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Transcrição - Mesa de Debate - Universidade e Contexto

Mesa do ciclo de debates acerca da exposição About Academia de Antoni Muntadas - Renato Janine Ribeiro (Moderado) / Guilherme Wisnik / Helena Nader / Naomar de Almeida Filho

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Renato Janine Ribeiro

Temos o grande prazer de ter aqui o artista Antoni Muntadas, que é o autor da exposição About Academia, sobre a qual versa a nossa discussão. Então vou dar inicialmente a palavra ao Antoni Muntadas, dizendo que temos grande prazer em recebê-lo aqui, ainda que virtualmente. Por favor, se puedes hablar.


Antoni Muntadas

 

Bien, boa tarde a todo el mundo, boa noite porque... Lugares en país donde estéis. Hablo en un español portuñol, que cuando voy a Brasil me entienden. Espero que también a través de Zoom pueda funcionar. Bien, era dar solo una introducción mínima, hablar del contexto, de lo importante que para mí es el contexto, que todo mi trabajo... Cuando trabajo en un lugar, trato de entender o hablar, conversar, leer para entender los contextos que creo que es importante. En este trabajo, es fundamental entender que la presentación es São Paulo, es una presentación que se complementa con esas mesas redondas.

 

Sin las redondas, primera, la de esta mañana, hoy, las que continuarán, este proyecto no puede entenderse porque parece una colonización de un modelo americano en Latinoamérica. No es la idea. Es decir, este es un modelo que funciona ahí. Veamos qué es lo que funciona, lo que no funciona. Y las preguntas que se hizo en el proyecto eran muy claras que eran preguntas para Latinoamérica. Por eso que las preguntas que podéis hacer vosotros son las preguntas que son válidas para un modelo, posible modelo latinoamericano o brasileiro, porque en este caso estamos hablando exclusivamente casi de Brasil. Entonces, agradeceros a todos los participantes y los oyentes, que las contribuciones son importantes para este proyecto. Porque yo siempre digo que me gusta jugar al tenis, no me gusta jugar al frontón. O sea, la posibilidad dialéctica de la discusión es fundamental. Y os dejo ahí, y os agradezco a todos la contribución para estas mesas redondas. Muchas gracias.

 

Renato Janine Ribeiro

Agradeço a nosso convidado inspirador Antoni Muntadas, falávamos um pouco antes de iniciar esta reunião. Ele dizia que na América Latina há um problema importante nas universidades, o problema do acesso. E eu gostaria acrescentar que também temos o problema da permanência. Quando eu trabalhei no Ministério da Educação, nos governos Lula e Dilma, essa era uma questão muito importante. Porque não somente foram feitas políticas de ação afirmativa para incluir novos alunos, como nós temos um grande problema de alunos que não tem como pagar o alojamento universitário, a alimentação, comprar os livros. E simplesmente viver se não tiverem bolsas, então uma das iniciativas muito importantes para a expansão do ensino superior no Brasil foi essa. Tanto é assim que quando Lula assumiu a presidência da República tínhamos no Brasil três milhões de estudantes universitários e ao terminar o governo de Dilma eram oito milhões. Tendo então subido mais de 100% o número de alunos universitários e tendo passado de 20% a faixa, o percentual de jovens entre 18 e 24 anos que estavam no ensino superior ou que já o tinham concluído. O que representou um avanço, que não teria sido possível sem a questão do acesso e permanência, como dizia nosso convidado Antoni Muntadas.

 

Vou começar então o evento, agradecendo mais uma vez. A ordem de fala: Eu falarei, como moderador e também vou falar; depois Helena Nader; o professor Naomar; o professor Guilherme Wisnik, são os seguintes. Cada um terá 20 minutos de fala e depois abriremos a discussão. O que eu gostaria de dizer: Da leitura e do trabalho de Antoni Muntadas e da assistência à sua exposição me chamou muito a atenção, entre muitas outras questões por ele levantadas, a da relação entre sociedade e universidade. Esta relação é um problema que me preocupa, que me interessa há muitos anos, porque é um ponto de corte, de conflito.

 

Inclusive no mundo acadêmico, por um lado há aqueles que identificam sociedade com empresa, então há toda uma disposição a fazer com que a universidade colabore mais com a empresa. Nós temos muitos níveis disso, alguns corretos outros não, por exemplo, a importância de que a universidade engendre mais patentes, de que ela produza, de que ela favoreça o avanço tecnológico. De que ela milite em prol da inovação, tudo isto é importante e, sem dúvida, tudo isso envolve uma colaboração com empresas. Por outro lado, porém, nas pessoas que defendem e geralmente falam na defesa da colaboração com a sociedade, há uma grande ausência da sociedade. Quer dizer, a sociedade reduzida ao mundo empresarial. Eu vi isso muito aqui na Universidade de São Paulo, a ideia de que a universidade deveria colaborar com a empresa, mas a questão da sociedade era um não assunto.

 

Para colocar em outras palavras, você dá um MBA, um curso que formasse melhor profissionais para o mercado de trabalho era bem visto. Mas, a ideia de dar um curso para o Movimento dos Sem Terra, Movimento dos Sem Teto, para a militância trabalhista nem se pensava. E algo que é comentado no About Academia, pelo Noam Schomsky e pelo David Harvey, nos seus respectivos depoimentos, que me pareceram muito importantes. Por outro lado me preocupava também o fato e continua me preocupando, de que as pessoas das áreas de ciências humanas e sociais, elas em vez de discutirem o que é sociedade, e exigirem um diálogo maior da universidade com a sociedade. Elas acabavam assumindo esse discurso da igualdade, sociedade e empresa, e entendendo e se colocando contra, em vez de se colocar a favor, mas radicalizando.

 

Eu me colocaria a favor, mas entendendo que a universidade tem que cooperar com a sociedade, sim. E cooperar com a sociedade significa você fortalecer os movimentos sociais, entre outros, fortalecer a igualdade. Aliás, eu pretendia, tentei ver se conseguia trazer a foto da capa da Folha de São Paulo de sábado, que mostra a manifestação das pessoas da favela do Jacarezinho contra a chacina cometida pela polícia lá. E na foto é visível que quase todos, a grande maioria é de negros, o que mostra o quão longe estamos da democracia no Brasil e o quanto que a chacina de jovens pobres, e sobretudo negros, é praticada. Então a Universidade tem um papel em relação a isso, ela tem um papel no sentido de enfrentar isso, de coibir isso, de reduzir isso e de fazer que isso se torne puramente passado. E me preocupa um pouco que nas áreas acadêmicas de humanas, sociais, nem sempre existe essa ideia de que devemos defender, de que devemos fazer, sim, um fortalecimento da cooperação universidade e sociedade em outro contexto.

 

Para esclarecer um pouco mais, eu quero lembrar que quando eu fui diretor de avaliação da Capes nós recebemos propostas de cursos de pós-graduação, a serem ministrados por fundações ligadas à Universidade de São Paulo. Fundações que são de Direito privado, foram criadas para ajudar a Universidade de São Paulo, mas começavam a oferecer mestrados, e mestrados pagos. Por serem fundações, elas podiam cobrar, mas o mestrado teria no seu diploma: "Fundação Tal, ligada à Universidade de São Paulo". Que causou muita polêmica, uma vez que, pela Constituição, as universidades públicas não podem cobrar a educação regular, quer dizer, não seria possível cobrar esse curso. Mas, havia de certa forma esse truque, não sei se chega a ser uma burla, mas esse truque pelo qual algumas fundações queriam receber dinheiro ao mesmo tempo que usavam a grife da USP em seu favor. O que é uma bastante complicada.

 

Então essa relação da universidade com a empresa, que não deve ser coibida, mas ela deve ser regulada e deve estar no quadro de uma relação. Essa sim, muito mais importante da universidade com a sociedade e nesse ponto queria passar algo que é da ordem praticamente da experiência vivida. Mas é uma coisa curiosa, é uma experiência muito da USP, na Unifesp, onde eu fui professor visitante durante dois anos, eu não vi isso. Não vi isso nas universidades federais em que eu visitei, e que eu conheço, mas é uma coisa curiosa que na Universidade de São Paulo a grande maioria dos professores dá aula sem terno e gravata. No entanto, quando nós vamos à Reitoria, reitores, pró-reitores, as lideranças universitárias estão de terno e gravata. E isso cria uma coisa curiosa, que até do ponto de vista da indumentária e até do ponto de vista simbólico, há um descompasso entre a liderança universitária e a comunidade universitária.

É claro que isso pode ser dito simbólico, mas eu creio que nós temos em comum aqui, para todos nós o simbólico é muito importante. E um de nós desconsideraria algo dizendo: "É apenas simbólico". E é simbólico justamente de uma certa distância entre a Reitoria e o corpo por ela representado, supostamente representado.

 

Não podemos esquecer que uma das grandes polêmicas na Universidade de São Paulo tem sido a questão da escolha do reitor, que foi democratizada relativamente, mas continua dependendo de uma lista tríplice. Não por ordem do Governo do Estado, mas espantosamente por decisão do próprio Conselho Universitário da USP. Que deseja que haja uma lista tríplice, sendo que desde 1980 em todas as sucessões a reitores nas universidades estaduais Paulistas, foram 30 sucessões, houve uma única vez em que o reitor nomeou um nome que não foi o primeiro colocado. Foi o Governador José Serra, aqui na USP, acho que a oito anos atrás, que nomeou o nome que não era o mais votado da comunidade, ou talvez um pouco mais de tempo. É algo que se usa pouco, mas que representa também uma situação delicada. Da minha experiência com as universidades federais, embora algumas tenham efetivamente problemas de escolha de reitor, não certamente a Bahia, que sempre escolheu muito bem, sempre que ela escolheu Naomar, escolheu muito bem. Mas, assim, na minha experiência nas universidades federais, eu constatei que a participação, que a escolha pela comunidade do reitor representava um compromisso dele com a comunidade muito forte. Então vejo aí dois compromissos importantes, um compromisso da Direção Universitária com a própria universidade. Expresso pela escolha pela universidade e expresso até mesmo simbolicamente pela forma como o reitor se veste e como ele se relaciona com a sua comunidade. E o segundo compromisso muito importante da universidade com a sociedade.

 

E para concluir, eu creio que seria muito importante nós pensarmos quais são as agendas fundamentais com as quais a universidade pode contribuir para a sociedade. Hoje é mais do que evidente, dada a crise mundial agravada no Brasil, que nós temos contribuições da ordem da Saúde, que são de duas ordens: A prevenção da pandemia e o tratamento da pandemia e prevenção pela vacinação, os gestos barreira e as medidas de vacinação. Que nós temos questões decisivas no tocante à educação, em todos os níveis.

 

O Brasil continua como uma deficiência grande na educação básica, nós temos questões de poder aquisitivo, questão de inclusão social. Há todo um pacote de questões que a universidade... Que são problemas brasileiros que foram mais ou menos consensuados como problemas prioritários do Brasil nos governos eleitos democraticamente entre 1994 e 2014. E esses consensos, que depois se partiram e nos últimos anos foram estilhaçados, eles me parecem continuarem a representar uma agenda importante para a contribuição acadêmica. Eu penso que nós deveríamos insistir como que nós podemos fazer tudo isso. No caso da Unifesp, eu tive a grande satisfação, como professor visitante, de criar lá o Instituto de Estudos Avançados e Convergentes. Cujo primeiro grupo de estudos visa justamente estudar de que maneira o aumento da expectativa de vida, portanto, a quantidade de vida e da qualidade vida, portanto, quantidade e qualidade de vida. De que maneira esse aumento que vem num crescendo, somente agora interrompido pela pandemia, como esse aumento traz impactos na vida humana.

 

Na significação que atribuímos à vida pessoal, nas formas de vida coletiva, que impactos tudo isso traz. E esses impactos têm sido subestudados na comunidade acadêmica brasileira, na verdade, das vezes em que eu participei de discussões a respeito da expectativa de vida, o discurso automático era: "Temos que contribuir mais tempo para a Previdência Social". Que é uma discussão tola, uma discussão secundária, uma discussão que foge totalmente aos ganhos de produtividade. Mas que é a discussão que é vendida pela mídia e frente a qual seria importante nós desenvolvermos mais o que significa toda essa expansão de vida e de qualidade de vida.

 

Bom, e eu penso que este é um dos pontos importantes da nossa cooperação, concluindo então eu penso que nós temos que levar em conta as demandas sociais e o nosso aporte social em dois aspectos básicos. Um aspecto é atender as carências e necessidades, frustrações e deficiências, déficits da sociedade, que no caso brasileiro são inúmeros. E no outro caso entender os superávits, os avanços, os projetos, as propostas, a abertura de um futuro cada vez maior, que também é muito significativo. Eu penso que assim estaria, eu pensaria assim a cooperação.

 

Muito obrigado pela atenção, agora então passo a palavra à professora Helena Nader, querida amiga, ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Grande cientista, é professora da Unifesp e muitas outras coisas, então Helena, por favor, a palavra é sua.

 

Helena Nader

Obrigada. Senhor Renato, querido Renato, muito importantes as suas intervenções iniciais. E eu quero dar boa tarde a todas e todos, dizer que é um privilégio estar aqui. E também lembrar da minha vivência aí no IEA, na Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, onde eu tive o privilégio de trabalhar com um grande ser humano. Além do Martin, é claro, e da Liliana, mas um grande que é o Paulo Herkenhoff. Então, pra mim é uma honra estar aqui hoje e eu quero inicialmente, eu sei que talvez não seja o momento, mas nós não podemos... A gente tem que em cada momento relembrar a todos os brasileiros e brasileiras que ontem, um último dado tabulado, mais de 421 mil brasileiros e brasileiras perderam suas vidas à COVID. Então isso é uma coisa que nós temos que nos lembrar, especialmente nós nessa discussão do papel da universidade.

E eu quero agradecer muito ao Martin Grossmann, por ter trazido essa exposição do Antoni Muntadas para o Brasil. Eu não vou ter diapositivo, nenhuma imagem. Quem sou eu para ter imagem depois das imagens e dos textos? Eu até fiquei pensando: "Meu Deus, aonde eu estou? O que eu vou poder falar que já não tenha sido falado, pensado?". Eu vi a exposição várias vezes, porque eu fiquei assistindo primeiro os estudantes, depois a fala dos professores, aí aquele texto que corria. E o timing, o momento de trazer essa exposição para o Brasil, eu estava falando um pouco antes da gente começar, é perfeito. O que nós estamos atravessando, não é a maior crise sanitária só, eu acho que é a maior crise social do país. O sanitário vem junto com todo o resto. E qual é o papel à universidade, o debate que ele coloca? À academia, à universidade, qual é o conceito? Vocês viram, quem assistiu a exposição vê que fala-se a mesma coisa com nuances distintas.

Então isso é um debate que a universidade brasileira e como a maior parte da ciência, - a maior, não estou dizendo que absoluta - é feita nas instituições públicas, eu vejo que a universidade pública brasileira deve isso. Ela deve uma autocrítica, ela deve um debate, como bem já apontou nosso ex-ministro, Renato Janine, com a sociedade. A universidade serve à sociedade, a sociedade serve à universidade, é claro. E qual é o papel que a gente tem que desempenhar hoje? Então, dos pontos e como bem colocou Muntadas no início dessa sessão, o modelo americano, eu até usaria um pouco mais, eu não sei se ele serve para todo os Estados Unidos. Porque existem vários Estados Unidos, existe o Estados Unidos de Harvard, de Yale, das IVs. E existem os Estados Unidos dos colleges, que estão fazendo a força trabalho desse povo americano, que faz os tecnólogos. E então a universidade tem que dizer a que ela veio, cada uma tem o seu projeto, mas ele tem que estar voltado a olhar o produto e o produto aí no bom sentido.

Para o que nós estamos? Eu faço ciências, sou pesquisadora, eu amo fazer ciência. Mas e a parte de formação de recursos humanos? Para quem nós estamos formando? E como é que eu posso fazer uma universidade que dialogue mais? Não é simples, eu não vou entrar no modelo americano, eu vou olhar aqui dentro do Brasil. Nós temos agenda e cabe direito dentro dos debates do Muntadas na exposição. Nós temos, o Brasil foi signatário, teve um papel impressionante na agenda 2030, "Os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável". Quanto que as nossas universidades estão de fato mergulhadas nos objetivos do desenvolvimento sustentável? Individualmente, professores, grupos podem estar, a universidade como um todo não vejo. Pode ser que eu esteja errada, e se nós "considerados uma elite do pensar" não estivermos, como que a gente espera que eles aconteçam? E estou dando alguns dos exemplos, não é? Aí você vê que têm universidades que querem fazer, querem mudar, porém, dentro desse contexto mundial da avaliação as universidades mantém mais do mesmo. Porque elas querem fazer parte do ranking, o rankeamento que deveria ser uma consequência torna-se em si a meta. Eu acho muito complicado. Como é que você atinge a equidade quando você diz que as coisas têm degraus? E muitas vezes alguém é muito bom, é o primeiro em um aspecto, mas não é nos outros. Então o mundo também está pensando em outras formas de avaliação, mas isso é preocupante. Para onde que nós caminhamos dentro de uma universidade plural? E aí o Brasil, o Renato já trouxe esse ponto, eu acho que saímos bem na inclusão, não gosto do nome cota, cota para mim não serve. É ações afirmativas, ações de reparo, é isso que a gente está fazendo. Só que paramos, paramos e não queremos reconhecer que paramos. O MEC tem que olhar isso, eu sei que aqui não é o ponto, mas dentro dessa universidade a que serve, que sem o auxílio permanência não é dizer: "Você pode entrar na universidade". Você tem que garantir, como bem foi colocado, a permanência e a permanência não está acontecendo. A igualdade não acontece aqui no Brasil, quando a gente vê as aulas remotas e a dificuldade dos estudantes de terem acesso, não é todo mundo que tem banda larga. E aí quando se tenta dar a banda larga, têm discursos dizendo que não há necessidade. Então eu vejo essa exposição, que é belíssima, é assim... Eu assisti com muita avidez, talvez eu tenha que ir com mais calma, não com tanta sede ao pote e assistir por partes. Deixar aquilo penetrar porque têm informações, inclusive nos textos que correm, fundamentais pra gente pensar a universidade. Não existe fórmula única, não é para um país. Eu acho que não existe fórmula única para nenhuma, cada uma tem a sua característica.

No entanto, eu vou dar um exemplo, aqui o Naomar, professor Naomar foi reitor da Federal da Bahia e eu não esqueço, ele é médico, todo mundo vê o Naomar, o educador. E esquece que ele antes fez medicina, e grande pesquisador da área médica. E o Naomar revolucionou na Universidade Federal da Bahia com a criação dos bacharelados, no campus novo que era 700 km, 800 km, sei lá, de Salvador. E aquilo era, não existia mais, era quebrar as estruturas, você não entra mais para fazer Medicina, Engenharia, Filosofia, você entra para ser um cidadão. E depois você vai escolher a profissão, você vai ter uma formação. Infelizmente, regrediu, sai e acaba o projeto. Ele cria a Universidade Federal do Sul da Bahia, que eu conheço em detalhe, outra maravilha, com um outro enfoque. Aquilo que você colocou, Renato, dos stakeholders, a sociedade fazia parte do Conselho Universitário. Então eram os indígenas, os quilombolas, todos, aquele é um modelo para a Federal do Sul da Bahia, talvez possa ser aplicada em outras com uma sociedade igual. Mas, também a gente não forma aqueles que vão ser os professores para serem diferentes de nós. Então isso é uma crítica que eu faço à nossa universidade. A gente tem que romper barreiras, e isso o debate do Muntadas coloca, coloca claramente em vários momentos.

A pesquisa, a extensão, aqui no Brasil a gente foi dividindo muito e depois se quer que o professor seja o animal racional mais polivalente do mundo. Ele tem que ser bom em didática, ele tem que ser bom em pesquisa, ele tem que ser bom na extensão, ele tem que ser bom em gestão. Ele pode até tentar fazer todas as coisas, mas daí a se exigir que o chamado tripé, que agora já é um quadripé, um quintapé, sei lá, sextuplé do professor também é matar a criatividade. E não respeitar a universidade como tudo, Anísio Teixeira, o nosso querido fundador da SBPC, junto com nosso querido Maurício Rocha e Silva, foi presidente da SBPC. Foi ele quem cria a nossa Capes, que está fazendo 70 anos esse ano. Ele deixa bem claro, a universidade não é para acumular saber, é para criar saber e o criar saber não quer dizer só aquele saber na minha visão. E me sinto tranquila porque estou publicando nos livros, do jeito que o pessoal acha que tem que ser, mas eu não acho que pode ser só por aí. E nós temos que saber fazer do olhar o outro. A universidade brasileira, em especial, tem um papel social e a latino-americana também. Na inclusão, porque não é só o Brasil que não incluiu para valer os seus indígenas, não é só o Brasil que não incluiu os negros. O Brasil foi segre... É. Foi não, o Brasil é segregador. E nós estamos revertendo esse quadro, mas ainda estamos aquém do que precisa. E para ir partindo para minhas conclusões, um outro aspecto que é muito diferente da universidade brasileira. Das públicas em relação às universidades ditas públicas americanas é que o público no Brasil é encarado como gratuito.

O público nos Estados Unidos é encarado como sob júdice do Estado, sob avaliação do Estado, não quer dizer gratuito. Eu não quero o modelo deles, mas no nosso nós temos que ter um olhar ainda mais profundo sobre a universidade porque é investimento público. Então o nosso retorno para a sociedade tem que ser muito claro e nós não estamos deixando tão claro. Saiu, eu recebi no fim de semana, eu fiquei em estado de choque, tenho que ver quanto dessa pesquisa foi feita por quem, quais são os números reais. Mas, sobre o número de brasileiros e brasileiras que acham que a Terra é plana, que vacina mata, que o vírus do SARS-CoV-2 foi manipulado em laboratório são dados impressionantes. Que mostram um buraco talvez, no nosso diálogo de universidade ou de centros universitários, porque eu não acho que a universidade é o único ponto. É onde eu discordo do modelo americano, acho que a contribuição vem do college, dos colégios, vem de toda a sociedade. Mas, nós como universidade temos um papel ainda maior de saber dialogar com o público, nós temos que fazer isso. Então eu vou parando, Renato, para não gastar, deu 15 minutos que eu estou, eu pus o relóginho, pra gente poder ter bastante debate. E dizer que pra mim foi uma honra e um privilégio realmente e agradecer ao Martin essa oportunidade de parar para pensar em alguma coisa que me interessa muito. Que é: "Para que eu sirvo?". É isso. Muntadas perguntou para mim com essa exposição: "Para que serve tudo isso que você está fazendo? Essa universidade a que você pertence, essa pesquisa que você faz? Você já parou para analisar profundamente?". E mexe com a gente, viu? Antoni Muntadas, você mexeu profundamente o meu interior. Muito obrigada.

 

Renato Janine Ribeiro

Muito obrigado, Helena. Ótimo. Eu passei para você o link dessa matéria que você mencionou, os 20% de brasileiros que acreditam na Terra plana. Aos quais se somam 56% que acreditam que os hospitais são pagos para aumentar o número de mortes por COVID. Saiu no dia 7 de maio no UOL, mas, infelizmente o articulista não deu a fonte da pesquisa, de modo que ainda estaremos aguardando essa pesquisa. Eu queria realçar um ponto que a professora Helena colocou e que me parece que vai bem na linha central dessa discussão. Que é que a universidade pública não pode ser entendida apenas como universidade gratuita, ela tem que ser entendida como pública no seu télos, na sua meta, no seu compromisso, na sua finalidade.

 

Helena Nader

No seu ethos.

Renato Janine Ribeiro

No seu ethos, então estamos em grego, Helena. Ethos...

Helena Nader

Você vê que eu estou aprendendo grego.

Renato Janine Ribeiro

Bom, você é que nos deveria ensiná-lo. Mas, enfim.

Helena Nader

Obrigada, viu?

 

Renato Janine Ribeiro

É um ponto muito importante porque nós temos aí a questão do próprio sentido do que é público. Público não pode ser entendido como um espaço no qual alunos, que fizeram colégio particular pago, privatizam o bem público para depois ganharem bastante dinheiro nas respectivas profissões. A universidade nunca será pública de fato se ela for apenas gratuita e se ela estiver reservada aos alunos mais ricos. Como muito bem disse a Helena, a questão do acesso a questão da ação afirmativa permitiu que a universidade pública deixasse de ser a reserva de mercado dos alunos ricos. E Isso foi um grande passo, acesso e permanência permitiram isso, porém, é preciso dar um passo adicional. Que consiste em garantir que a formação dos nossos alunos os levem a se comprometerem com os bens públicos.

 

E isso acho que é um desafio especialmente para nós professores, gestores, pensadores, educadores. Quer dizer, como fazer para que a universidade tenha esse papel? Então, muito obrigado, Helena, pela contribuição para a discussão.

 

Eu passo a palavra agora para o professor Naomar Almeida Filho, também querido amigo de longa data, que fez um trabalho notável na Universidade Federal da Bahia. E depois expandiu, como Helena já comentou, para a do Sul da Bahia, sendo um dos grandes pensadores e montadores da nova Universidade Brasileira.

 

Eu penso que sem desdouro para as outras universidades, mas o trabalho que Naomar fez na Bahia e o trabalho que Luiz Bevilacqua fez na Federal do ABC. E muitas pessoas cooperaram com um e com outro, são dois trabalhos que realmente representam uma renovação muito grande. Eu não posso deixar de acrescentar a Unifesp, que de uma Escola Paulista de Medicina e de Enfermagem se converteu em uma universidade pujante, com vários campi, com várias dimensões e tudo mais. Então nós vemos nesses anos um resultado admirável e eu passo a palavra, sem mais delongas, ao professor Neomar, por favor.

 

Naomar de Almeida Filho

Bom, obrigado, Renato e Helena pelas carinhosas menções. Ambos inspiradores de muito do que a gente buscou avançar. Eu preparei uma apresentação, vou compartilhar aqui a tela e isso é muito inspirado na visita à exposição. Que traz assim um impacto não só visual, mas um impacto é como Helena mencionou, uma interpelação a muitos dos temas que estamos discutindo aqui. Muito rapidamente, a discussão sobre os futuros possíveis para uma universidade na América Latina. E é claro que têm premissas que são postas e essas premissas tem uma referência a um certo futuro. Eu não vou entrar no detalhamento desse futuro, apenas indicar que precisamos ter essa referência. E a premissa fundamental é o tema da educação como um direito especial. Um direito político especial pela sua possibilidade de uma ser uma capacidade de construir e conquistar os outros direitos. E a educação superior, além disso, tem uma missão mais de uma integralidade na formação dos sujeitos. E é claro que como preliminar a gente precisa discutir isso com muita clareza, é que é educação superior, educação terciária não é educação universitária.

A instituição chamada da universidade, que constitui essa interpelação que o Antoni Muntadas nos traz, tem uma referência que a gente pode desdobrar em uma série de possibilidades. Que abrem uma agenda e é uma agenda não só para as universidades, para a educação superior, mas para a educação em geral. E essa agenda vai buscar reconhecer o conhecimento de uma forma mais específica como um ativo. A palavra ativo em português não é muito boa, porque lembra muito o tema dos investimentos. Mas, como quase que uma referência para a centralidade nesse mundo que nos acolhe, que na verdade somos passageiros nesta Terra. E é claro que tem uma discussão, que eu acredito que é importante para ser feita, é sobre essa formação geral.

Retomando nessa questão da formação geral, temas que no passado, por exemplo, na universidade medieval ganharam aqueles termos que ficaram famosos, o trivium, o quadrivium. E aqui é quase uma brincadeira, Renato, o pentavium. Você estava falando da Grécia, vamos falar de Roma, ou pelo menos da influência do pensamento latino, é o pentavium agora. Precisamos de competência linguística, domínio de pelo menos uma língua franca, a depender do campo do conhecimento. Uma formação para a produção do conhecimento, aí a gente pode dizer formação para pesquisa e pensar pesquisa aí no seu sentido mais amplo: Pesquisa e criação. É competência pedagógica, eu incorporaria nesse pentavium, eu acho que todos nós precisamos desenvolver competências para compartilhamento. E a competência pedagógica é fundamentalmente isso, quer dizer, o conhecimento poder ser assumido não como uma mercadoria ou um produto, ou um bem privatizado coletivo, no seu sentido mais amplo possível. A competência tecnológica. Mas competência tecnológica crítica. Para que a gente compreenda a razão dos instrumentos. E compreender também os limites desses instrumentos. E essa sensibilidade ecossocial muito referida ao tema da diversidade humana.

Claro que a gente pode dizer que isso é uma espécie ou uma versão da Bildung. Agora, tem terminologias que estão também aparecendo nesse mesmo referencial, ou num referencial possível, que pode ser uma forma que está sendo tentada. Por exemplo, as universidades chinesas, várias delas, estão se chamando de Universidade Tongshi. Tongshi é, no confucionismo, um pouco equivalente de uma Bildung. Mas uma Bildung não individualizada. E sim, mais coletiva. E o tema dessa sensibilidade ecossocial pode ser desdobrado nesses pontos. E a referência que a Helena traz para algo que multilateralmente já se discutiu e que não teve grande repercussão até o momento nas universidades, é um engajamento sincero e efetivo, e produtivo com esses temas. Que são os temas que dizem respeito ao planeta. Isso tudo, a gente pode agregar aqui.

Pode ser que precisemos pensar Nagô, não pensar Tongshi, não pensar Bildung. Talvez não latim ou grego, mas a língua iorubá traga alguma referência nessa direção. Então, isso completa um pouco um certo infográfico que resume essa introdução. E é claro que com esses temas que foram trazidos aqui, dos estudos gerais, do que se chama de educação geral, ou as artes liberais como nas universidades americanas eles costumam pensar, e tendo essa efígie da coruja de Atena como uma referência da sabedoria. E pode ser o que esteja faltando. Eu vou entrar agora nos futuros possíveis. Numa discussão de como trabalhar essa questão. Ou pelo menos formular como questão.

 

E aí, é claro que a gente vai para uma referência de autores que são famosos no Ocidente, o Italo Calvino, o Edgar Morin... O Italo Calvino, só uma brincadeira aqui, voltando o Italo Calvino aqui, deixa eu voltar. O Italo Calvino fala de seis lições. Me perdoem aqui, a máquina tomou o comando nesse momento aqui o Italo Calvino fala de seis lições ou seis memorandos, que são esses aqui. O Edgar Morin menciona sete reformas, ou sete saberes. Ele é mais do sete. E, se a gente pode encaminhar, vamos avançando para uma discussão sobre a questão das máquinas. Eu posso dizer que essa consulta a essas figuras tem uma vertente que nós não precisamos trabalhar como uma referência de consulta, mais cultivando talvez uma certa formulação que estamos buscando construir até uma independência de pensamento. Ou reforçando, por mais avançados que sejam, do de vista ou pelo menos convergentes ou confluentes com o ponto de vista, digamos, de transformação da sociedade. E aí, tem toda uma discussão de transformação da sociedade em que direção. Na direção desse conjunto de informações que nos trazem um binarismo entre o global e o local que, de fato, tem uma realidade que muitas vezes é dura e crua, e que é tratada metaforicamente, e que na base disso tem essa imensa miséria, é um uma questão a ser de muitas maneiras traduzida como um diálogo que nós estamos buscando constituir e instituir.

 

E aí, eu acho que essa agenda, para a universidade, do ponto de vista mais de construção intelectual tipo acadêmica, universitária, formulada com essas referências, tem alguns autores que aparecem na moda. Um deles abre um caminho, um caminho muito importante para discutir criticamente a universidade, que é o francês Pierre Bourdieu, que dedica uma parte importante de sua obra para estudar educação, e foca na universidade. Tem também um outro francês contemporâneo do Bourdieu, mas que morre mais cedo, que é o Michel Foucault, que nesse momento, os dois estão sendo retomados mais em leituras do que Boaventura de Souza Santos chama de Epistemologias do Sul. Como por exemplo o Achille Mbembe pegando Foucault e buscando retraduzir Foucault. Ou o esse coreano que está muito na mídia, o Byung chul han, está trazendo a discussão da violência como constitutiva da sociedade. Eu tenho, e vocês sabem, uma afinidade, uma confluência e uma convivência com o Boaventura de Sousa Santos, que acabei de mencionar.

O Boaventura tem um tratamento dessa questão que traz a discussão dessa centralidade na universidade do pensamento ocidental, o pensamento eurocêntrico ou pensamento colonizado. É claro que a história das universidades não deixa mentir, não deixa que a gente não considere a história desta instituição como uma história da cultura ocidental. Essa instituição chamada universidade tem essa essa referência. Ela tem essa linhagem. E aí, quando a gente tem, em alguns momentos, uma discussão sobre a história desta instituição que nos abriga, nos acolhe e até nos estrutura como intelectuais, é uma certa busca de reconstituir na nossa cidade aquilo que foi projeto em outras realidades.

Então, esse tema que tem aparecido desde a introdução, e que a Helena avança, da especificidade dos contextos, eu acho que a gente precisa trazer para esta nossa discussão. O Boaventura questiona o que ele chama de privilégio epistemológico da ciência moderna. Agora, aí temos uma discussão em termos de outro tema que ele problematiza, que é a epistemodiversidade.

Quer dizer, se a gente vai respeitar... E aí, tem uma discussão sobre a questão da inclusão de sujeitos. Vai implicar numa universidade aberta para a diversidade da sociedade incluir somente os sujeitos, as pessoas? E suas visões de mundo, e seus modos de conhecer e de saber, e seus saberes, suas linhagens de suas matrizes culturais, ficarão fora? Aí, as universidades podem sim constituir em um grande espaço, em um grande mecanismo, um grande dispositivo extremamente poderoso de cooptação de sujeitos. E essa é uma preocupação que eu teria, até nesse momento nacional, do quanto um acesso mais alargado a instituições que são milenarmente eficazes do ponto de vista de inclusão, será que a inclusão é, digamos, uma categoria relevante para pensarmos esse acolhimento dos sujeitos? Será que eles estão também pedindo respeito? Ou... E aí, é uma contribuição de um colega querido da cátedra, o Professor Luiz Carlos de Menezes, será que não temos não só que incluir, acolher, respeitar, reconhecer mas também admirar a diversidade? Algum tipo de relação que tenha mais afeto, que seja mais sensível? Então, a epistemodiversidade não no sentido antropológico clássico do exótico e diferente. O Boaventura fala de uma ecologia de saberes, como uma perspectiva de inovação radical na maneira de conhecer, reconhecer...

Então, essa ecologia de saberes precisa ser melhor conhecida e explorada na universidade, em função da sua possibilidade de criação e recriação, de trazer para a universidade que é uma instituição extremamente conservadora, tem uma história de permanência, uma história de tradições, se fazer inovadora, se fazer mais crítica, mais ativa, mais rápida, mais mutante. E, com isso tudo, mais sustentável. E que seja respeitosa das diferenças. E aí mais sensível. E aí, aquela referência que eu trouxe do pensar Nagô, não foi somente uma referência bibliográfica, é uma referência intelectual. O querido amigo baiano também, o Muniz Sodré, escreve "Pensar Nagô", avança na discussão da cultura institucional. E podemos terminar com uma citação de outro baiano em relação a esse tema da inovação ou do novo. Eu prefiro falar do "novo" do que "inovação", em função até dessa confusão semântica com as teorias econômicas do produtivismo inovador. O Milton Santos é tem uma relação de grande conflito com as instituições que foram submissas quando ele foi perseguido politicamente. Ele escreve e fala sobre as universidades com um certo pensamento que eu diria... Não ressentido, mas com uma queixa justa: que são instituições inerciais e conservadoras.

São instituições que têm uma resistência ao novo. E a pergunta que ele faz é: por que essa resistência ao novo? Por que o novo produz tanto medo nessas instituições? E ele diz: o apego às velhas ideias parece uma enfermidade. Isso é sintoma de alguma. E há alguma questão com as instituições que tomam essa referência. Porque isso tem uma grande dificuldade de a gente introduzir e sustentar transformações nessas instituições. Em função de que a gente não está lidando somente com estruturas curriculares ou com novos processos. É possível ter universidades no Brasil fazendo experimentações pedagógicas, aplicando tecnologias, até alguns programas curriculares novos. Mas as culturas institucionais são muito mais difíceis de lidar e, portanto, são desafiantes nesse aspecto da própria discussão que está sendo feita nesse momento. E estou buscando entender essa iniciativa transnacional e até transcontinental do Antoni Muntadas nesse registro. E aí, eu sei que no debate a gente pode dialogar um pouco mais sobre algumas dessas questões. Obrigado.

 

Renato Janine Ribeiro

Muito obrigado, Naomar. Quero cumprimentá-lo, em especial pela definição do que chamou Pentavium. As cinco... Eu não gosto da palavra competências, porque me parece que ela reduz, nem da palavra habilidades, mas os cinco focos principais da formação. E, se você permite, eu apenas sugeriria que no slide em que você detalhe a sensibilidade ecossocial, o oitavo slide, eu acompanho por aqui, que você fortalecesse a questão do enfrentamento da desigualdade social. Que aparece no quarto item como solidariedade e empatia, no sentido de superar o individualismo egocêntrico. Eu acho que deveria ser uma coisa mais forte. Porque não é apenas uma superação de uma deficiência psicológica, de um egocentrismo. Mas é um traço essencial da sociedade em que a gente vive, essencial da sociedade capitalista. E, mais ainda, do capitalismo atrasado em que vivemos. Então, penso que talvez esse assunto merecesse ser vitaminado dentro da sua proposta, que me parece extremamente importante, como sempre, muito original e muito rica. Se permite essa contribuição, é a sugestão que eu faria. Eu convido agora o professor Guilherme Wisnik a falar também. Será a última das palavras introdutórias. Também te informarei um pouco antes de termina. Bem-vindo aqui, estamos te ouvindo.

 

Guilherme Wisnik

Obrigado, Renato. Obrigado também ao Martin Grosman e ao IEA pelo convite. Um grande prazer estar aqui também na companhia da Helena e do Naomar, de quem eu já pude desfrutar as contribuições, formando um diálogo muito plural entre nós a partir das provocações iniciais e muito desafiadoras colocadas pelo Antoni Muntadas. Artista que eu muito admiro desde longo tempo. E, aliás, por isso mesmo começo aqui dizendo a ele que sou veículo da transmissão de um abraço a ele pela nossa amiga em comum Paula Santoro, que é professora na FAU junto comigo e que se tornou amiga do Muntadas desde o Arte/Cidade, quando ele participou um bom tempo atrás já aqui em São Paulo.

Muito bem. Como já foi muito bem colocado aqui, essa exposição, que é uma exposição virtual, um espaço virtual de discussão muito polifônico criado pelo Muntadas, que recém-inaugurou aqui em São Paulo, embora de forma virtual. Ela coloca esse grande parlamento socrático, digamos assim, para as nossas imaginações. Porque é uma exposição essencialmente dialogal, baseada no verbo e no argumento oral. É uma grande polifonia de vozes as mais variadas e interessantes, tratando de temas que são fundamentais. O Muntadas é um artista que já traz essa abordagem, no meu registro, pelo menos desde o trabalho de "Between the frames", dos anos 80, em que ele dispõe de uma série de telas com entrevistas que ele faz com pessoas de origens muito distintas. Naquele momento, os docentes universitários já eram uma parte dessas vozes.

E que compunha um mosaico de reflexão, que no fundo é de autorreflexão de uma certa inteligência do mundo, de vários países. Inclusive, outro aspecto fundamental da obra de Muntadas como artista é a capacidade de tradução. "On translation", que é um trabalho persistente que ele faz, que opera traduções entre idiomas, entre culturas, entre mídias. Porque o Muntadas é um artista da mídia, um artista que incorpora a tecnologia como uma das questões cruciais para pensar a linguagem. Então, para dizer em coro com os meus colegas aqui que essa exposição é um grande incentivo à nossa imaginação sobre o lugar... Aí no caso, focando-se o lugar da universidade na nossa sociedade. E ele traz, de forma muito provocativa, como sempre faz nos seus trabalhos como artista também, esse questionamento de uma certa ideologia norte-americana como sendo o centro do mundo, ou como sendo o lugar físico e simbólico de emanação de certos valores que se pretendem universais ou globais. Quando, na verdade, não são. Porque não servem muito bem a muitos dos contextos de países, cidades, de culturas que são outros.

E como disse a Helena aqui também numa certa passagem, talvez não sirvam para o próprio Estados Unidos como um todo. Então, nessas falas, nessas conversas, nestes depoimentos, surgem é questões que me tocam mais de perto, dicotomias que propositalmente... Digamos, o dispositivo dicotômico, eu entendo, ele não tem a intenção de ser redutor ou dualista, ao contrário. Mas é para trazer à luz certas divergências que, na verdade, são muitas vezes complementares. Como, por exemplo, entre universidade e academia, ou entre público e privado. Eu dizia, esses temas do público e privado, por exemplo, me tocam de perto em relação a uma série de reflexões que eu tenho feito na crítica de arquitetura e também na crítica de arte e de urbanismo, sobretudo na cidade. Mas também os temas do imobiliário e da gentrificação.

 

No caso das universidades norte-americanas, muitas acabam sendo grandes conglomerados imobiliários. No Brasil, nós temos muitas universidades privadas que também podem ser pensadas assim. E na relação do espaço e arquitetura. Então, a minha fala aqui vai mais do ângulo da arquitetura, que é o meu ângulo. Eu vou compartilhar minha apresentação. Pergunto se entrou bem aqui para vocês. Está tudo certo? Ok, obrigado. Então, eu inicio. O Martin me contou que na mesa da manhã foi mostrada uma imagem da FAUUSP. Talvez tenha sido essa. Eu não pude assistir. Mas essa é a mais conhecida, de uma assembleia estudantil no final dos anos 70, foto do Raul Garcez. Essa é muito conhecida, porque ela, digamos, potencializa o espaço da faculdade de arquitetura e urbanismo da Universidade de São Paulo como um fórum político. Esse espaço que, ao contrário de um panóptico... Porque o panóptico é o espaço controle a partir de um centro. Esse é o contrário, é um centro vazio para o qual tudo se volta. E que tem a biblioteca como o grande espaço. Na verdade, esse espaço à esquerda com essas janelas que se abrem é a biblioteca da faculdade.

 

Então, no edifício da faculdade de arquitetura e urbanismo da USP, o coração do edifício é a biblioteca que se abre para fora na fachada e se abre para dentro na segunda fachada, que é essa fachada interna do chamado salão caramelo. Ao mesmo tempo, essa é uma outra foto, outra imagem muito bonita dessa faculdade onde eu tive o prazer de estudar e hoje tenho o prazer de ser professor. Porque, nela, um piso inteiro, chamado "o piso do museu" é um piso que pertence aos estudantes. Então, nele, os estudantes fazem as intervenções que acharem. É um espaço de livre apropriação, digamos assim. Então, num certo momento, houve essa Instalação feita pelos estudantes, em que redes foram instaladas em estruturas móveis. E que permitiram que esse espaço, que é um espaço de conexão importante da universidade, se configurasse também como um espaço de descanso, de lazer, reflexão, de encontro. Abrindo em muito... De novo, um dos tópicos das entrevistas feitas por Muntadas são os espaços de ensino. E é muito nesse ponto que eu quero me deter aqui para falar. Porque estamos procurando falar de uma ótica ao sul, de um sul global, onde cabe a experiência paulistana, por exemplo.

 

Considerando que o prédio da faculdade de arquitetura e urbanismo da USP, projetado nos anos 60 e construído ao longo dos anos 60, encarna em grande medida toda uma ideologia de um momento em que se pensou um terceiro mundismo como estética da fome. Isso é, uma possível fraqueza que se transforma em força, ou uma singularidade que distingue a realidade brasileira ou latino-americana dos centros do hemisfério norte. Mas que enxerga essa singularidade como potência. Certamente, o projeto desse edifício e a pedagogia que dele emanam participam desse pensamento, que é um pensamento muito atual, em grande medida, hoje.

 

Eu gosto de relacionar essa imagem que é uma imagem espontânea, foi criada pelos alunos na FAUUSP de repente, com o pavilhão do Brasil na Trienal de Milão de 64, feito pelo Lúcio Costa, em que o Lúcio Costa tinha escolhido para representar o Brasil um espaço com redes e violões que ficavam disponíveis para as pessoas se deitarem, tocarem e portanto terem na rede, que é uma presença da arquitetura indígena entre nós. Eu vou dizer arquitetura, a gente poderia dizer design ou mobiliário. Enfim, como preferimos. Mas essa presença tão bonita dessa leveza desse espaço aéreo, que sobrevoa, e que se tornou o paradigma do nosso convívio cordial no melhor sentido. Não no sentido da violência do homem cordial do Sérgio Buarque, mas o cordial no sentido da generosidade. Todos se lembram, é recente ainda para nós.

 

Aliás, significativamente, depois do momento em que o nosso colega Renato Janine foi ministro da educação, depois disso, já numa virada muito terrível do Brasil, quando o projeto de reorganização escolar foi colocado no governo do Estado de São Paulo, houve uma reação muito forte dos estudantes secundaristas. Que, de alguma maneira, tomaram uma politização muito forte da sociedade civil, que apesar de toda a situação nossa brasileira existe, para resistir contra aquela política que, se implementada tal como previsto inicialmente, ia simplesmente reduzir o que resta do ensino público no nosso estado às regras do lucro, da sociedade de empresas e de desempenho, que não consideram qualquer horizonte de um bem público.

 

Ao mesmo tempo que as resistências dos estudantes secundaristas, uma série de outras foram gestadas aqui no Brasil em prol de uma ideia da cidade como não apenas um espaço de vivência e de circulação, mas um lugar de direitos coletivos pela cidadania. Então, eu já gastei um bom tempo. Eu quero passar para a segunda parte da minha fala que aponta para sua conclusão, para dizer que a nossa arquitetura moderna, que é inaugurada com esse edifício no Rio de Janeiro, com consultoria do Le Corbusier, com a equipe liderada pelo Lúcio Costa, na qual o Niemeyer era o jovem discípulo, é uma arquitetura que constrói espaço público.

 

Quer dizer, a grande distinção desse edifício é essa praça. Essa praça sobre o pilotis. Uma praça que atravessa o quarteirão e que cria uma grande permeabilidade numa cidade toda de edifícios que construíam quarteirão como uma mancha sólida. Então, o Paulo Mendes da Rocha, num depoimento importante do início dos anos 70, em que ele falava da formação como arquiteto dele, ele estudou no Mackenzie nos anos 50... Ele falava do que era aprendido naquele momento. Ele dá aqui uma definição que me interessa ler com vocês. Ele diz assim: "A informação que recebíamos nas escolas estava muito distante das exigências práticas. Era um ensino acadêmico, para projetar edifícios de estilo. Era necessário um esforço de autodidatismo que se tirou da experiência brasileira de Lucio Costa, Artigas, Niemeyer, Atílio Correia Lima, Francisco Bolonha, Reidy.

 

Obras impregnadas de densa mensagem poética e popular. Voltadas já para o urbano, o edifício público e as soluções mais amplas, onde o social, a vida e a vocação a uma nova forma de viver se delineava". Aqui, agora o mais importante: "Arquitetura que refletia uma visão de universidade, principalmente pelo seu significado urbanista. Espaços largos destinados à multidão. Uma arquitetura que decididamente se orientava para uma sociedade nova, com vistas para um mundo que abria". Isso que eu falei, que é um edifício que constrói a cidade, porque ele abre uma praça.

 

Essa ideia dos espaços largos voltados para a multidão, essa vocação ao urbano que o Paulo nessa fala identifica a uma visão universitária, é exatamente o que ampara a ocupação desse mesmo espaço, por exemplo, desta maneira que eu gosto muito. Que é um Cordão do Boi Tolo, do carnaval de rua do Rio de Janeiro, que acontece no pilotis do Ministério da Educação. Usos como esse famoso show da Daniela Mercury no vão livre do Masp, que se tornou a maior ocupação da Avenida Paulista não em manifestações políticas, onde esse vão livre vira um mar de gente infinito, o paradigma do nosso espaço público. Que eu vou pular aqui, porque não vai dar tempo de falar dessas coisas do Hélio Oiticica.

 

Mas o que eu queria, para terminar, voltando ao prédio da FAU, que é a faculdade... É um prédio que ensina. Ao mesmo tempo que ele abriga o ensino, ele mesmo, a arquitetura, já ensina. Ensina o quê? Ensina esses valores que são os valores do convívio coletivo, do convívio com as diferenças, do convívio que respeita o limite do outro. E esse é uma imagem dos ateliês vistos de cima, para quem não conhece o prédio, para saber que todos os estúdios de projeto são integrados. As paredes não vão até o teto. O ambiente na verdade é totalmente unificado. E o Vila Nova Artigas, autor do projeto, quando escreve o memorial do projeto antes da construção, ele faz uma definição que eu acho muito bonita.

 

E eu também vou ler aqui com vocês, que é o seguinte. Ele diz: "É uma escola de acabamento simples, modesto como convém a uma escola de arquitetos. Que é também um laboratório de ensaios. A sensação de generosidade espacial que essa estrutura permite, aumenta o grau de convivência, de encontros, de comunicação. Quem der um grito dentro do prédio, sentirá a responsabilidade de haver interferido em todo o ambiente. Aí, o indivíduo se instrui, se urbaniza, ganha o espírito de equipe". Eu gosto do verbo "se urbaniza" nessa frase. Equiparado à ideia de se instrui: o indivíduo se instrui, se urbaniza, ganha espírito de equipe. Ele sabe que se ele der um grito muito alto, ele vai atrapalhar todo mundo. Portanto, a liberdade de cada um é norteada pela liberdade dos outros. É um edifício onde você não consegue se esconder numa salinha fechada, dentro de quatro paredes, nas pelúcias da agarofobia burguesa, tal como descreve Walter Benjamin em "Experiência e pobreza". Ao contrário desse fetiche burguês de se fechar no seu reduto, na FAU, você está sempre convivendo com todos os outros. Como diz o Artigas, aqui, o estudante se instrui, se urbaniza, ganha espírito de equipe. Eu penso que essa é uma das balizas importantes para a gente pensar uma perspectiva espacial mesmo de universidade pública, no chamado sul global nos dias de hoje. Eu agradeço e fico por aqui.

 

Renato Janine Ribeiro

 

Muito obrigado, Guilherme. Eu queria observar que você, até pela sua formação, foi quem tratou de um dos temas que nenhum de nós outros levantou, a respeito do trabalho do Muntadas, que é a articulação do espaço físico com o mundo acadêmico. Que é uma questão que ele levanta várias vezes, e que certamente, por deficiência minha, eu não tratei nem os colegas outros trataram. Então, foi bom. E eu queria fazer uma associação entre o professor Milton Santos, de quem o Naomar sempre lembra que era baiano e que eu sempre lembro que foi da USP. Foi professor destacado da nossa universidade. E eu lembro de uma palestra do Milton Santos, Guilherme, em que ele fez um extraordinário elogio da vida urbana. Dizendo que é justamente ir para a cidade que emancipa a pessoa. Não na frase medieval famosa, de que o ar da cidade torna o homem livre. Não no sentido... Ou talvez até ele estivesse pensando nisso. Eu estava pensando mesmo na urbanização, no fato de que o mundo urbano te dá muito mais liberdade. O que a gente pode associar também ao que o Martin diz do camponês. Como o modo de produção no campo torna as pessoas isoladas, segmentadas. E quando você passa a ter um trabalho coletivo, no caso do Max, uma vida coletiva, no caso da sua exposição e no da fala do Milton Santos, você passa a ter mais liberdade, mais espaço comum. Eu acho que é um ponto de associação entre as várias ideias que foram levantadas. Já chegou uma pergunta do público. Então, vou passar a pergunta, que é dirigida ao Naomar. É de Antônio José Cardoso. E a pergunta é: como compatibilizar os critérios de validade dos muitos saberes que precisam ser incluídos na universidade para que essa possa ser inclusiva no sentido mais amplo a que você se referiu. Pode responder, Naomar?

 

Naomar de Almeirda Filho

É uma pergunta muito difícil.

 

Renato Janine Ribeiro

Você quer que eu repita, para ficar mais fácil?

 

Naomar de Almeirda Filho

 

Não, não é por isso. É porque ela é difícil. A universidade nunca discutiu critérios de validade de seu próprio conhecimento. Há toda uma referência que é interessante, até do ponto de vista histórico, que traduz os modos como a ciência se autogestiona, para os modos como a universidade faz a sua própria autorreferência. E, na história da universidade, inventaram... E a invenção foi num certo momento da história, mesmo. Aquela viradinha lá do iluminismo, que Renato conhece muito bem, porque já escreveu sobre isso. Ao que se chama de liberdade de cátedra. E liberdade de cátedra como referência para uma autonomia que é uma autonomia dela própria, e não autonomia referida ao contexto que abriga a instituição. É por isso que as universidades parecem muito umas com as outras e pouco com a comunidade em torno, com a sociedade, com o território onde ela se situa. É muito difícil, eu acho que se a universidade não dialogar com a sociedade, vai ser esse desconhecimento. É mais por desconhecimento, talvez. Esse desconhecimento vai prosseguir. E teremos alguma dificuldade de entender por que certas cosmologias têm tão grande permanência. São mais antigas do que as cosmologias que nos orientam.

 

Renato Janine Ribeiro

Eu vou passar a palavra ao diretor do Instituto de Estudos Avançados, o Ary, também conhecido como Guilherme. Eu vou passar para o Ary falar. Ele acompanhou desde o começo pelo YouTube, mas já está na sala faz um tempo. Ary, por favor.

 

Ary Plonski

 

Boa tarde, Renato. Muito obrigado pela gentileza. Embora seja um momento festivos, eu não posso deixar de seguir a linha da querida Helena, e além de endossar o respeito às 421 mil pessoas que se foram, um pouquinho mais já, queria também me permitir trazer uma pessoa especificamente, cujo primeiro mês de falecimento, de perda, nós comemoramos na sexta-feira, que é o Professor Alfredo Bosi. Uma pessoa de múltiplas facetas, acadêmico, combativo e diretor do IEA, conselheiro do IEA, editor por décadas da nossa Revista de Estudos Avançados. Mas, principalmente, foi um ícone de tantas gerações. E eu acho que representa o espírito que permeia esse debate.

O Naomar, na sua como sempre interessantíssima apresentação, faz referência à coruja como símbolo da sabedoria. E eu queria trazer dois ou três aspectos da coruja, Naomar, que acho que também fazem parte dessa nossa conversa. Um é que, talvez o que é uma característica da coruja, é que ela é um ser noturno. E acho que os acadêmicos e acadêmicas também acabamos sendo seres noturnos, para conseguir fazer todas as coisas que nós temos que fazer, nos prazos às vezes um pouco atrapalhado que nós temos. Mas duas outras que eu acho que são importantes... Talvez uma só, por brevidade de tempo, é o fato de algumas espécies de coruja serem aves de rapina. E eu acho que essa preocupação que Renato nos trouxe na abertura, quando ele nos chama atenção que na comunidade acadêmica brasileira, na comunidade universitária e certamente em outros países também, nós temos gente que faz coisas que não devem. Mas só queria também dizer que não é privilégio da universidade. Acho que em qualquer instituição nós veremos isso, não só na instituição universitária. Se os exemplos muito desagradáveis que o Renato nos trouxe são preocupantes, eu queria dizer que em outros contextos as universidades foram muito mais cruéis. Não só no Brasil, durante o período de 64 a 85, mas eu posso dizer também, por questões familiares, de origem, que nas universidades alemãs e italianas por exemplo, os professores judeus e judias foram boicotados desde o começo. E parte dos boicotadores foram pessoas no nível de Wittgenstein e outros. E, portanto, nós temos essa questão de que o mundo tem luzes e sombras. E a universidade também. Finalmente, Renato, não estou aqui para fazer fala, mas eu queria só mencionar duas breves referências à apresentação, exposição maravilhosa realmente do Muntadas.

Uma que eu já pude mencionar a ele na primeira das mesas que o Martin organizou... O Martin é fantástico para criar ambientes de diálogo, ambientes construtivos de confronto de ideias. Mas que de fato também na exposição ou nas conclusões existe uma certa necessidade de, talvez, olhar outros mundos universitários....

Por exemplo, quando ele coloca a contraposição entre instituição e corporação. Se isso é válido na universidade americana, eu penso que, na universidade brasileira, a contraposição válida não é instituição e corporação, mas é instituição e organização burocrática. Que fica enrijecida, paralisada e perde a sua tenacidade. Finalmente, uma questão que eu deixo para você, se houver essa possibilidade: eu sempre fico um pouco tocado quando eu ouço falar em abertura da universidade para a sociedade, relação da universidade com a sociedade, como se não fôssemos parte da sociedade. Parece que nós somos um ser externo a ela e que estamos procurando criar canais com a sociedade. Eu vejo a universidade como parte integrante da sociedade. Não sei se é só uma questão terminológica, um excesso de preciso da minha parte. Mas talvez a gente tenha uma outra forma de expressar melhor essa relação que a gente tem com os demais segmentos da sociedade.

Finalmente, voltando à coruja, usando agora a entendimento de gíria da palavra coruja, eu queria dizer que eu sou muito coruja de vocês. Renato, você é conselheiro do IEA e criador do IAC na Unifesp. Helena, querida, de tantas e tantas aventuras. E mais uma vez agradecendo a sua participação no IEA também como catedrática, junto com Paulo. O Naomar, então, que é professor visitante e titular, com uma cátedra vibrante em educação básica. E Martin, para nem falar, conselheiro, culpado por eu estar aqui agora. Depois diretor, e continuando diretor ex-officio, enfim. Professor Wisnik. Só dizer que eu sou coruja de vocês. E no que o IEA puder contribuir para que esse espaço continue, contem com a gente. Antony Muntadas, você faz parte agora da família IEA. E, uma vez que você entrou na família, você ficará sempre conosco. Muito obrigado.

 

Renato Janine Ribeiro

Muito obrigado, Ary. Vamos dar continuidade então a discussão. Eu queria levantar mais uma questão, enquanto não chegam mais questões do público. Queria levantar de novo a questão da desigualdade. Que é uma questão que teve uma participação muito grande da Helena, também. A Helena, quando na Unifesp, tomou muitas iniciativas no sentido da inclusão social. Naomar também fez muito isso, tanto na Federal da Bahia quanto na nova universidade que ele criou do sul da Bahia. E me parece que Helena tem toda razão ao objetar o termo "cotas", que é um termo que acabou adquirindo um sentido altamente pejorativo. Como se fosse uma questão de privilegiar determinado grupo. E é bom lembrar que no Brasil há uma grande mentira e um grande engano sobre cotas. Eu lembro uma ocasião em que eu estando no ministério, conversei com Helena e com outra pessoa muito ilustre da comunidade científica que nem sabia como funcionava a inclusão social nas universidades federais.

Pensando que... Vamos dizer, o discurso que a mídia propagou, que essa inclusão se dá por cotas raciais ou étnicas. Tanto que é muito comum a gente ver gente dizendo: "Não, tem que ser racial, tem que ser social". O que só pode ser fruto de ignorância. Porque a lei federal é claríssima. Metade das vagas são para egressos de escola pública. Que é exatamente o sentido social da inclusão. A parte étnica é um subconjunto apurado em cada estado em função do percentual da respectiva etnia, ou afrodescendente ou descendentes indígenas, naquela unidade da federação. De modo que na Bahia certamente haverá mais negros do que no Rio Grande do Sul, e no Amazonas mais descendentes indígenas do que nos estados aos quais nós aqui presente pertencemos. Então, é importante frisar que existe uma mentira. Um equívoco por parte de alguns, mentira por parte daqueles que divulgam dados que deveriam, pela própria profissão, muitas vezes jornalistas ou até mesmo professores, de ter consciência e estar informados. E, ao mesmo tempo, essa inclusão é um aspecto muito importante porque ela tem permitido revelar talentos. Então, pessoas que não tinham capacidade, possibilidade de desenvolver seus dotes, seus dons, começaram a ter essa possibilidade.

São os Mozarts assassinados, de que fala o Saint-Exupéry, numa passagem famosa, creio que do "Voo noturno", em que ele relata uma viagem dele num trem, acho que durante a Segunda Guerra Mundial, e vê crianças famintas, subnutridas, sem nenhum cuidado. E pensa: quantos gênios estão sendo assassinados, quantos Mozarts estão sendo assassinados.

E me parece particularmente digno de nota que a sociedade brasileira é especialista em assassinar Mozarts. Parece que é uma das principais características dessa sociedade. É uma sociedade que tem promovido um morticínio disso. Nós não sabemos, nas favelas, como no Jacarezinho na semana passada, não sabemos quantos talentos, quantas capacidades estão sendo assassinados. Então, eu penso que esse é um ponto importante. Eu queria acrescentar ao que o Ary disse uma questão que é que, se é verdade que a universidade até se sai bem na comparação com outras entidades que pertencem a sociedade, a universidade, por outro lado, tem uma exigência ética mais elevada.

Eu espero da universidade mais do que eu espero de uma empresa privada, por exemplo. De uma empresa privada, eu espero que ela faça bem o que ela tem que fazer, eu espero que ela cumpra as leis do país, e eu espero em especial que as leis sejam feitas de tal forma que ela tenha que desempenhar um papel ético também. Inclusive pela inclusão social, que é uma coisa que acho que deve se estender também aos outros setores da vida urbana. Da vida humana, aliás, não só urbana mas também rural. Mas no caso da universidade pública ou não publica, mas no caso pública eu diria sem nenhuma sombra de dúvida, eu espero que ela tenha uma finalidade ética muito clara.

Quer dizer, nós não estamos aqui apenas para cumprir um papel de formar pessoas para o mercado de trabalho. Nós estamos aqui para fazer pesquisa, para trazer conhecimento novo e trazer conhecimento novo que traga um impacto importante. Então, queria dizer isso. E eu vou fazer o seguinte. Vou fazer um pouco uma rodada na ordem que as pessoas falaram. E depois, se tiver ocasião, nós faremos uma segunda rodada. Então, passaria à Helena. Assim, a gente faz um diálogo entre nós todos. Helena, por favor. Depois, Naomar e Guilherme, claro.

Helena Nader

Obrigada, Renato. Obrigada, Guilherme. Eu quero parabenizar tanto o Naomar quanto o Wisinik, Guilherme, foram fantásticos. Realmente, os dois brilhantes. As imagens que você trouxe, Guilherme, muito bonitas. Então, aquela dimensão que seria legal, se todos os espaços universitários brasileiros tivessem a beleza do espaço da FAU. Se todas as universidades brasileiras estivessem localizadas em espaços como a Universidade de São Paulo. Infelizmente, isso não é a realidade. Quando você olha a Universidade Federal do Rio de Janeiro, o espaço onde ela está, e a tragédia mostra o cuidado... E aí, Guilherme um pouco em relação ao que você colocou. Nós somos sociedade, é óbvio. Mas nós não nos integramos dentro do conceito da sociedade. A sociedade não nos integrou ainda.

É como quando mencionam: "A USP só entram...". Eu ficava revoltada. Eu conheço um monte de filhos de pessoas de classe média muito baixa que são estudantes na USP. Como você tem coragem de falar? Mas é, de novo, um imaginário coletivo. No imaginário coletivo, posso estar muito errada, a universidade é um negócio a parte. As pessoas não nos incluem dentro da chamada sociedade. E a universidade tem que fazer isso. Quando eu quando eu vejo a beleza que é o campus da Universidade de São Paulo, seja em São Paulo, seja em Ribeirão... E olha, outras universidades pelo Brasil afora, eu digo, isso está diretamente relacionado ao que pensam da universidade. Isso é uma coisa que a universidade americana tem. Os espaços mais elegantes, mais interessantes de uma cidade, são os espaços onde estão localizadas as universidades. É claro, você está dentro de uma cidade como Nova York, Columbia vai estar o campus médio... Mas, no todo, eles fazem essa questão: a universidade é uma propriedade da sociedade. Aqui no Brasil, ainda eu não vejo isso.

Em relação os pontos que o Renato levantou... Renato, é muito triste, mas a inclusão nossa está muito longe de ser alcançada. E eu vejo... Nós já temos turmas de médicos formados dentro das ações afirmativas. Eu espero... O projeto que eu tinha era de seguir esses egressos e ver o quanto que eles impactaram a sociedade como um todo, seja branca, seja negra, parda, entendeu? Não temos nesses dados. E qualquer coisa para planejamento, você teria que ter. Então, eu vejo também. A universidade poderia ter feito isso, mas não fez. O que me preocupa muito é projetos de inclusão ainda não serem entendidos pela sociedade brasileira.

Eu já ouvi pessoas hoje, 2021, dizendo: "O número de vagas diminuiu muito, porque tem que compartilhar com o tanto que vai para negro, tanto que vai para indígena". Como numa competição, aspas, injusta. Então, o conceito de ética também, tem que ser muito bem trabalhado dentro da universidade. Eu realmente acho que as minhas contribuições são por aí. E agradecer. Realmente, as imagens... Aquela imagem... Você não era nascido, Guilherme. Eu acho que você é muito novinho. Mas aquela época do Movimento Estudantil... Eu era estudante naquela época. Estou velha mas já fui jovem uma época. Foi exuberante a ocupação dos espaços pela sociedade. É isso. A gente tem que ocupar mais. E a ocupação de espaços, por exemplos, da Universidade de São Paulo, tem que ser maior, eu vejo. Porque tem espaços da USP que são belíssimos. E consertos que poderiam acontecer. Pode ser maior. E aproximar mais. Quando eu vejo o trabalho que a Eliana fez, a Eliana Souza e Silva, com as comunidades... Ela iniciou lá na Maré. Mas ela fez um trabalho maravilhoso no IEA exatamente sobre essa apropriação de espaços e de cultura.

Então, eu tenho inveja do trabalho que vocês estão fazendo. É uma boa inveja. Eu gostaria de ver isso espalhado por todo Brasil. E ver a participação do jovem. O que eu vejo é que nós estamos regredindo e eu estaria sendo falsa de não comentar: diminuindo o número de bolsas de iniciação científica Júnior, que era de trazer aquelas crianças para dentro da universidade... São crianças, meninos de Ensino Médio. Estamos diminuindo o número de bolsas do PIBID, que é a relação da universidade com a escola do ensino médio. Diminuindo o auxílio permanência. Isso foi um processo muito longo de construção desse Brasil. E estamos perdendo muito rapidamente. Então, a inveja que eu tenho da Universidade de São Paulo é uma inveja boa. Eu espero que a nível federal a gente consiga reconstruir tudo o que está sendo destruído muito rapidamente. E aí, entra todos os conceitos de novo da participação da sociedade. A sociedade não percebeu, e encerro, que ela está perdendo a universidade que é dela. A sociedade ainda não se apropriou disso.

Renato Janine Ribeiro

Muito bom, Helena, excelente intervenção. Eu não posso deixar de registrar a grande combatente pela ciência, pela tecnologia, pela educação que você sempre é. Ao longo dos seus mandatos na SBPC, a importância que teve sua luta numa fase tão difícil, em que o Brasil estava começando a descer a ladeira abaixo. E você defendendo as nossas bandeiras, que são muito importantes. Naomar, por favor.

Naomar de Almeida Filho

Primeiro, agradecer a referência à metáfora da coruja que o Ary Guilherme, nosso líder no IEA trouxe. A metáfora é clássica porque a coruja vê no escuro. E o contraponto é que durante o dia ela enxerga pouco. Mas, Ary, parece que essa coisa da sabedoria é muito com aquela imagem dela de ficar de olho grande prestando atenção e dando sempre a impressão de que está entendendo tudo. Eu acho que essa aparência é o que talvez justifique a metáfora. Mas eu queria comentar, Renato, sobre a questão da desigualdade que você traz. Eu acho que a gente precisa ter uma compreensão de que esse tema da desigualdade não é novo, nem mesmo uma discussão até mais, digamos, inclusiva. É um dos temas do liberalismo, do liberalismo mais clássico. Um dos primeiros escritos sobre o assunto é Adam Smith, que traz essa questão. Os revolucionários da Revolução Francesa, muitos deles... E eu tenho aí no IEA até me interessado um pouco por isso, pela influência deles na educação médica. Eles têm textos fantásticos, que a gente pode até dizer: estão descrevendo o Brasil hoje. Agora, essa visão da desigualdade como subproduto de um certo modo de produção, ou de uma maneira de desenvolver, ou de uma sociedade se organizar, é antagônico a gente ver a desigualdade como estruturante desse processo político, desse modo de produção. Então, a gente pode ter a hipótese de que as instituições universitárias foram criadas e returbinadas em momentos de reafirmação dessa desigualdade. Como criar um certo desequilíbrio que é capaz de produzir ciclos de desenvolvimento econômico ou de transformação política. É um assunto, novamente, de grande complexidade.

E aí, o papel da universidade nisso, os estudos... Eu mencionei o Bourdieu. A universidade produz herdeiros intelectuais. Mas também herdeiros de posições de poder. E também herdeiros de posições de vantagem econômica. E eu acho que a universidade brasileira cumpre esse papel. Agora, às vezes, finge que não é com ela. E, em especial, uma instituição que se especializou em formar profissões. E mais ainda, profissões imperiais. E que tem se negado sistematicamente, sistemicamente, a se preocupar com a educação básica. Esse é o certo mantra da nossa cátedra nesse momento. É um paradoxo. Eu falo brincando: é o paradoxo Bernadete Gatti, que é uma das ilustres membras do nosso grupo. Por que quase 90% do professorado do sistema público de educação básica é formado em instituições privadas? A quase totalidade não universitária. Não há nenhum "ethos" transmitido nessa formação. E, por outro lado, nas instituições de Educação Básica do setor privado, a maioria dos docentes, cuidadosos de altíssima qualidade e inegável competência, são formados em instituições públicas. E também, se a gente for verificar territorialmente, a contribuição das instituições ditas públicas para a educação pública é mínima. Muitos dos licenciados em áreas de extrema especialidade, vão para o setor bancário, vão para administração, vão para investimentos e vão para os quadros do Estado. Então, eu acho que essa discussão da desigualdade na universidade, ela precisa ser enfrentada de uma maneira até mais crítica. Porque... Isso é interessante também, se você me permitir mais um desses paradoxos. É uma instituição que é extremamente crítica para tudo que não se refere a ela.

E quando a gente teve uma possibilidade de internalizar, ou pelo menos de tornar a reflexão reflexividade... Nós tivemos e você foi testemunha, inclusive. Testemunha e protagonista. Em certos momentos em que se pôs em questão. E a própria instituição universitária barrou a sua exposição. E eu vou só finalizar lembrando a resposta que a Macaé Evaristo deu no debate que abriu esse nosso ciclo de debates. Alguém entre as pessoas que estavam assistindo disse: mas, nesse momento, a universidade está tão fragilizada, não vamos abrir essa discussão. Aí, a resposta dela foi: "Olhe, se a instituição universitária não conseguir fazer esse debate, vocês acham que quem vai fazer essa discussão? E se ela não aguenta esse debate, essa universidade não tem sentido, não tem razão de ser". Eu achei fantástica essa reflexão, porque é uma reflexão de fora da instituição, que está querendo dialogar com a instituição. E a gente tem que abrir mecanismos na própria instituição, espaços, para que esse diálogo seja feito do modo mais crítico. E também do modo autocrítico construtivo, que é o que a gente está precisando mais nesse momento.

Renato Janine Ribeiro

Naomar, muito obrigado. Como sempre, você colocando o dedo na ferida, não hesitando em fazer crítica e autocrítica. Eu penso que as falhas da universidade que você aponta são sempre muito importantes. Ainda mais porque você soube enfrentá-las duas vezes como gestor e num trabalho importantíssimo. É pena que você não tenha dirigido a Sesu, onde você teria feito um trabalho certamente de revolução no ensino superior no Brasil. E eu lamento não ter tido você como secretário de ensino superior quando estive no MEC, porque certamente, apesar das dificuldades por que passávamos, teria sido muito bom. O curso a que você aludiu é um projeto que eu fui convidado a fazer aqui na USP pela então pró-reitora Ada Pellegrini Grinover, que seria um curso experimental de graduação interdisciplinar em humanidades. Para o qual a inspiração era o curso existente já faz tempo em ciências moleculares, que é um êxito na USP. Mas esse curso de humanidades foi boicotado, para dizer o mínimo. Vários... Desde movimento estudantil até reitor eleito contra, que derrotou a professora Ada e que não quis implantar justamente um projeto vinculado a ela. Então, é pena. Mas eu fico contente de que esse curso tenha inspirado outras iniciativas. Acho que isso é muito bom. E eu queria acrescentar uma coisa sobre a igualdade e desigualdade. Sim, o liberalismo defende a igualdade, mas a igualdade de oportunidades. É igualdade no ponto de partida. Que, no Brasil, é quase uma revolução. Quando foi levantada pelo Guilherme Boulos num debate na Roda Viva, teve um senhor apoiador do então candidato Bolsonaro que disse que igualdade de oportunidades era um absurdo porque as pessoas são desiguais entre si. Eu não consigo entender a lógica desse indivíduo. Porque se as pessoas são desiguais entre si, a igualdade de oportunidades faria justamente com que as pessoas desiguais com mais capacidade preponderassem. Mas eu acho que isso mostrava muito bem como a sociedade brasileira é uma sociedade avessa à igualdade.

Na verdade, é bom lembrar, Helena, quando a gente fala em cotas, que a primeira lei de cotas no Brasil foi a Lei do Boi, de 1968. Não sei quantos conhecem essa lei. É uma lei que foi votada pelo congresso, sancionada pelo Presidente Costa e Silva em 1968, e acreditem se quiserem, ela reservava a metade vagas nas faculdades de agronomia e veterinária a filhos de fazendeiros. Ou seja, essas pessoas socialmente prejudicadas, socialmente desavantajadas, seus latifundiários, tinha o direito a metade das vagas. O que era uma confissão dos seus pais que, provavelmente, num regime de livre concorrência, eles não conseguiram entrar nessas faculdades. E essa lei interessantemente foi revogada em 1985. Então, uma Lei do Ato 5, é uma lei que precede em alguns meses o Ato 5, que dura um pouco depois do fim da ditadura. Mas é uma lei da fase mais perversa da ditadura. Então, é uma coisa assustadora essa. É uma sociedade que realmente tem tanto medo da igualdade, porque ela está convencida, no fundo, de que os rebentos da elite de dinheiro não são competitivos no mercado. É isso que ela tem convicção. Então, ela procura evitar a igualdade na Educação Básica, ela procura garantir que seus filhos tenham uma educação que os capacite melhor a entrar na universidade, e ela hostiliza as cotas ou a ação afirmativa no ensino superior, mesmo levando em conta que eram 100 mil as vagas no ensino superior federal em 2003, e eram 230 mil em 1015. Ou seja, dar metade dessas vagas aos alunos que vêm da escola pública, os chamados cotistas, significa aumentar assim mesmo o número de vagas para os não cotistas. Porque se passou a haver 115 mil vagas para cotistas, passou a haver outras 115 mil vagas para não cotistas, que antes tinham apenas 100 mil. Quer dizer, ninguém perdeu vaga. Quando alguém diz "Meu filho perdeu a vaga na universidade para um cotista", é mentira. Porque essa vaga que ele supostamente perdeu, não existia. Ela foi criada no mesmo projeto. Mas somente para concluir isso, eu queria dizer que o projeto liberal, que no Brasil seria uma revolução de esquerda, é um de igualdade de oportunidades. Mas o projeto socialista é de igualdade no ponto de chegada, não no ponto de partida. A ideia liberal é que, tendo uma igualdade no ponto de partida, todos poderão fazer valer suas qualidades e se distinguir depois.

Quer dizer, o projeto liberal legitima a desigualdade fruto do mérito, fruto da diligência, fruto até mesmo de a pessoa ter sido capaz de encontrar um nicho de mercado mais satisfatório. O projeto liberal, então, legitima a desigualdade a partir de uma igualdade de oportunidades. O projeto que podemos chamar de socialista, é um projeto que parte até mesmo de uma crítica a essa visão liberal como sendo uma visão utópica. Eu entendo puramente utópico você conseguir distinguir o papel de cada um na produção. Eu já ouvi histórias de ambiente coletivo de trabalho em que a pessoa que acabava tornando o ambiente um ambiente mais feliz e até mesmo mais produtivo era um servente, era um servidor, uma pessoa que distribuía café. E nenhuma planilha de Excel iria dizer que essa pessoa foi quem fez melhorar a produtividade. Não há possibilidade de você fazer isso. Porque na medida em que uma produção é fruto de uma série de interações, eu só por muita abstração, no sentido hegeliano do termo, ou seja, dissociação da realidade, que você consegue determinar o papel de cada um. Então, nós temos uma ideia de competição, que é a ideia da igualdade liberal, e uma ideia de cooperação que é a ideia da igualdade socialista. E são duas ideias importantes a discutir. O Brasil está a anos-luz de qualquer uma delas. Mas enfim, acho que é muito bom... Acho que você pedir que a universidade se debruce mais sobre a questão da igualdade/desigualdade é muito importante, Naomar. E vai muito na linha de tudo o que você já fez e ainda fará. E, Guilherme, agora eu acho que nós não vamos ter muito condições de um segundo turno. Então, fale à vontade. Agora é sua vez.

Guilherme Wisnik

Obrigado. Ainda que certamente eu não vá usar esse tempo todo que ainda nos resta. Mas obrigado pela gentileza. Primeiro, uma pergunta a você: quem fez essa pergunta ao Boulos no Roda Viva foi o Fábio Weingarten?

Renato Janine Ribeiro

Acho que foi, foi sim. Foi, grande homem!

Guilherme Wisnik

Era ele. Naquele momento, a gente ainda não sabia nem o que seria.

Renato Janine Ribeiro

Realmente. Um grande desconhecimento dele do que... Enfim, do que são as coisas.

Guilherme Wisnik

Exato. Sobre o comentário da Helena, de fato, para mim, aquele momento dos movimentos estudantis são fotos que eu vejo. Eu nasci em 72. Então, não acompanhei. Mas, por outro lado, acompanho de perto, digamos, o "reloaded" de certa forma disso. Eu acho que isso é um começo de abordagem do assunto. Acho que uma das razões, até... Uma das razões que participam desse processo de retrocesso moralista que a gente vive no Brasil, que é um retrocesso conservador em vários aspectos, político, moral, comportamental, religioso, foi o fato de que nos últimos 10 anos... Além de toda uma política explícita de... Eu não vou dizer de distribuição de renda. Mas de melhoria na qualidade de vida da dita classe C nos governos do PT, houve nos últimos 10 anos mais ou menos no Brasil um grande amadurecimento da sociedade civil no que se refere à ocupação dos espaços públicos. Eu acho que isso... E fica um pouco a pergunta: por que isso aconteceu? Por que, de uma hora para outra, surpreendentemente, em várias cidades do Brasil, as populações passaram a demonstrar explicitamente que elas queriam fazer valer a sua cidadania no espaço público?

Porque essa não era uma característica nossa, dos nossos cidadãos ou do nosso comportamento na cidade até então. O Brasil, como todos nós sabemos, é um país que se desenvolveu sendo colônia, tendo escravidão, e se modernizando na base da conservação das relações de desigualdade estrutural que alicerçam a nossa sociedade. A nossa modernização, de certa maneira, aprofundou essa desigualdade ao invés de erradicá-la. E isso criou na sociedade brasileira... É claro que isso não é um privilégio, entre aspas, do Brasil, talvez na América do Sul como um todo, uma sociedade patrimonialista. Isso é, uma sociedade que parece que não compreende bem o que é a esfera pública. Compreende no sentido: não cultiva a esfera pública enquanto pública. Porque todas as dinâmicas da esfera pública estão sendo o tempo inteiro atravessadas pelas relações pessoais, as relações privadas, as relações de favor. E que fazem com que a dinâmica patrimonialista da nossa sociedade contamine o tempo inteiro a possibilidade de que a nossa sociedade entenda o público como uma dimensão de todos, coletiva, onde todos se reconhecem na igualdade de direitos e de acesso, etc. Acho que isso é uma tônica da conversa que está sendo feita aqui. E por alguma razão... Claro que não é um mistério tão grande, nenhum milagre, mas o fato é que, nos últimos tempos, em várias cidades do Brasil, a população começou a ocupar espaço público como que a dizer: nós queremos espaço público, sim. Coisa que até algum tempo antes, parecia que pelo menos as nossas classes médias e elites, se contentavam em circular de automóvel, morar no condomínio e sociabilizar no shopping.

E alguma coisa mudou nessa lógica. E nas ruas da cidade apareceram corpos indesejados, corpos que incomodaram muito. E hoje em dia, a gente vive uma situação bastante esquizofrênica no Brasil que é, me parece, um amadurecimento da sociedade civil no que se refere à sua cidadania como existência livre e coletiva na cidade. Ao mesmo tempo que um recrudescimento moralista e uma regressão política gigantesca e conservadora. Essas duas coisas convivem. E não é por acaso. Uma é reação à outra, em grande medida. Então, eu acho que é muito bem-vinda toda essa discussão que é colocada a nós pela exposição do Muntadas, e através dessas mesas de discussão que o IEA está promovendo. Porque a universidade, indo muito na linha do que o Naomar falou agora pouco, a universidade pública é o lugar não só da produção de conhecimento de ponta, de inovação... Essa não é a melhor palavra. Mas produção de conhecimento ponta, de pesquisa, de investimento. Mas também é o lugar onde a sociedade se critica a si mesma. É a instância que a sociedade tem para elaborar uma crítica dela própria. Porque o mercado não faz isso. A política também não faz isso. Quem faz é a universidade. E tem que ter coragem para fazer essa autocrítica. Às vezes, a universidade tem coragem de fazer a crítica da sociedade, mas não a crítica de si mesma, universidade. Esse é um ponto interessante que foi colocado aqui. Tem a ver com a burocracia. Mas a universidade pública é o lugar da elaboração autocrítica da sociedade enquanto tal. É o lugar onde a sociedade emancipada, amadurecida, pode fazer essa crítica. Isso é fundamental. A gente entende, por isso, que tenha tantos setores da sociedade que não gostam da universidade, porque não querem essa crítica.

Essa crítica pode ser muito ruim para quem não quer que ela exista. Porque essa crítica revela certas mazelas, certas fraqueza, ela põe muita coisa. Esse permanente exercício de pôr em dúvida que é fundamental. E é o que movimenta, o que faz uma sociedade ser potente, forte. Porque ela não tem medo dos seus traumas, não tem nada a esconder, a jogar debaixo do tapete, etc. Então, eu saúdo esse exercício de metacrítica que é feito aqui nesse ciclo de mesas. Lembrando como foi colocado, também. A fala do Ailton krenak, por exemplo, é muito crítica em relação ao elitismo da universidade brasileira. E essa crítica é necessária. Ainda que a universidade pública esteja sob ataque. Concordo inteiramente com o que foi colocado aqui pelo *Naomar.

O Renato comentou. Se a universidade não aguentar essa crítica, então é melhor procurar outra coisa para fazer. Mas, ao mesmo tempo, eu quero crer que, com toda a tragédia que a gente está vivendo... Eu poderia dizer a mesma coisa que estou agora pelo ângulo negativo da lamentação. Mas eu quero fazer o argumento oposto. Toda a desgraça que a gente está vivendo no Brasil agora, vai ser redimida pela valorização exatamente disso: do SUS, da universidade pública, de tudo isso que importa, que é o nosso patrimônio. E que há de ser percebido como um grande valor, como o SUS já é. De certa maneira, a não reeleição do Donald Trump nos Estados Unidos tem a ver com isso. Com aquele sistema de saúde absolutamente desastroso. Os Estados Unidos todo privatizado, etc. E a percepção de uma parte importante da sociedade de que não era isso que se desejava mais. Então, eu acho que a universidade pública, a saúde pública, todo esse nosso acordo que foi firmado na Constituinte de 88, ele vai ser revalorizado. Ele ainda é a nossa baliza para a construção do futuro. E é por isso que a gente luta. Então, eu fico por aqui nesses meus comentários, por enquanto.

Renato Janine Ribeiro

Muito obrigado, Guilherme. O professor Ary Plonski queria fazer uma retificação. Ary?

Ary Plonski

Muito obrigado, Renato. Seguindo o esclarecimento do *Naomar, a coruja não vê muito bem de dia. No caso, não me considero a coruja, mas o coruja de vocês. Então, não enxergo bem de dia. Mas essa questão se refletiu na minha fala. Eu queria dizer, para dar o exemplo de universidade que causou muito problema, a universidade alemã, e personalizando numa figura, num filósofo famoso... Eu falei Ludwig Wittgenstein, eu queria dizer Martin Heidegger, que se tornou o reitor da Universidade de Friburgo. Mas escapou. Mas felizmente a ficha caiu. Mas *Naomar, você tem razão. De dia, nem "a", muito menos "o" coruja consegue enxergar bem.

Renato Janine Ribeiro

Essa ideia é muito interessante, porque é uma frase famosa do Hegel: a ave de minerva somente alça o voo ao escurecer. A ave de minerva sendo a coruja. E a ideia, então, é que a filosofia só reflete "ex post facto". Só a posteriori. Então, ela tem esse papel. O que, por sua vez, remete a um personagem grego pouco conhecido que é Epimeteu, o irmão de Prometeu. E que, na verdade, dá nome a uma série famosa das Press Universtaires de France (PUF), de filosofia, que era a série Epimeteu. Então, o que temos como ideia? Temos Prometeu, que é aquele que traz as coisas, que traz antes, que trouxe o fogo aos homens e que, dessa maneira, permitiu o advento do que chamamos de civilização, e temos Epimeteu que só pensa depois, que vem depois. Então, eu acho muito interessante, porque hoje a palavra "filósofo" é usada como uma espécie de galardão. Você vê que a imprensa no Brasil é quem chama as pessoas de filósofos. Quem trabalha com filosofia no Brasil se autointitula professor de filosofia. Mas a imprensa tem os seus chamados filósofos. Já vi até a Folha publicando um artigo de uma mocinha de 23 anos "filósofa". Achei fabuloso. Agora, é curioso porque então "filósofo" se tornou um termo muito ambicioso. Quando, na verdade, filósofo é apenas um amigo do conhecimento. A ideia da filosofia é que ele é menos que o "sophos". O sábio é aquele que seria o detentor, o dono do conhecimento. O filósofo tem com o conhecimento uma amizade, mas não uma coisa de propriedade. Então, a rigor, o filósofo é menos que o cientista. O filósofo tem que ter essa humildade de que ele está colocando perguntas, mas ele jamais é dono de respostas. Mas enfim. Daí, a gente entra pela mitologia, porque é extremamente prazeroso e bom. Eu acho que o Martin quer falar também, porque ele apareceu na tela. Você quer fazer um comentário, Martin.

Martin Grossmann

Eu acho que, como a gente está chegando ao fim desse nosso último encontro, Renato, e mais uma vez agradecendo a participação de vocês nesse fechamento, pelo menos dessa fase inicial desse debate que o Montadas suscita. Eu, assim como o Ary também sou coruja de vocês, fã de carteirinha. E por diferentes razões. Eu acho que a batalha em que a gente está nesse momento é uma batalha muito difícil, mas a gente vê aqui nessas diferentes falas que a gente continua sendo otimista, e que o tempo passa e as coisas vão ter o seu caminho aí. Não uma solução, mas certamente há uma fortificação aqui, um processo muito de potência, mesmo. Quando a lembrança da Eliana foi mencionada aqui, a periferia como potência é uma imagem muito bonita. E não é só bonita. De fato, ela gera essa ideia mesmo que o que está nas bordas de uma centralidade ainda que se vê muito pelo espelho possa, de fato... Vai haver aí uma grande transformação nessa participação, já com uma efetividade nesse momento. O antagonismo é muito grande, mas eu acho que esse papel que todos aqui prezaram e relacionaram, o papel da metacrítica, mais uma vez, que o Guilherme suscitou e reforçou... Não fazendo uma defesa da arte, mas eu entendo que a arte também está na periferia ainda da universidade. Porque há um equívoco no pensamento do que seria essa arte, qual seria esse papel da arte dentro de uma estrutura que tem, obviamente, como foi debatido nas três mesas, o papel muito importante do contexto. E a nossa universidade brasileira certamente gostaria de ter um Nobel, mas o ela não foi feita para isso. Ela foi feita para ter um diálogo com a sociedade.

Por mais que o nosso Guilherme Ary Plonski. Tem Guilhermes vários aqui, então vamos deixar claro que é o Ary. Ele fala, sim, nós somos a sociedade, né, Ary? Mas tem essa essa visão que a Elena lembra muito bem de uma ausência de um pertencimento. A sociedade ainda não introjetou esse papel que todos nós aqui, pelo menos, e nessas outras duas mesas que ocorreram, enxergam da universidade, como essa plataforma de metacrítica não só de si mesma, mas da sociedade. Um lugar privilegiado, nesse sentido, porque nós temos uma formação e temos uma condição de fazer isso. Então, eu lembro agora aqui o nosso atual é catedrático Néstor García Canclini, que ele fala desse papel mesmo de iminência. De a arte não refletir o belo, necessariamente, mas ela tem esse ferramental em si, mas ela, ao longo do que nós chamamos de arte contemporânea, ela vem contribuindo com coisas que eu acho bastante interessantes. Eu citei três no meu texto da exposição de Montadas, mas eu vou reforçar aqui que a primeira delas é a ideia do "site specific". São palavras em inglês com difícil tradução. Mas seria o sítio específico, mas o lugar específico. Então, eu acho que não só exposição do Montadas que nos inspirou, mas esses debates mostram muito claramente que nós temos que valorizar e reforçar nesse nosso discurso esse lugar. Não é um lugar necessariamente só dá fala, mas esse espaço-tempo da nossa condição de agentes de uma reflexão, de um trabalho crítico. Obviamente que tem que partir da universidade. Esse papel da metacrítica, ele vem com essa noção de que nós estamos no lugar que, diferentemente de uma universidade universal que ainda carregamos, ela tem a sua relação com o contextual. Com diferentes níveis que vocês deixaram claro aí na sua contribuição.

O outro, a gente não pode esquecer da curadoria. Porque é interesse que a curadoria se espalhou. É um termo que, hoje, até tem um desgaste grande. Mas a curadoria nasce nas artes visuais, ela nasce nos anos 60, com essa tentativa mesmo de fazer com que o discurso da arte deixe necessariamente de ser só específico, especializado, que são os "connoisseur", aqueles curadores iniciais que estão ligados à linguagens da arte, para ser de fato um papel de mediação crítica. De fazer uma relação entre a produção dos artistas contemporâneos ou não contemporâneos até, artistas de outras épocas, mas com essa sociedade. Então, é essa preocupação não só com a recepção, mas com a inclusão do público na equação da arte, ou do sistema da arte. Então, isso muda. E o cara não tem esse papel. E hoje a gente fala curador. Em vez de falar editor, fala curador, curador de informação. A internet, esses sistemas que nos vigiam, que nos controlam, fazem uso desse papel do curador o tempo inteiro. E, por fim, tem a "institucional critique" que, de novo... E tem um outro termo que eu gosto de inglês muito que é "criticism from within". Que em português fica difícil traduzir. A crítica elaborada, fomentada, desenvolvida no interior de alguma coisa. E eu acho que é isso que a gente está fazendo aqui. E é isso que eu defendo crítica do Instituto de Estudos Avançados, ele é um "think tank", ele é um lugar do "advocacy", de fazer isso que Helena... Que todos nós fazemos. Mas Helena aqui é nossa mestre maior. Mas Renato como o ministro, *Naomar como reitor, de fazer isso. E eu acho que, Guilherme, você não tem talvez essa experiência de gestão, e a gente gostaria muito que talvez você encaminhasse para isso. Precisamos de uma nova geração aí assumindo papéis de liderança na governança.

Guilherme Wisnik

Eu assim como você sou curador.

Martin Grossmann

Não, mas eu mudei meu nome, Guilherme, agora me chamo de "culturador", um especialista em estudo da cultura e da poética da cultura. Eu acho que a gente está falando aqui é de cultura. O curador ficou muito associado à arte. Então, eu acho que você é também um "culturador", Guilherme, porque você consegue fazer esse jogo entre arquitetura e o urbano. E fazer ligações e conexões bastante importantes nessa produção que sempre transcende as especialidades. Então, acho que você tem essa formação de arquitetura, mas você consegue ir para a transdisciplinaridade com uma certa facilidade. Isso é um dom que a gente, de novo, como fã, acompanha. Por fim, eu acho que essa ideia mesmo do "criticism from within", dessa crítica institucional é um papel que o IEA sempre teve, né, Ary, desde a criação com o Goldenberg, de ser um posto avançado, de estar mais atento. Uma vez que a gente não tem o peso da docência, isso facilita. E justamente pelo encontro de diferentes conhecimentos, diferentes mentalidades. O poder da escuta. Fazem com que o IEA vá além de uma plataforma de "think tank", e seja uma incubadora, também. A gente não pode esquecer desse papel de... O IRI, Instituto de Relações Internacionais surgiu dentro do IEA. Mas também, esse papel mesmo de estar atento aos diferentes governos. Que, infelizmente, a gente também reflete e repete esse papel que não permite necessariamente uma política de Estado. Para uma instituição como a USP, eu acho que é algo que eu também vejo que a gente poderia...

Renato Janine Ribeiro

Martin, com licença, eu vou ter que sair. Pode continuar, a conversa está ótima. Provavelmente, o Guilherme, Naomar, Helena vão querer responder. Então, se você quiser, continua dirigindo. Só tenho que me despedir de todos vocês, porque eu tenho uma questão de saúde a resolver. Então, meus caros, foi um grande prazer estar com vocês. Helena, mais tarde a gente conversa. Um abraço a todos. Martin, continue, por favor. Um abraço.

Martin Grossmann

Obrigado. Um abraço para você.

Helena Nader

Obrigada, Renato.

Martin Grossmann

Desculpa, me alonguei um pouco. Mas eu acho que eu terminei porque eu só acho que era importante reforçar essa ideia mesmo que o IEA tem essa capacidade. E está na sua natureza fazer o que nós fizemos nesses três encontros aqui. Passo a palavra para vocês.

Naomar de Almeida Filho

Eu levantei a mão digital enquanto você estava falando. Era para anunciar, e eu acho que posso fazer isso, claro, é que eu e você estamos "culturadores" ou curadores de uma proposta que foi o Canclini que fez, de a gente discutir até o final desse ano a autonomia das universidades. E uma das coisas, Ary, que antecipamos, eu e Martin, é de buscar um formato que nos dê calma e tranquilidade para fazer isso. Porque os formatos a que a universidade está de alguma forma se rendendo, são coisas muito rápidas. E que não dá para ultrapassar aquela situação de a gente poder se pensar. Então, Martin, eu me inscrevi para isso. Agora, como você falou, trouxe essa questão ainda em aberto, desses muitos saberes, e eu acho que o tema da arte entrar como um saber que reage apesar de não ser naquele registro dos outros saberes externos e tal, e que dentro da própria instituição buscam um espaço, eu acho que a gente tem um caminho muito frutífero de fazer essa escuta da própria instituição. Você falando da questão do criticismo, da crítica, para dentro... Essa ideia de "auto" tem muito uma referência de você precisar sair de onde está para se ver. É como se precisasse de uma energia externa para se mover.

Talvez, "intracrítica" seja... Não sei se alguém já pensou, certamente já pensou, porque é muito óbvio. O "criticism within" é interno, ele é íntimo. E não é uma autoreferência como a gente saindo para se referir, fingindo que não somos nós. Eu creio que essa essa construção de uma internalidade mais objetiva, no sentido preciso do termo objetivo, pode ser um belo caminho. Até para responder àquela questão do... A única questão que nós tivemos de fora, do Antônio José... Eu terminei pensando em falar mas não falei, desse tema da escuta. E você trouxe. A universidade precisa abrir espaços para escutar outras vozes. Quer dizer, não é para ela falar sobre os outros, mas ter espaços de diálogo. E, na nossa cátedra, a gente tem acompanhado de perto, a gente está fazendo um esforço de... As reuniões acadêmicas deixaram internas. A gente está sempre buscando interlocutores externos, e isso tem funcionado, está saindo do nosso controle, já. Quer dizer, já tem segmentos buscando, querem ser escutados. Não é só serem ouvidos, querem ser escutados. E aí, combinado isso com essa referência que você faz sobre o IEA, eu acho que a gente está, talvez até de um modo inadvertido, "serendipity" clássico, encontrando uma certa subversão de um modelo mais arcaico de organização institucional das universidades, que é a cátedra, o IEA está buscando produzir um dispositivo de transgressão. O que vai ser, eu acho, de uma belíssima ironia se isso avança nessa velocidade, ritmo e intensidade que a gente está verificando. Muito bacana, obrigado.

Helena Nader

Eu queria, Martin, concordar com todas as suas colocações e as feitas anteriormente pelo Ary, pelo Guilherme, pelo *Naomar. Mas tem um ponto que eu vejo que seria legal a gente ter uma discussão futura, que foi levantada nessa exposição do Montadas e vai ter que ser aprofundada. No caso dele, é uma professora que fala da liberdade dela em relação à pesquisa que ela fazia. Ela diz que só depois do "tenure" ela realmente passou a fazer aquilo que ela ela pensava, que ela se libertou. E isso é uma contradição. Quer dizer, nós aqui no Brasil não temos o "tenure". Você entra na universidade, você vai progredindo. Quer dizer, o "tenure" poderia ser olhado... Mas aí, é para um percentual tão pequeno de pessoas, que não dá para chamar de "tenure": a bolsa de produtividade do CNPQ. Para aqueles que aplicam. Não cabe. Mas o que eu vejo é que existe uma incoerência do sistema externo e interno da própria universidade. É aquilo que eu comentei brevevente, e eu acho que a gente deveria se aprofundar. Como eu posso mudar quando eu tenho o "goal" de ser a número um? É muito mais fácil eu continuar como estou e garantir que eu ascendo, do que eu refazer uma grande revolução. Então, existe... E esses rankings de universidade que deveriam ser no sentido de promover, estão virando um comércio. E a universidade não pode se omitir de olhar e discutir o que tem de positivo e o que tem de negativo.

Porque hoje, existem sistemas especializados, que nem... Eu sou da Escola Paulista de Medicina, Federal de São Paulo, eu me lembro quando a gente começou... Você lembra, *Naomar, a discussão dos cursinhos para residência médica? Hoje, isso tomou conta do país. Então, tem cursinhos, tem coisas especializadas para criar... Como você quer se sair bem? Você quer se sair bem como uma universidade que inclui, como universidade de ciências? Então, isso a universidade tem essa obrigação de discutir. Eu vejo que o IEA tem tudo para poder fazer uma discussão profunda sobre isso. É óbvio que a gente quer ver as dez primeiras universidades do mundo brasileiras. Já pensou, que maravilha? Mas qual o impacto disso para a nação brasileira? E em relação ao Nobel, e estou encerrando, nós temos vários Prêmios Nobel, viu, Martin, vários. Inclusive, vários deles da USP. Um deles se chama Sérgio Ferreira. Que foi rapinado no Prêmio Nobel. O outro se chama... Nunca recebeu. O outro, Maurício Rocha e Silva. À época, ele quando descobriu a bradicinina, estava no Instituto Biológico. Temos Johanna Döbereiner da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, que descobriu a fixação de nitrogênio. Eu não estou nem um pouco preocupada com o prêmio Nobel, de verdade, para o Brasil. Porque o Brasil deu contribuições para a ciência, que ele pouco conhece sobre essas contribuições. Acho que isso a gente tinha que fazer: advogar, mostrar o que a gente tem. O próprio... Como é o nome daquele menino que foi presidente da Academia Brasileira de Ciências? Psiquiatra formado na Federal da Bahia, negro, que revolucionou a psiquiatria brasileira. Estou tentando lembrar.

Naomar de Almeida Filho

Juliano Moreira?

Helena Nader

Exatamente! Juliano Moreira. Nise da Silveira. Estou falando só de alguns da psiquiatria, que agora está sendo tão importante, nessa pandemia. E agradecer, realmente. Parabenizar. Essa exposição mexeu muito comigo. As imagens e as falas, a maneira como ele criou. Eu fiquei imaginando uma versão lá na Brasiliana, sabe? Com algumas imagens. E aquela menina que fala da biblioteca de Yale, que ela diz... Eu acho que é de Yale. Eue por fora é tudo velho e por dentro é tudo novo. Quer dizer, a gente aqui, as nossas bibliotecas, nossas universidades, estão sendo sucateados. Quer dizer, existe essa falta de apoderamento da sociedade pela universidade. Ela não percebeu que a universidade é dela. E acho que essa é a nossa função. Parabéns, Martin, adorei estar aqui. Pude contribuir muito pouco, mas eu aprendi muito com esses mestres que estavam aqui. Obrigada.

Martin Grossmann

Inclui certamente você, Helena. Mas enfim, eu acho que a gente está chegando ao final. O Renato se foi por uma boa causa. Eu não sei se o Ary ainda tem algum comentário a fazer. Se vocês ainda têm alguma outra coisa a dizer.

Ary Plonski

Não, só discordar da Helena quando ela fala que contribuiu pouco, você contribuiu enormemente para mim exatamente na questão... Entre outras. Mas falando pessoalmente, quando eu questionei o posicionamento da universidade e sociedade, como se fosse parte dela, você me deu uma resposta que eu nunca tinha pensado nela. Então, você contribuiu com todos e comigo também. Então, me permita discordar de você também.

Martin Grossmann

Muito obrigado por estarem com a gente esta tarde. A audiência, a gente nunca sabe direito quem vocês são. Os números revelam uma parte só dessa audiência. Mas os nossos agradecimentos sinceros e profundos a vocês, *Naomar, o Guilherme Wisnik, Helena e Renato, por contribuirem magistralmente aqui para nosso debate desta tarde. E Ary, muito obrigado pelo seu apoio. O Ary é um diretor como ninguém. Ele esteve presente, de fato participando ativamente nas três mesas redondas, que foram sempre não só densas, mas longas. Então, a gente sabe muito bem o que exige um papel como o seu, de direção, e quantos assuntos existem aí simultaneamente nesse momento. Então, é uma honra poder contar com você aqui nesses debates. E o que o Montadas já quer é produzir um outro livro. Então, a gente acha que vai terminar de trabalhar, mas tem mais trabalho adiante. Porque a ideia é criar mais uma publicação com todas essas contribuições que tivemos ao longo deste um dia e meio. Começando no dia 30 com a presença da Macaé, que foi lembrada aqui, Evaristo, do Néstor Garcia Canclini, do Ailton Krenak. Hoje de manhã, uma mesa fantástica com a presença de pesquisadores do Japão, da Inglaterra, dos Estados Unidos e do Brasil. E a presença da nossa Érica Peçanha, que é uma pós-doc no IEA. E que supervisiona esse projeto da Eliana, o "Democracia, artes e saberes plurais". E todos foram excelentes nas suas contribuições. E tivermos essa possibilidade de viajar pelo mundo, e ter uma noção de diferentes contextos. Mas é isso. Muito obrigado a toda equipe do IEA, e também aos tradutores que estão aqui. E que permitiram que esses diálogos aqui também cheguem para um público maior, uma vez que nós temos as três línguas. Boa tarde e até a próxima.