças”. Em Casa Grande & Senzala (1933), notabilizou-se por sustentar que "a miscigenação, que largamente se praticou aqui, corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado enorme, entre a casa-grande e a mata tropical, a casa-grande e a senzala". Já em Sobrados & Mucambos (1951), Freyre reservou ao mestiço um papel fundamental na "reciprocidade entre culturas", atuando como uma espécie de intermediário.  

A eleição dos símbolos nacionais mestiços, que até hoje acionamos, é fruto dessa positivação da mestiçagem ocorrida na década de 1930. A feijoada, refeição criada pelos escravos com restos, torna-se prato nacional; o candomblé: antes restrito às camadas marginalizadas, é hoje atração turística; o futebol: de hobby aristocrático da elite branca, passa a esporte praticado por todos; o samba: em 1936, as Escolas de Samba adquiriram o direito de desfilar no centro; a capoeira, considerada crime no Código Penal de 1890, foi legalizada em 1937.  

A democracia racial chegou mesmo a servir ao discurso oficial dos governos militares: Castelo Branco promoveu a idéia do Brasil "cadinho de raças" para enfatizar a harmonia entre regiões e realidades diferenciadas. E o mais impressionante é o eco disso no senso-comum e no imaginário dos brasileiros. Em uma pesquisa realizada pelo Datafolha, em 1995, dos cerca de 5000 entrevistados, a maioria (73%) concordou totalmente com a assertiva "uma coisa boa do povo brasileiro é a mistura de raças". Sem contar que o padrão de beleza, no Brasil, está mais para a morena do que para a “branquinha”.  

Ao mesmo tempo, o “mito das três raças” vem sendo criticado por alguns pesquisadores. Florestan Fernandes, na década de 1950, acusou-o de permitir às camadas dominantes manterem seus privilégios sem competição, nem confronto. Na mesma direção, Clóvis Moura (1988) argumenta que a idéia de democracia racial faz parte dos "mecanismos ideológicos de barragem aos diversos segmentos discriminados". O professor da USP Kabengele Munanga também acredita que nosso "mito fundador" resulta prejudicial, pois os empréstimos culturais entre segmentos étnicos dificultariam, aqui, a formação de movimentos de "ação afirmativa" e com "identidade racial e cultural" puras: "uma tal postura esbarra na mestiçagem cultural, pois o espaço do jogo de todas as identidades não é nitidamente delimitado. Como cultivar seu jardim se não é separado dos jardins dos outros?".  

Nem tanto ao céu, nem tanto à Terra. A representação da identidade mestiça não é uma mentira, mas um recorte parcial da sociedade brasileira. Ressalta a harmonia dos encontros étnico-culturais e divorcia-os das turbulências no nível sócio-econômico. Salienta que não houve, no Brasil, formação de guetos nas grandes cidades; brancos jogam capoeira e freqüentam terreiros de candomblé. Absolutiza e romantiza uma parcela da realidade, enfatizando a relativa permeabilidade de fronteiras entre os grupos.  

Feitas essas considerações, voltemos à mesa que me coube relatar neste texto. De fato, como colocaram Luís Camillo e Moacir dos Anjos, a possibilidade de construir uma identidade mestiça e plástica é, talvez, conseqüência de um certo caráter antropofágico da cultura brasileira. A antropofagia - atribuída aos Tupinambá que povoavam a costa brasileira nos séculos XVI e XVII3 - foi utilizada como alegoria, inicialmente, por Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, na década de vinte, e retomada por Oiticica e pelos músicos da Tropicália, quarenta anos depois4. A idéia era que a deglutição e a digestão seletiva de idéias e práticas estrangeiras seriam constitutivas do processo cultural brasileiro.  

Apostando em nossa tendência antropofágica, a antropóloga argentina Rita Segato vê, no Brasil, uma maneira específica de tratar a diversidade cultural. Ela parte do princípio de que "o ser evangélico, o ser negro, o vir da Itália, não tem o mesmo significado e valor em todo e qualquer contexto histórico nacional (...) os traços que vêm de fora para inserir-se como mais um elemento diverso numa sociedade nacional são elaborados e transformados em significantes dentro de um marco preciso (...) dentro de uma configuração da diversidade que é própria dessa paisagem particular". A "paisagem particular" brasileira seria repleta de metáforas e procedimentos antropofágicos. 

O crítico literário Antonio Candido, também recorrendo à comparação com os Estados

Unidos, formulou hipótese parecida: "a sociedade brasileira se abriu com maior largueza à penetração dos grupos dominados ou estranhos. E ganhou em flexibilidade o que perdeu em inteireza e coerência"

Um ponto que não se pode perder de vista, em todo esse debate sobre o caráter antropofágico da cultura brasileira é que, se por trás da representação da nação mestiça, alegre e tolerante, existe de fato o desejo, impregnado na história e na cultura brasileiras, de fagocitar os múltiplos "Outros", por outro lado o sincretismo nem sempre se processou tão pacificamente como nosso mito de fundação pode levar a crer. Por trás da mestiçagem e do sincretismo houve muita violência e imposição. Também a idéia de cordialidade precisa ser relativizada: a mistura entre as esferas pública e privada pode ser nefasta e, como escreveu Roberto DaMatta, a face oculta do "jeitinho brasileiro" e da "cordialidade"  é o personalismo autoritário. Por fim, talvez esteja na hora de artistas, pesquisadores e críticos começarem a buscar novas chaves explicativas para os processos culturais brasileiros, para além da cordialidade, da mestiçagem e da antropofagia, que elucidam apenas uma parte da questão.  
 

Referências bibliográficas 

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