Um convite desses não se recusa!

Encontro de curadores, Teatro Arena, 29ª Bienal de São Paulo.

Teatro Arena

 

Na noite de dois de junho, reuniram-se os curadores Agnaldo Farias, Chus Martínez, Fernando Alvim, Moacir dos Anjos, Rina Carvajal, Sarat Maharaj e Yuko Hasegawa, ou seja: Brasil, Espanha, Angola, Brasil, Venezuela/USA, África do Sul/Reino Unido e Japão, mais do que para falar da proposta da Bienal, para responder às perguntas que seriam formuladas pelo público.

 

E foram formuladas várias. Desde o critério de seleção dos curadores chefes até, aos curadores convidados, o motivo de haverem aceitado o convite. A primeira questão foi respondida com uma afirmação básica: nos orientamos por aqueles curadores que pudessem trabalhar relações entre arte e política, curadores que tivessem esse assunto em suas respectivas agendas. Com respeito à segunda questão – sobre a decisão de aceitar a proposta – Sarat fez uma intervenção aguda: sublinhando a tradução de seu próprio discurso durante o evento, referiu-se ao ato de traduzir como uma questão política, enquanto implicava uma tensão entre o global e o local, neste caso entre Brasil e o mundo; para depois perguntar onde se localizava o Brasil, no norte ou no sul?, e com isso abrir seus interesses com relação ao tema da mostra, às possibilidades da Bienal de propor outros modos de relacionamento, outros caminhos que não fossem os percorridos até o presente.

 

Fernando, de Angola, respondeu algo tão básico quanto real: um convite desses não se recusa, mas mais ainda, diria depois, é uma oportunidade única de fazer comunicar a África e o Brasil, e eu acrescentaria: mas não como uma comunicação histórica, não um retorno à África como um típico retorno à origem, mas voltar à África para compartilhar um tempo presente. Chus, da Espanha, resumiu o assunto num fazer parte do time e por uma fascinação pelo Brasil que poderia qualificar como constante. Yuko, do Japão, afirmou que já esteve aqui por duas vezes e que uma terceira lhe parecia fantástica, e Rina, da Venezuela, voltou a fazer conexões entre os continentes, da possibilidade de pontes diretas, sem necessidade de escalas prévias.

 

No entanto, não foi nem o tema arte e política, nem o tema das nacionalidades e seus possíveis diálogos, nem o tema sobre os critérios de seleção de cada curador, aquele que pareceu direcionar o debate. Foi, ao contrário, uma pergunta específica: por que a obra de Lygia Clark não estaria na mostra?

 

A resposta foi fulminante: a obra não poderia estar presente, tal como explicou Moacir dos Anjos, por um problema de negociação com os familiares da artista. Primeiro, a obra de Lygia Clark que havia sido pensada era Caminhando, que tem como característica não ser um objeto, pois é o visitante o encarregado de criá-la partindo dos elementos mais simples: papel, cola e tesoura. Bom, os familiares pediram 45.000 reais pela presença, mais que da peça, do nome da artista, desse copyright de que são herdeiros. Isto poderia ter sido aceito – a proposta política desta bienal não está pondo em questão a propriedade privada –, porém, os familiares queriam fornecer o papel e intervir nas ações dos participantes, o que de fato resulta impossível, pois, assim como explicou Agnaldo Farias, com isso estariam interferindo na proposta mesma da artista, nesse convite a criar marca da obra de Clark.

 

Em resumo, a resposta foi dada, mas o tema continuou. E continuou com uma pergunta aos curadores sobre se isso havia acontecido em seus países. A resposta de Rina foi bem interessante: uma exposição organizada por ela de artistas latino-americanos nos Estados Unidos quase foi cancelada por motivos similares, e justamente as obras que originaram o problema eram de Oiticica e de Clark: seus preços e condições. Finalmente conseguiram pagar, mas o custo foi tão alto que o catálogo teve que ser impresso em preto e branco (ação que resulta exótica em nossos dias). A resposta de Fernando Alvim, pela sua parte, pode se resumir assim: em nosso país nunca pagamos por isso. A de Yuko: em todos os paises se passa por isso, é preciso analisar os casos particulares, o que seria um bom início para esta Bienal. Chus, de sua parte, respondeu: é um tema de patrimônio, de propriedade e, portanto de política.

 

E tinha toda a razão do mundo. O ponto de que é um problema de propriedade e, portanto, de política, abre todo um panorama: boa parte da arte da segunda metade do século XX deixou de ser objeto/original para escapar de ser mercadoria, e com isso escapar do jogo entre arte e valor, arte e propriedade, arte e poder. A problemática de Lygia Clark, aquilo que aconteceu com Caminhando, é chave também porque apresenta situações específicas; as respostas dadas por uma japonesa – esse assunto sempre ocorre – e por um angolano – esse assunto nunca ocorre – , não dão conta de um fato estético senão de um fato econômico, com efeito, tem que existir muita concentração de capital para a arte chegar a se converter em valor, em possibilidade de acumulação de riqueza.

 

Hoje a perspectiva de propor arte e política se dá num panorama diferente ao de uma arte contestatária, uma arte de denúncia, pois assim como foi afirmado por Agnaldo Farias, esse já é um tema caduco. Agora, a natureza de sua caducidade não está em que tenha se desgastado pela sua repetição (um poema de Gregório de Matos poderá ser repetido até o fim de nossos tempos), encontra-se, ao contrário, em que este tipo de arte acreditava que a luta – repartir a riqueza – seria ganhada não tanto por desejo humano, senão porque a história ia para algum lugar, tinha um sentido dado de antemão e era, justamente, a economia e seus ciclos aquilo que a movia. Neste momento, sem a mais mínima confiança em que a historia tenha um caminho, resulta impossível levantar qualquer tipo de panfleto: para fazer um panfleto preciso de uma proposta de amanhã.

 

Neste momento, não acreditamos em que sejam as forças econômicas as que dominam os processos políticos e, com isso, que a história tem um curso, que vá para algum lugar: são decisões políticas as que movem a economia, as que movem os mercados. E hoje, arte e mercado dão as mãos, mas este já é outro problema, ou de repente o problema justamente radica em que se trata de um único e mesmo assunto.

 

Corpus Christi, 3 de junho de 2010.

Julia Buenaventura

Assistindo à derrota da Tríplice Fronteira no Campeonato Mundial de Futebol, 3 de julho de 2010. Tradução Keila Kern.