Relato CICLO X: “Afinal, o que é arte brasileira?”
1. Visão
geral do debate
O título dessa
mesa-redonda remete a uma pergunta fundamental, tão antiga, quanto
controversa: “afinal, o que é arte brasileira”? Uma questão dessa
natureza não poderia ser resolvida em um evento com duração de duas
horas. Embora, por sua própria complexidade, o problema continue parcialmente
em aberto, os participantes da mesa ofereceram pistas interessantes
para ajudar a resolvê-lo, cada um à sua maneira.
O primeiro
a se pronunciar foi Agnaldo Farias, professor da Escola de Arquitetura
e Urbanismo da Universidade de São Paulo e conservador do Instituto
Tomie Ohtake. Sua fala, de certa forma, tangenciou a questão proposta,
na medida em que traçou um panorama histórico da arte contemporânea
brasileira, destacando como marcos o movimento neoconcretista e o reconhecimento
internacional de Hélio Oiticica e Ligia Clark, mas não ofereceu proposições
generalizantes sobre eventuais especificidades da arte brasileira. A
abordagem de Agnaldo Farias foi diacrônica, pautada no eixo temporal
e na descrição de poéticas individuais, ao contrário das duas intervenções
que se seguiram à sua. Talvez porque Agnaldo Farias simplesmente não
acredite que existam características da arte brasileira enquanto conjunto,
mas apenas criadores e movimentos pontuais e relativamente autônomos
que, em determinados contextos, abrem novos caminhos e tornam-se influentes
para os demais. Mas isso é somente uma conjectura dessa relatora, apoiada
no contraste observado entre a tônica da participação de Agnaldo
Farias e a dos outros dois membros da mesa.
Luís Camillo
Osório, professor da Universidade do Rio de Janeiro (UniRio)
e Moacir dos Anjos, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e curador
do Brasil na Arco´08 arriscaram-se um pouco mais em relação ao mote
proposto, buscando uma abordagem sincrônica. Embora com muito cuidado,
para não serem acusados de estereotipar e congelar a arte e a identidade
brasileiras, ambos procuraram apontar recorrências, traços que perpassam
a produção artística brasileira como um todo. E o curioso é que
houve grande convergência nas interpretações desses dois palestrantes.
Luís Camillo tratou da informalidade que pauta a sociabilidade brasileira
e que teria levado à predominância do informalismo na arte. Já Moacir
dos Anjos norteou sua reflexão pelas idéias de sincretismo e antropofagia,
procedimentos de deglutição das diferenças que estariam presentes,
tanto no funcionamento da sociedade brasileira, como especificamente
nas criações culturais. Ambos os especialistas, portanto, procuraram
relacionar o campo artístico às demais esferas da vida social e ambos
se utilizaram de autores da História e das Ciências Sociais – Gilberto
Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Hermano Vianna.
Abaixo estão
os resumos da participação de cada um dos convidados da mesa, recheados
com trechos transcritos de suas falas. Como fechamento, são apresentadas
algumas reflexões sobre o teor antropológico do debate.
2. A
arte brasileira segundo Agnaldo Farias: vontade construtiva e astúcia
O interesse
pela produção artística de países “periféricos”1
surgiu, segundo Agnaldo Farias, simultaneamente à crítica dos valores
modernos – autonomia, pureza, eurocentrismo, distância em relação
ao espectador, entre outros. Além disso, no final dos anos 1980, os
mercados europeu e norte-americano, inflacionados e saturados, necessitavam
de ampliação. O ápice do interesse pela condição periférica deu-se,
portanto, nas duas últimas décadas, acompanhado por uma maior condescendência
da crítica internacional nos julgamentos de nossa produção. Isso
fez aumentar o fluxo de colecionadores e marchands por aqui,
especialmente a partir da Bienal de 1989. De acordo com Farias, foi
nesse momento que ocorreu a descoberta internacional de dois protagonistas
do movimento neoconcreto: Lígia Clark e Hélio Oiticica. O convite
à participação do espectador e o aspecto relacional de seus trabalhos
vieram ao encontro da tendência internacional
de se aproximar arte e vida.
O lançamento
do manifesto “Ruptura”, elaborado por Waldemar Cordeiro, em 1952,
e a exposição “Opinião 65”, na qual passistas da Mangueira vestiram
os Parangolés de Oiticica, podem ser considerados dois momentos fundadores
da arte contemporânea brasileira. Nas palavras de Farias, os concretistas
brasileiros procuraram “evitar as oscilações e o embaraço ideológico
dos primeiros modernistas, como Tarsila do Amaral, Portinari e Di Cavalcanti,
cujas pesquisas plásticas eram parcialmente refreadas pelo desejo de
construção de imagens tipicamente nacionais. Embora não se deva concluir
que o adensamento do debate estético no Brasil tenha sido feito exclusivo
dos concretos, é fato que sua contribuição foi grande. Mesmo Oiticica
diria, pouco mais tarde, que sua obra
plurisensorial era fruto da vontade construtiva geral da arte brasileira”.
Soma-se a essa
“vontade construtiva geral” um segundo elemento constitutivo da
arte contemporânea brasileira: a combinação entre a problematização
política e a experimentação estética, sobretudo durante a ditadura.
Aqui, mesmo a Body-art, o Pop e a Nova Figuração incorporaram críticas
abertas ao imperialismo norte-americano e aos contrastes sociais típicos
do subdesenvolvimento, ao contrário do que se observou em outros países.
Ilustrações disso são “Berço Esplêndido” (1968), trabalho no
qual Carlos Vergara fez uma alusão macabra ao hino nacional brasileiro,
logo após o A.I.5, e um trabalho de Antonio Manuel a partir de matrizes
de páginas de jornais censuradas, protesto poético contra o amordaçamento
da livre expressão naquele período.
A astúcia, a capacidade de driblar obstáculos materiais e simbólicos e de fazer provocações veladas estão presentes, de diferentes formas, nos trabalhos de vários artistas brasileiros das décadas de 1970 e 1980, que viveram e criaram sob o impacto do Golpe Militar. Ana Maria Maiolino, Amélia Toledo, Cildo Meireles, Ana Bella Geiger e Artur Barrio entre outros, construíram “obras fundadas em elipses, avessas a metáforas fáceis, e que se faziam notar por frestas sutis, cavadas nos interstícios da mídia.” Artur Barrio, por exemplo, espalhou trouxas ensangüentadas às margens de um ribeirão, na cidade de Belo Horizonte, atraindo a atenção de bombeiros, transeuntes e da polícia, que não sabia como lidar com aquilo.
O boicote nacional
e internacional à Bienal de São Paulo – que a ditadura mantinha
aberta como prova de que o país era “democrático” - aliado à
ausência de espaços para os artistas na imprensa e no mercado, gerou
o surgimento de coletivos em torno de escolas e revistas de curta duração.
Mas, segundo Agnaldo Farias, essa separação entre esfera pública
e reflexão cultural não impediu a qualidade das experiências de artistas
como Tunga, José Resende, Waltércio Caldas, Regina Silveira, Carmela
Gross, Paulo Bruscky e Vera Barcelos Neto (verificar nome,creio
que ele disse Vera Chaves Barcelos). “Mas a condição experimental
se tornou invisível, secreta”.
De meados de 1980 até meados de 1990, com o desafogo após anos de regime militar e a volta da abertura para o debate internacional, houve, segundo Farias, uma repentina ampliação do número de artistas. Os novos artistas brasileiros passaram a reconhecer a qualidade da produção anterior e o circuito de artes começou a se encaminhar rumo ao profissionalismo. A produção artística brasileira ganhou visibilidade pública, foram criados museus e centros culturais, promulgaram-se leis de incentivo à cultura e tudo isso gerou um grande desenvolvimento do setor cultural.
Artistas como
Leonilson, Nuno Ramos, Luís Zerbini e Daniel Senise faziam eco à transvanguarda
italiana e ao neoexpressionismo alemão. Essa produção caiu no gosto
da mídia, que passou a divulgá-la. “O novo conjunto representava
uma reação à arte hermética, purista e intelectual predominante
nos anos 1970, espetáculo calcado na emoção e no prazer”. E,
se até meados da década de 1980 predominava a pintura, em 1988 surge
o grupo Visorama - composto por Ricardo Basbaum, Rosângela Renó, Eduardo
Coimbra – propondo o entrecruzamento de várias linguagens e áreas
do conhecimento.
Por fim, Agnaldo
Farias distinguiu duas vertentes na produção nacional pós-moderna:
uma afinada com propostas internacionais, sem qualquer pretensão de
“brasilidade”; outra que faz confluir o debate internacional com
a produção nacional de gerações anteriores. É nessa segunda vertente
que Nuno Ramos “olha” para Goeldi; Ernesto Neto bebe em Lígia Clark
e Oiticica; Beatriz Milhazes e Adriana Varejão voltam em direção
ao Barroco brasileiro.
Após
descrever tamanha diversidade no campo artístico nacional, Agnado Farias
deixou no ar três respostas – bem diferentes entre si - à questão
proposta pela mesa-redonda. Em primeiro lugar, destacou que a arte brasileira
vista de fora não é necessariamente a mesma que conhecemos
e/ou valorizamos dentro das fronteiras nacionais. Ou seja: não basta
perguntar “o que é a arte brasileira?”, seria preciso acrescentar
para quem. Em segundo lugar, o palestrante mostrou que
a arte produzida no Brasil muda de
“cara” conforme o contexto político, social e cultural, e que cada
grupo de artistas assume atitudes e poéticas bem distintas mesmo dentro
de uma mesma geração. Dessa perspectiva, não se pode falar em uma
arte brasileira no singular. Mesmo assim, Agnaldo levantou três aspectos
comuns a alguns artistas brasileiros, em momentos
diferentes: a “vontade construtiva”, forte nos anos 1950 e 1960;
o uso sagaz de elipses e metáforas, incentivado pela repressão da
ditadura militar; e o diálogo respeitoso com as gerações anteriores,
a partir da abertura política, nos anos 1980.
3. A
arte brasileira segundo Luís Camillo:
informalidade e informalismo
Luís Camillo
começou afirmando que o tema proposto para a mesa era bastante arriscado.
Em primeiro lugar, pela dificuldade de se falar em singularidade cultural
em um mundo globalizado. Em segundo lugar, pelo perigo de se escorregar
para o nacionalismo e a ilusão de que existe uma essência fixa brasileira.“O
que se pretende não é uma definição de brasilidade, mas a caracterização
das especificidades de uma produção poética produzida
a partir do Brasil. Esse local não é substrato da arte brasileira
– o local é um suplemento que se insinua junto a sua inserção global.
É uma diferença que se desprende da obra para incluí-la e excluí-la
em uma contemporaneidade plural policêntrica.”
O palestrante
sugeriu a apropriação de categorias criadas por Darcy Ribeiro, segundo
o qual Venezuela, Chile e Brasil são “povos novos”, que se distinguem
dos “povos-testemunho” e dos “povos transplantados”. Entre os
“povos novos”, o marcante é o processo de hibridação cultural.
O estudioso afirmou que a marca experimental e moderna da cultura brasileira
viria da mistura generalizada das matrizes européia, africana e ameríndia.
Nossa cultura “nasceu do encontro conflituoso e carnal entre matrizes
civilizatórias distintas, que se fez a partir das trocas”.
Na falta de
um modelo fixo e de um padrão único, teríamos escolhido o caminho
da informalidade, “no sentido de estarmos constantemente nos tornando
Outro, num processo simultâneo de invenção e dissimulação”.
No plano artístico, a tradução desse fenômeno seria o informalismo,
ou seja, a hibridação de meios e materiais e a marca do inacabamento
na realização - que não pode ser tomada como escassez, mas como absorção
de processos criativos díspares. “As poéticas informais assumem
o contato afetivo com o espaço e o espectador, como momento determinante
de um processo aberto e dinâmico de formalização”.
Recuperando
o conceito de “homem cordial” - cunhado por Sérgio Buarque de Holanda
para se referir à mistura nem sempre salutar entre as esferas pública
e privada, entre a lei e a amizade2 -, Camillo afirmou que,
da mesma forma que a cordialidade permite a convivência entre opostos,
“o informalismo é o termo do meio entre a obra e o processo, a criação
e a recepção, a atividade e a passividade”.
Ilustrou essa
idéia com a obra de Oiticica, destacando os aspectos sensorial e dialógico.
“Quanto mais ele se afirmou nos elementos locais, mais se universalizou
sua poética, no sentido da diferença, da heterocromia marcada pela
recusa da cor pura e pela vibração tonal.
(...) A dimensão de matéria da cor e seus matizes de luz surgem pelo
movimento e a espessura das pinceladas: vontade de trazer a cor e a
forma geométrica para sua dimensão táctil.
(...) Oiticica trouxe o olhar construtivo para o chão precário da
realidade brasileira, injetando nela perfume africano, dendê, uma intoxicação
sensorial a mais. Levou a um reposicionamento sensorial, a partir de
um corpo tocado por uma situação específica de improvisação e precariedade.
A equação vanguarda e subdesenvolvimento, tão cara à época, encontrou
em Oiticica uma medida experimental radical, capaz de precarizar a forma,
para abri-la à processualidade e ao contato com o Outro. A aproximação
do corpo que começa nos Bólides, passa pelos Parangolés
e chega nos trabalhos finais não deve ser vista como dissolução da
forma. Assim como a apropriação da energia popular é diferente de
populismo, assim o informalismo é diferente de dissolução da forma.”
A partir dos
Parangolés, a poética de Oiticica será contaminada pela experiência
com a Mangueira, em meio ao samba e à arquitetura do morro. Nas palavras
do artista, conforme citação do palestrante: “O Parangolé, em
1964, é a fundação da raiz brasileira em oposição à folclorização
desse material raiz. A folclorização nasce da camuflagem opressiva.
(...) O Parangolé se ergue contra essa folclorização opressiva, é
raiz, estrutura e é não-opressiva, porque revela uma potencialidade
viva de uma cultura em formação. Digo cultura em formação como possibilidade
aberta de uma cultura, em oposição ao caráter por que se designa
habitualmente algo cultural. Em certo sentido é anti-cultura”.
Oiticica era
bastante atento, portanto, quanto à plasticidade da cultura e ao perigo
de sua essencialização, sem contudo deixar de se interessar pela “raiz”
e pelas tradições culturais que conformaram o Brasil. Não foi à
toa que o antropólogo Hermano Vianna escreveu que a poética de Oiticica
aponta para uma mutação cultural singular: “o artista não fala
pelo Outro, mas com o Outro e junto com o
Outro, “apostando na complexidade e numa construção de vozes e formas
de vida heterogêneas”. Outro trabalho emblemático: na mostra
Nova Objetividade, Lígia Pape expôs sua “Caixa Brasil”, com pedaços
de cabelo das três principais etnias que formaram o Brasil. A partir
desse momento, “procedimentos artísticos oriundos da cultura popular
passam a se articular com experimentações poéticas de vanguarda.
Não se tratava apenas de tematizar a marginilidade e de solidarizar-se
com as camadas populares, mas de se apropriar de padrões estéticos
resistentes à norma, viabilizando formas de arte plurais”.
Um exemplo
recente desses procedimentos encontra-se no concerto de Guilherme Vaz
e Sérgio Bernardes, de cujo vídeo o palestrante exibiu um trecho.
No vídeo, três índios aparecem tocando instrumentos tradicionais
e assoviando, em meio à Orquestra Filarmônica de Manaus. Estão serenos,
sentados com os outros músicos, “numa justaposição de esperança
e desespero, delicadeza e violência”.
Nesse e em outros trabalhos, a exclusão e a mestiçagem, cicatrizes
e facetas complementares de nossa formação cultural, tornam-se matéria-prima
dos artistas brasileiros.
Na visão
de Luís Camillo, portanto, a arte brasileira funciona como um canal
de comunicação entre segmentos sociais e matrizes culturais que, paradoxalmente,
se misturam e se excluem, num “equilíbrio de antagonismos”, para
usar uma expressão de Gilberto Freyre. Este seria o traço compartilhado
por várias poéticas brasileiras contemporâneas, entre elas a de Fernanda
Gomes, Cildo Meireles, Franklin Cassaro e Ernesto Neto.
Conforme concluiu Camillo: “o Brasil que se revela na arte brasileira
é uma experiência contínua, em que as diferenças de tom e de tempo
não são unificadas ou subtraídas, mas potencializadas pela composição.
A informalidade e a sensualidade de muitas poéticas produzidas a partir
do Brasil criam um campo simbólico capaz de transformar espaços de
conflito e zonas de confraternização, onde convivem o moderno e o
primitivo, o íntimo e o impessoal.”
4.
Moacir dos Anjos: a antropofagia enquanto procedimento nacional
Antes de mais
nada, Moacir dos Anjos deixou claro que discorda dos autores que, apostando
na diluição de diferenças em escala global, julgam impossível referir-se,
hoje, a uma produção artística nacional. O curador do Brasil na Arco´08,
ao contrário, sustentou que, apesar das pressões para desmanchar fronteiras,
exercidas pelas culturas hegemônicas européia e norte-americana, existe,
sim, algo de particular na arte brasileira. “Os artistas se baseiam
em acervos de signos e comportamentos que contêm
– tenham eles consciência disso ou não - as particularidades sob
as quais vivem, sejam elas históricas, sociais, econômicas etc. (...)
Existe um intervalo largo de recriação e reinserção identitária
entre dois pólos extremos: a afirmação de diferenças absolutas e
irredutíveis e a submissão completa a uma cultura homogeneizante”.
Fazendo coro
com Luís Camillo, Moacir enfatizou a dimensão da relação com o Outro
no processo de invenção e afirmação identitária. “Em vez da
idéia de pertencimento que ignora ou exclui o diferente, é preciso
adotar uma noção de identidade que não apenas reconheça o Outro,
mas que dependa dos conflitos e trocas com o Outro para se representar”.
Como ilustração dessa proposta, projetou uma imagem de “Babel”,
trabalho de Cildo Meireles que representa o contato de tradições diferentes
no mundo contemporâneo por meio de uma experiência auditiva, na qual
se escutam muitas vozes diferentes, emitidas por rádios empilhados.
Cildo Meireles estaria “afirmando o direito de narração do mundo,
cem vozes que se confundem umas nas outras”.
Segundo o curador
da Arco´08, a arte contemporânea brasileira se afirma e se refaz justamente
no atrito com o Outro. Mas só isso não basta para conferir distinção
à produção simbólica de um país, já que a hibridez é praticamente
a norma das produções de regiões não-hegemônicas. O que importa,
então, é a maneira pela qual os elementos locais e os externos são
confrontados e combinados pelos artistas, gerando algo distintivo do
que é feito em outros lugares. “O que individualiza a arte brasileira
não é um conteúdo, nem um repertório estanque de narrativas e gestos,
mas os modos pelos quais esse conteúdo é afetado pelos repertórios
de outros lugares e como os afeta. (...)
É preciso discutir os modos com que os criadores do país contrapõem
e aproximam elementos simbólicos diversos. Aqueles provenientes de
uma tradição da qual reconhecem descender e aqueles que, originados
em outras tradições ameaçam, alargam
e constantemente transformam aquela primeira.”
De acordo com
Moacir dos Anjos, existem dois vetores que estão presentes em grande
parcela dos artistas que se destacaram nas décadas de 1990 e 2000.
O primeiro se refere à revalorização da antropofagia como modelo
de relação com o Outro – um processo de incorporação e elaboração,
desde o ponto de vista do Brasil, de pressupostos do sistema cultural
hegemônico. A antropofagia destaca criadores que subvertem elementos
das culturas dominantes a partir de perspectivas locais e sincréticas.
A pertinência da antropofagia como conceito operativo foi confirmada
na 24ª. Bienal de São Paulo, em 1998, sob curadoria de Paulo Herkenhoff.
O segundo vetor é a tradição experimental da arte nacional, cujo
momento fundador foi o neoconcretismo da década de 1950. Como afirmara
anteriormente Agnaldo Farias, foram muitas as exposições e os textos
críticos internacionais, com poder de legitimação que, a partir de
finais da década de 1980, passaram a falar de uma produção simbólica
antes quase desconhecida. As obras de Oiticica, Lígia Clark e, em menor
medida, Lígia Pape foram apontadas como pesquisas artísticas simultâneas
ou precedentes às dos centros hegemônicos nas décadas de 1950 e 1960,
e não mais como manifestações locais de discussões originadas nos
países centrais. Paralelamente, no Brasil, esses trabalhos foram valorizadas
por constituírem-se em exercícios de liberdade, com base no método
de construção e na contínua subversão dos limites dados, em que
o processo criativo importa mais do que o resultado.
“No final
dos anos 1980 e começo dos anos 1990, ocorreu a legitimação internacional
de artistas brasileiros que já desenvolviam trabalhos experimentais
desde a década de 1970: Cildo Meireles, Artur Barrio e Tunga. Já os
novos artistas que surgiram a partir de metade da década de 1990 têm
conseguido inserção simultânea no Brasil e no exterior, como no caso
de Ernesto Neto, Jac Leirner, Adriana Varejão e Rosângela Rennó,
Rivane Newschwander, Rubens Mano e Lia Chaia. Isso coloca os artistas
brasileiros em contato com artistas jovens de outros países, por meio
de residências, exposições e publicações. A profusão de mecanismos
institucionalizados ou informais de absorção de informações é de
tal ordem, que mesmo os artistas não aceitos no circuito internacional
são atingidos. Chegam pesquisas de outras partes do mundo com intensidade
até então desconhecida. Temos, hoje, um pertencimento ambíguo: a
genealogia interna (antropofagia e experimentalismo) se combina com
a percepção de afinidades externas, que levam os artistas a associarem
o que produzem a poéticas de outros lugares de gerações equivalentes”.
Da mesma forma que para Agnaldo Farias, também para Moacir dos Anjos é preciso diferenciar entre a arte feita no Brasil e a arte brasileira. Falar em uma arte feita no Brasil é fazer referência a trabalhos de criadores residentes no Brasil, porém pautados por um conjunto de códigos provenientes de regiões hegemônicas. Já falar em arte brasileira tem outro sentido: significa afirmar não apenas o lugar de origem da enunciação, mas também uma diferença fundamental e estrutural na maneira de compor os elementos: a deglutição antropofágica e o experimentalismo.
A conclusão
de Moacir dos Anjos lembra a de Luís Camillo, ao destacar a capacidade
brasileira de conciliação: “Não é na iconografia ou em conteúdos
narrativos específicos que reside a particularidade da arte brasileira,
mas no modo de aproximar elementos que, em outros contextos, se antagonizam
e se repelem: tardio e atual, vernacular e erudito, pronto e inacabado,
interno e externo. Daí vem o sotaque peculiar da arte visual
produzida no Brasil: traduz o caráter flexível, a capacidade adaptativa
e criativa da cultura do país, que, por isso mesmo, frustra expectativas
de classificação rígida. Sem dúvida, o
‘sotaque’ revela também a vinculação a um contexto ainda incipiente
em relação ao campo hegemônico internacional e faz lembrar as desigualdades
no poder de legitimação, expondo ambigüidades da história do país.
(...) A articulação de signos dessas poéticas, carregadas de invenção,
adaptação, mobilidade, repetição e melancolia, traduzem o cotidiano
do país, gerando ao mesmo tempo incômodo e conforto. Esses trabalhos,
entre muitos outros sentidos, espelham a indeterminação que o futuro
oferece ao Brasil.”
5.
Considerações finais: as várias versões de nosso mito de origem
Como as questões
do público, no momento do debate, não fizeram referência aos argumentos
expostos pelos três componentes da mesa, mas a outros aspectos da Arco´08
- como o projeto arquitetônico do espaço do Brasil e a relação entre
artistas e galerias - permito-me fechar esse relato com algumas reflexões
conceituais sobre a questão da identidade nacional brasileira.
A representação
da identidade nacional é, grosso modo, a idéia que um país
faz de si mesmo. Essa idéia depende não apenas de um repertório simbólico
interno, mas também do contraste com outras nações. Assim, a identidade
nacional não é, de maneira alguma, um fenômeno estático: ela pressupõe
a constante “invenção de tradições“, para usar o conceito cunhado
por Eric Hobsbawm.
O encontro
entre portugueses, índios nativos e africanos pauta a discussão sobre
o Brasil desde os seus primórdios. Nas últimas décadas, tornou-se
quase consensual a existência de um mito originário de penetração
profunda em nossa sociedade: o “mito das três raças”, que repousa
na fusão entre os elementos brancos, negros e indígenas. Ele é recriado
nos livros didáticos, nas festas populares, nas políticas públicas,
na produção artística nacional e em sua crítica, como se viu na
mesa-redonda relatada acima. Enquanto em algumas versões do “mito”
a mistura biológica e cultural levaria a uma sociedade mestiça e aberta,
na qual pessoas de diferentes origens étnicas convivem sem grandes
confrontos, em outras versões impera a denúncia de que se trata de
uma ideologia perigosa, que visa a encobrir as mazelas da escravidão
e o racismo presente em nosso dia-a-dia.
São antigas
e variadas as raízes do "mito da democracia racial” brasileira.
O alemão Von Martius, um dos pioneiros em escrever a história do Brasil
sob o prisma dos elementos étnicos, afirmou, em 1840, que "a
vontade da Providência predestinou o Brasil a
essa mescla”. O crítico literário Sílvio Romero, cinqüenta
anos depois, considerava o homem mestiço
"o verdadeiro brasileiro"
e apontava a miscigenação, física e moral, como o centro da História
do Brasil. Mesmo Nina Rodrigues – determinista racial, como grande
parte da geração do final do século XIX - sustentava que "os
prejuízos de cor, que certamente existem entre nós, são pouco apurados
e intolerantes por parte da raça branca. Em todo caso, muito menos
do que dizem ser na América do Norte".
Gilberto Freyre,
nos anos trinta do século passado, efetuou uma releitura particularmente
positiva do "mito das três raças”. Em Casa Grande &
Senzala (1933), notabilizou-se por sustentar que "a miscigenação,
que largamente se praticou aqui, corrigiu a distância social que doutro
modo se teria conservado enorme, entre a casa-grande e a mata tropical,
a casa-grande e a senzala".
Já em Sobrados & Mucambos (1951), Freyre reservou ao mestiço
um papel fundamental na "reciprocidade entre culturas", atuando
como uma espécie de intermediário.
A eleição
dos símbolos nacionais mestiços, que até hoje acionamos, é fruto
dessa positivação da mestiçagem ocorrida na década de 1930. A feijoada,
refeição criada pelos escravos com restos, torna-se prato nacional;
o candomblé: antes restrito às camadas marginalizadas, é hoje atração
turística; o futebol: de hobby aristocrático da elite branca, passa
a esporte praticado por todos; o samba: em 1936, as Escolas de Samba
adquiriram o direito de desfilar no centro; a capoeira, considerada
crime no Código Penal de 1890, foi legalizada em 1937.
A democracia
racial chegou mesmo a servir ao discurso oficial dos governos militares:
Castelo Branco promoveu a idéia do Brasil "cadinho de raças"
para enfatizar a harmonia entre regiões e realidades diferenciadas.
E o mais impressionante é o eco disso no senso-comum e no imaginário
dos brasileiros. Em uma pesquisa realizada pelo Datafolha, em 1995,
dos cerca de 5000 entrevistados, a maioria (73%) concordou totalmente
com a assertiva "uma coisa boa do povo brasileiro é a mistura
de raças". Sem contar que o padrão de beleza, no Brasil, está
mais para a morena do que para a “branquinha”.
Ao mesmo tempo,
o “mito das três raças” vem sendo criticado por alguns pesquisadores.
Florestan Fernandes, na década de 1950,
acusou-o de permitir às camadas dominantes manterem seus privilégios
sem competição, nem confronto. Na mesma direção, Clóvis Moura (1988)
argumenta que a idéia de democracia racial faz parte dos "mecanismos
ideológicos de barragem aos diversos segmentos discriminados".
O professor da USP Kabengele Munanga também acredita que nosso "mito
fundador" resulta prejudicial, pois os empréstimos culturais entre
segmentos étnicos dificultariam, aqui, a formação de movimentos de
"ação afirmativa" e com "identidade racial e cultural"
puras: "uma tal postura esbarra na mestiçagem cultural, pois
o espaço do jogo de todas as identidades não é nitidamente delimitado.
Como cultivar seu jardim se não é separado dos jardins dos outros?".
Nem tanto ao
céu, nem tanto à Terra. A representação da identidade mestiça não
é uma mentira, mas um recorte parcial da sociedade brasileira. Ressalta
a harmonia dos encontros étnico-culturais e divorcia-os das turbulências
no nível sócio-econômico. Salienta que não houve, no Brasil, formação
de guetos nas grandes cidades; brancos jogam capoeira e freqüentam
terreiros de candomblé. Absolutiza e romantiza uma parcela da realidade,
enfatizando a relativa permeabilidade de fronteiras entre os grupos.
Feitas essas
considerações, voltemos à mesa que me coube relatar neste texto.
De fato, como colocaram Luís Camillo e Moacir dos Anjos, a possibilidade
de construir uma identidade mestiça e plástica é, talvez, conseqüência
de um certo caráter antropofágico da cultura brasileira. A antropofagia
- atribuída aos Tupinambá que povoavam a costa brasileira nos séculos
XVI e XVII3 - foi utilizada como alegoria, inicialmente,
por Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, na década de vinte, e retomada
por Oiticica e pelos músicos da Tropicália, quarenta anos depois4.
A idéia era que a deglutição e a digestão seletiva de idéias e
práticas estrangeiras seriam constitutivas do processo cultural brasileiro.
Apostando em
nossa tendência antropofágica, a antropóloga argentina Rita Segato
vê, no Brasil, uma maneira específica de tratar a diversidade cultural.
Ela parte do princípio de que "o ser evangélico, o ser negro,
o vir da Itália, não tem o mesmo significado e valor em todo e qualquer
contexto histórico nacional (...) os traços que vêm de
fora para inserir-se como mais um elemento diverso numa sociedade nacional
são elaborados e transformados em significantes dentro de um marco
preciso (...) dentro de uma configuração da diversidade que é própria
dessa paisagem particular". A "paisagem particular"
brasileira seria repleta de metáforas e procedimentos antropofágicos.
O crítico literário Antonio Candido, também recorrendo à comparação com os Estados
Unidos, formulou
hipótese parecida: "a sociedade brasileira se abriu com maior
largueza à penetração dos grupos dominados ou estranhos. E ganhou
em flexibilidade o que perdeu em inteireza e coerência".
Um ponto
que não se pode perder de vista, em todo esse debate sobre o caráter
antropofágico da cultura brasileira é que, se por trás da representação
da nação mestiça, alegre e tolerante, existe de fato o desejo, impregnado
na história e na cultura brasileiras, de fagocitar os múltiplos "Outros",
por outro lado o sincretismo nem sempre se processou tão pacificamente
como nosso mito de fundação pode levar a crer. Por trás da mestiçagem
e do sincretismo houve muita violência e imposição. Também a idéia
de cordialidade precisa ser relativizada: a mistura entre as esferas
pública e privada pode ser nefasta e, como escreveu Roberto DaMatta,
a face oculta do "jeitinho brasileiro" e da "cordialidade"
é o personalismo autoritário. Por fim, talvez esteja na hora de artistas,
pesquisadores e críticos começarem a buscar novas chaves explicativas
para os processos culturais brasileiros, para além da cordialidade,
da mestiçagem e da antropofagia, que elucidam apenas uma parte da questão.
Referências
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