Uma maquete de comportamento humilde
Relato crítico das palestras de Wouter Osterholt&Elke Uitentuis e Cristina Ribas no programa do CAPACETE junto à 29a Bienal de São Paulo. Teatro de Arena, 24 de março de 2010.
O Teatro de Arena – Rua Teodoro Baima, 94, São Paulo, Brasil – tem uma característica básica, que se encontra justamente naquilo que não tem, isto é: não tem espaço entre o exterior e o recinto, não existe um lobby; de forma que os espectadores devem aguardar, passar o intervalo, e ainda mais, ter a conversa final na calçada.
Conversar numa calçada, tomar uma cerveja na rua, é já um episodio raro, uma possibilidade que, de fato, foi saindo das nossas vidas sem advertência nenhuma: a rua, espaço coletivo por natureza, tem rejeitado o coletivo para virar um lugar de passagem e jamais de encontro.
Assim, relatar uma dessas conversas acontecidas na calçada da Teodoro Baima, bem que valeria a pena, porém este texto vai se restringir a uma das suas temáticas: as duas palestras da noite de 24 de março de 2010 no interior do recinto.
Vamos lá. Na primeira parte da noite, Wouter Osterholt e Elke Uitentuis, artistas holandeses que vêm trabalhando juntos desde 2005, expuseram duas de suas últimas obras; na segunda parte, Cristina Ribas, artista gaúcha que atualmente mora no Rio de Janeiro, conversou sobre várias de suas propostas recentes.
Antes do intervalo
As obras apresentadas por Osterholt e Uitentuis foram: Cidadãos Modelos, realizada no Cairo, Egito (2009), e Sua casa está em nossas mãos, realizada em Victorville, pequena cidade situada a 160 km de Los Angeles, Estados Unidos (2009).
As duas propostas, aparentemente diferentes, de fato com 12.209 km de distância entre elas, tinham um ponto em comum: a construção de maquetes. Porém maquetes singulares, pois longe de serem projetos de edificações futuras eram cópias de construções prévias, e umas cópias que, quando já tinham reproduzido da forma mais estrita seus respectivos referentes, passavam a fazer sua vontade, transfigurando os fatos.
Cidadãos Modelos foi produto de oito meses de residência que Osterholt e Uitentuis passaram na Galeria Townhouse, localizada no centro da cidade do Cairo. O lugar neste momento está em processo de deteriorização. Uma de suas maiores edificações, a mansão que serviu durante anos como sede a uma importante escola de classe alta, foi abandonada, transformando-se numa ruína recente que ilustra o estado geral do centro da cidade. Frente a esse panorama, fala-se do projeto do governo de fazer do bairro um setor turístico, convertendo a mansão mencionada em museu, coisa que obrigaria muitos moradores a mudar sua residência ou alterar seu modo de vida. Só um exemplo: as borracharias típicas da região teriam que desaparecer.
Wouter Osterholt and Elke Uitentuis, Model Citizens, 2009.
O trabalho dos artistas holandeses começou, então, procurando as pessoas da comunidade, falando diretamente com elas sobre suas vidas e expectativas no bairro, para só depois chegar à concepção do eixo da obra: uma maquete, escala 1:35, encarregada de reproduzir tanto a mansão quanto um fragmento dos arredores.
A construção da peça exigiu um processo de medição detalhada – desde os prédios até suas fendas e desde as ruas até o menor dos azulejos –, uma aguda seleção de materiais e toda uma pesquisa cromática, para chegar ao que pode ser denominado como uma maquete realista. Uma maquete capaz de escapar da perfeição ideal das maquetes, para mostrar as imperfeições: a umidade das esquinas, um ou outro vidro quebrado e os pneus e os tijolos que, vai a gente saber por que, vão chegando aos terraços.
De fato, trata-se da primeira maquete na que eu tenho percebido um comportamento humilde (eticamente, politicamente, humilde), pois longe de fugir da realidade com o argumento de ter vindo do campo da idéia para ensinar a essa realidade o comportamento adequado, ia e metia-se nela – no bairro Antikhana, na vida de seus moradores –, para, a partir dai, e só a partir dai, propor mudanças e transformações.
Bem. Uma vez terminada a primeira fase da obra – a maquete enquanto cópia –, os moradores do bairro começaram as melhoras. Os sonhos ou as idéias – instalar um restaurante KFC numa esquina, pintar a fachada de um prédio –, tornavam-se reais, palpáveis; aliás, era como se a trigésima quinta parte do propósito tivesse ficado feita. Um desses projetos, abrir um café com terraço na cobertura de um prédio, tinha uma particularidade: Osterholt e Uitentuis relataram que no Cairo estão proibidas as reuniões nos espaços públicos, de forma que esse café teria um espaço exterior, porém privado, onde fossem possíveis os encontros coletivos.
Wouter Osterholt and Elke Uitentuis, Model Citizens, 2009.
Em suma, nesta segunda etapa da obra, a maquete do bairro Antikhana recobrava sua natureza “maquete”, pois começava a propor projetos capazes de transformar um espaço e, com isso, capazes de mudar uma determinada forma de convivência humana. Mas sem a arrogância de acreditar que esse espaço não tinha uma existência, uns moradores e uma história tão prévios quanto presentes.
Cidadãos Modelos incluiu também, de uma parte, as paredes da galeria onde foram dispostos textos e fotografias e, de outra, entrevistas com os moradores do bairro. Estas entrevistas tinham a característica de não serem narradas diretamente pelos entrevistados, senão transcritas e narradas por atores. No final do evento, uma pessoa perguntou o motivo desse recurso – eu, de fato, confesso ter pensado que se tratava de uma armadilha para marcar a linha realidade/ficção –, mas os artistas responderam que, simplesmente, foi a saída encontrada frente à postura do governo egípcio que proíbe as pessoas de concederem qualquer classe de entrevista.
Wouter Osterholt and Elke Uitentuis, Model Citizens, 2009.
Umas cem figuras feitas com fotos de moradores do bairro, dispostas nas escadas da ruína-mansão que pretendem converter em museu, isto é, dispostas sobre o ponto que originou a obra, foi a imagem que abriu a conversa dessa noite. Essa abertura, de jeito nenhum, foi gratuita: na medida em que era a possibilidade de encontro, de discussão, de intervenção das pessoas, seja no Cairo, Egito, seja em São Paulo, Brasil, a que movia toda a proposta da obra.
Vou à peça seguinte: Sua casa está em nossas mãos, Victorville, povoado a 160 km de Los Angeles, Estados Unidos. Osterholt e Uitentuis chegam para uma residência nesse ponto do globo e, na sua condição de artistas, imediatamente começam a procura dos problemas. Ou do problema. No entanto, o conflito que encontram em Victorville é diferente daquele que deixaram no Cairo; porque não é real, mas inventado. Inventado pelo capital.
Explico. Victorville é um povoado criado num estalar de dedos pelas agencias imobiliárias americanas. Escolhem um terreno no meio do deserto cujo valor por metro quadrado seja praticamente inexistente, mas que possa ter comunicação direta com uma metrópole cujo valor por metro quadrado seja praticamente inalcançável. Fazem uma infra-estrutura de serviços e transporte e constroem a maquete. Agora, essa maquete perfeita e imutável, criada pelas agencias imobiliárias, terá escala 1:1, será um modelo diretamente levantado no chão. E, então, começam as vendas.
Com as vendas cresce o valor, os futuros moradores assumem hipotecas de dimensões enormes, crentes de estar levando o capital da metrópole ao povoado, mas quando já estão lá – percorrendo o espaço das suas casas, e das casas as ruas, e das ruas ao deserto – as agências desaparecem. E então eles, os moradores, descobrem que foram até Victorville sozinhos, que o capital não foi com eles e que suas casas já não valem as hipotecas que permitiram adquiri-las. Neste momento, uma de cada quatro casas está à venda. Alguns moradores antes de partir, assim como contaram os artistas, entupiram canos com cimento ou atiraram contra casas que continuaram praticamente imutáveis.
Nesse contexto, Osterholt e Uitentuis se encarregaram de levantar uma casa modelo. Uma maquete que, diferentemente da feita no Cairo, não exigiu tanto trabalho, pois uma realidade pré-fabricada não tem defeitos a serem copiados. Essa nova maquete é escala 1:3, grande demais para ser maquete, pequena demais para ser casa, e tem uma particularidade única: quatro rodinhas permitem seu movimento, possibilitam o sonho de fugir, como as tartarugas ou os nômades, com a casa nas costas.
Wouter Osterholt and Elke Uitentuis, Your House is in Our Hands, 2009.
Grande parte do trabalho de Osterholt e Uitentuis consistiu em levar a maquete pelas ruas de Victorville, puxá-la e empurrá-la por longos trajetos, dando voltas, e não precisaram convocar as pessoas, elas vinham sozinhas para falar com eles, e para ver essa espécie de saída, de sonho materializado, deslocar-se.
(E, puxa, é paradoxal – ainda saiba que esta afirmação não deixará de ter detratores – ver acontecer o clássico de Juan Rulfo, A terra que nos deram, num contexto urbano, contado por holandeses e além da fronteira.)
Depois do intervalo
Cristina Ribas, artista brasileira, relatou algumas das suas experiências recentes fazendo uso de um tempo menor por questões do cronograma. Entre elas: Protótipos/Prototypes, Pedregulho e Anecoicas.
Projeto Pedregulho, 2009
Protótipos/Prototypes foi um trabalho feito numa residência em Londres. Nele participaram vários artistas e o principal meio selecionado foi a colagem de fotografias, onde eram misturadas diferentes instancias, por exemplo: um cinema de Porto Alegre abandonado e destruído tinha como tela de projeção uma fotografia das ruínas da Segunda Guerra Mundial. Pedregulho, de sua parte, foi a proposta de uma residência artística no Conjunto Habitacional Prefeito Mendes de Morais no Rio de Janeiro, onde se reuniram artistas visuais, críticos de arte e arquitetos com interesse de criar propostas sobre o lugar e, depois, formar espaços de encontro como uma biblioteca pública partindo de doações que foram capazes de atrair tanto à comunidade quanto a diferentes artistas, ou uma horta de cultivo comunitário.
A última das obras mencionadas, Anecoicas, consistiu num conjunto de peças sonoras produto das gravações feitas da recepção de uma emissora de radio, através de 22 dos túneis que caracterizam a malha viária do Rio de Janeiro. A recepção da onda vai diminuindo para depois retornar gradualmente segundo o percurso do túnel. As peças foram exibidas numa galeria da cidade, por meio de audiofones, e uma das suas peculiaridades consistia em que seus preços são estabelecidos de acordo com a longitude do túnel.
Cristina Ribas, Anecoicas, 2008.
Assim, o eixo desta proposta plástica está na inclusão do valor comercial na peça mesma; o valor não se restringe a ser um elemento que fica fora da obra, como fato acrescentado e jamais próprio, pelo contrário, cada uma das peças cria seu valor desde o estabelecimento da mais simples das relações: sua duração temporal corresponde a seu preço: maior duração = maior valor.
A relação é elementar, mas encarrega-se de apontar problemáticas agudas: a possibilidade de estabelecer um vínculo entre dois dos inventos modernos por excelência: a mercadoria e a obra de arte. Nos termos mais básicos, o valor da mercadoria deverá corresponder às horas de trabalho investidas na sua fatura; enquanto, o valor da arte não terá nada a ver com essas horas: pois é justamente na natureza incalculável de seu valor que está sua condição de arte. Assim, o preço vem sempre depois, como algo a ser adicionado, sem que contamine a natureza da obra de esfera estética.
Bom. Em Anecoicas, a proposta de constituir num mesmo momento e com o mesmo mecanismo obra e preço, é uma tentativa aguda de contaminar a esfera da arte. Converter a obra numa mercadoria, mas, uma mercadoria onde o valor corresponde já não ao tempo de trabalho, mas sim a um tempo completamente aleatório: a quantidade de minutos do percurso onde foi gravado o som que constitui a peça. Deste modo, Anecoicas estabelece um jogo entre obra e mercadoria interessante, atual e, além do mais, necessário para nosso momento.
Porém, trata-se de um jogo que não consegue se desenvolver na peça. Anecoicas se dissolve porque a equação entre longitude do túnel e valor da obra, não chega a propor uma tensão efetiva. Fica na superfície e o espectador não alcança a abrir o leque de possibilidades que poderiam ser trabalhadas. Em resumo, não alcança a profunda problemática que a obra está apontando: um mundo dominado por um sistema de intercâmbios cujas mercadorias já não têm nada a ver com as horas trabalhadas. De fato, trata-se de mercadorias que parecem estabelecer seu valor sozinhas, sem nenhum tipo de colaboração humana.
Assim, é preciso elaborar a obra. E mais uma coisa: falta pôr os preços à vista. Na fala de Cristina, o fato do preço passou como uma anedota rápida, quase gratuita, e nas fotos da exposição Anecoicas, os valores não apareciam por parte nenhuma. Esse detalhe pode ser irrelevante, porém parecia confirmar a rejeição propriamente moderna de misturar arte e valor: obra - dinheiro.
Um tipo de rejeição singular, pois, trata-se de um fenômeno que somente ocorre quando os preços não alcançam serem exuberantes, desmedidos, gigantescos. Em casos como a compra do Pollock n° 5 feita por David Martínez, em 2006; uma transação de $140 milhões de dólares, o valor foi tão grande, tão inapreensível, que alcançou a mesma condição abstrata da obra, e deixou de ser um detalhe incômodo para se transformar numa espécie de confirmação da qualidade estética.
Em resumo. A problemática entre preço e obra de arte precisa ser abordada: uma galeria que exponha os preços junto com as obras perderia toda elegância possível, perderia toda sua estética. E isso é o que justamente estamos tentando fazer desde os anos 50, mandar a estética da modernidade plantar batata.
Final
As palestras chegaram ao seu fim. Todos saímos à Teodoro Baima e ali ficamos, na calçada, conversando para, somente depois, passar a última parte do evento: comer no restaurante da frente um ceviche peruano que, posso afirmar, estava delicioso.