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Relato CICLO III - Conferência 1: A arte de ser testemunha na esfera pública em tempos de guerra

por Jorge Menna Barreto

A afirmação "Ser público é expor-se à alteridade." retrata bem a fala de Rosalyn Deutsche na Arco 2008. Usando pensadores como Hanna Arendt,  Jacques Ranciére, Claude Lefort, Levinas, Etienne Balibar, entre outros , a pensadora constrói uma complexa teia que problematiza as noções de público, arte na esfera pública, alteridade e política. 

 
Seguindo a frase acima, ouvimos: "Consequentemente, artistas que quiserem aprofundar e extender a esfera pública têm uma tarefa dupla: criar trabalhos que, primeiro, ajudam aqueles que foram tornados invisíveis a "fazer a sua aparição" e, segundo, desenvolver a capacidade do público ao solicitar a sua capacidade de responder para, mais do que reagir contra, esta aparição". Para Rosalyn, no entanto, há um perigo que reside na relação visão/aparição. Ou seja, a visão corre o risco de colocar o artista em uma posição de senhor desta operação, aquele que oferece a aparição pelo seu olhar. No entanto, esta postura arrogante só afirmaria a invisibilidade deste Outro, ao invés de perceber que ele sempre esteve presente, mas é ignorado.   

A equação acima, de tornar visível o invisível e solicitar ao público uma resposta dialógica a este aparecimento, desdobra-se no modo como estes diálogos acontecem. Aí está implicada a idéia de não somente pensarmos a respeito de como aparecemos, mas também de como respondemos a este aparecimento, evocando a discussão sobre a ética e política de vivermos juntos em um espaço heterogêneo.

Temos aí o problema da representação, que conforme a palestrante foi analisado por importantes segmentos da arte contemporânea. A visão que gera a aparição do outro, também o submete, a partir de uma relação de conquista que o anula enquanto Outro. De acordo com Rosalyn : "Orientada para o triunfalismo, mais do que para a resposta, esta visão pode, por exemplo, tomar a forma de uma alucinação negativa, na qual falhamos em ver algo que está presente mas é ignorado, algo cuja presença gostaríamos de ignorar”.

Tal crise da representação baseada na visão triunfalista sobre o outro nos coloca portanto diante de um impasse. Se para constituir uma vida pública e democrática a inclusão deste outro é vital, como isto deve ser feito para não cairmos na armadilha da representação enquanto dominação? Ou seja, nas palavras da autora, “O que é uma visão pública?”.

Para entender melhor este impasse, Rosalyn evoca a reflexão sobre a “face” de Levinas. Para o pensador, o “eu” deve entrar em questão quando discutimos a aparição do outro. Na sua proposição, este outro não pode ser completamente compreendido, não pode ser completamente visto, pois transcende a minha percepção. Ainda, este outro é acompanhado de uma terceira parte, o que o torna ainda mais enigmático. Ou seja, este outro não existe somente para mim, mas para outros que com ele também se relacionam e para os quais eu mesmo sou um outro.  É exatamente nesta rede de outridades que Levinas insere o discurso sobre a esfera pública, pois é nesta malha que o espaço diádico se multiplica e envolve a humanidade inteira, nos colocando, nas palavras do próprio Levinas, “sob a luz completa da ordem pública”. 

A visão sempre parcial deste outro inserido em infinitas redes de relações nos coloca em um terreno instável e de “baixa visibilidade”, onde é impossível aspirar ao conhecimento completo deste(s) outro(s). Tal visão fragmentada não leva, no entanto, a uma desistência deste outro. Pelo contrário, é nesta imprevisibilidade que se gera a respons(h)abilidade, a necessidade e habilidade da construção de uma resposta à sua manifestação.  Interrompe assim a relação narcísica, onde só vejo no outro o mesmo, e rompe com a idealização do si mesmo como entendedor do todo.

Esta visão assumida como “deficiente”, que não deixa de ser uma crítica a uma visão totalizante, cria o que Levinas chama de uma “visão sem imagem”. A criação deste espaço público baseado em visões fragmentárias evoca, portanto, “um novo tipo de visão”, nas palavras do próprio Levinas. Operar a partir desta visão é, como já foi dito, uma crítica à visão totalizante e predominante em nossa sociedade, e contribui assim para a transformação social.

A palestrante apresenta um outro impasse nesta discussão, relacionada ao próprio papel da representação deste Outro na arte: “Como a arte pode ajudar na aparição do outro enquanto que ao mesmo tempo torna visível os limites que a face coloca em nossas representações, limites que são, de certa forma, a mensagem da face?”.

      

Rosalyn lança mão, neste momento, de novos integrantes para o seu time de pensadores para abordar a noção de testemunho, que a ajudará a responder o impasse mencionado sobre o papel da representação na aparição da face e conseqüente constituição da esfera pública. Uma integrante deste novo grupo é Judith Butler que,  “escrevendo sobre a representação na mídia do terror na guerra, diz algo a este respeito ao refletir sobre os limites do que podemos saber, do que podemos ouvir, do que podemos ver, do que podemos perceber”. Outro pensador é Giorgio Agamben que “teorizou a respeito da posição da testemunha como base para a subjetividade ético-política, pois a testemunha responde ao sofrimento do outro sem tomar-lhes o lugar”.

Assim, para Agamben, a testemunha necessariamente lida com os limites da representação do sofrimento deste outro, ao renunciar à possibilidade de uma compreensão completa de seu drama.   Portanto, para a palestrante, “testemunhar é uma forma de ver e ouvir que requer uma aceitação da inadequação [da própria visão], uma renúncia ao desejo de soberania”. Para a autora Cathy Caruth, “testemunhar o verdadeiro sofrimento de um evento traumático, por exemplo, é testemunhar a incompreensibilidade daquele evento. Partindo da observação de Freud de que a vítima do trauma tende a repetir o evento que causou o trauma, Caruth adiciona que a repetição não é somente a tentativa da vítima de se preparar retroativamente para o evento. É também uma súplica para que o seu sofrimento seja testemunhado”. No entanto, a testemunha não deve reivindicar, e nem tem condições para tal, entender a posição do outro por completo, até porque nem este outro conhece o fato em sua totalidade, o que caracteriza a própria idéia de trauma na psicanálise. Tal pretensão da testemunha não deixaria de ser, portanto, uma traição à própria vítima do trauma.

De uma forma muito interessante, a testemunha adiciona à cena o testemunho de própria incompreensibilidade do evento, ou mesmo dos limites da representação. Isto gera, para Caruth, a necessidade de pensarmos um “novo tipo de testemunho”, aquele que reconhece a própria “impossibilidade de  compreender o trauma”.  Para Rosalyn, este testemunhar, no seu sentido ético de responder, “necessita de uma crítica baseada nas noções de adequação da representação”.

É interessante observar que uma preocupação constante da autora está na busca de um papel social para a arte e para o artista, o que ela chama de “tarefa” no início de sua palestra. Seria de se perguntar se esta abordagem não nos coloca diante de uma idéia de “funcionalidade” da arte, que, por mais que seja por ideais louváveis, busca uma razão para a sua existência. Tal razão justifica a existência da arte? Qual arte? E por que devemos pautar a relevância de uma existência no plano da razão, principalmente no campo estético? E, ironicamente, não seria este tipo de abordagem uma pretensão de entendimento “completo” do papel da arte e do artista, visão que a própria autora critica em sua construção, anulando o que a arte pode ter de opaco e incompreensível em outros modos de entendê-la, e que escapa à uma suposta “visão completa” e afirmativa que busca respostas? De qualquer forma, e de maneira brilhante, Rosalyn conclui sua fala buscando respostas aos impasses colocados no seu racioncínio: “Mostrar como a representação falha na presença da face-do-outro facilita a emergência da esfera pública na qual o aparecimento dos outros é bem vindo, e questionando a ordem social, previne o desaparecimento da democracia. Esta atividade é crucial neste momento, quando a retórica da segurança ameaça nos engolfar”. E provocando a autora, onde a sua representação da arte e do artista falha, no que concerne à sua “tarefa” social?