Se você não sabe o que é o sul, é simplesmente porque você é do norte
Se você não sabe o que é o sul, é simplesmente porque você é do norte. [NOTA 1]
A curadora Sarah Farrar iniciou sua fala situando seu país de origem, a Nova Zelândia, como periférico em relação ao cenário de arte contemporânea mundial. Ela destacou dois pontos principais que constantemente orientam grande parte da produção local: a história de tensão entre a população descendente de europeus e a população indígena original, os Maori, pois mesmo que não faça mais sentido falar em raças após dois séculos de miscigenação, essa ainda é uma forma de catalogação da população utilizada pelo governo como, por exemplo, na garantia de alguns direitos; a outra questão, de alguma forma relacionada à primeira, é a utilização da exuberante formação geográfica feita pelo marketing do turismo nacional, cujas propagandas constantemente falam de uma "pureza" da natureza. Sarah mostrou uma imagem de uma dessas campanhas onde, sobre uma fotografia de paisagem, se lê: "100% there for the taking", algo como "100% para ser aproveitado/tomado". Essa frase ambígua introduz o recorte de obras que Sarah nos mostrou para apresentar algumas de suas curadorias em Wellington, com relação bastante crítica ao contexto político. Em uma dessas exposições Michael Stevenson realizou uma instalação, "This Is the Trekka", desmembrando um Trekka (alardeado como o único carro totalmente neozelandês) e mostrando que as peças constitutivas do veículo eram oriundas da então Tchecoslováquia, descortinando, assim, as relações econômicas entre os países durante a Guerra Fria e, de certa forma, sabotando o ufanismo contido na ideia de produto 100% local.
detalhe da instalação "This is the Trekka", de Michael Stevenson, apresentada na Bienal de Veneza em 2003
Em seguida, Inti Guerrero se juntou a Sarah para relatar o projeto que fizeram juntos dentro do Programa Curatorial do centro de arte holandês De Appel. O curso de curadoria seleciona jovens curadores de diferentes contextos geopolíticos e na turma deles, em 2007, os participantes vieram da Sérvia, Lituânia, Canadá, Rússia, Colômbia e Nova Zelândia. As aulas e encontros se dão em Amsterdã, porém o programa organiza uma série de viagens para pesquisa e ao fim do curso os alunos devem organizar um projeto de conclusão.
A diretora atual, Ann Demeester [NOTA 2], propõe que as curadorias sejam "context responsive" (que respondam ao contexto), para que os projetos saiam do espaço expositivo da instituição rumo à cidade. O local escolhido pela turma de Inti e Sarah foi o subúrbio em construção Leidsche Rijn, ao lado de Utrecht, um dos novos projetos de urbanismo do governo da Holanda, previsto para ser concluído em 2025. Sarah atribui como política "tipicamente holandesa" que Leidsche Rijn já tenha um projeto de instituição para arte contemporânea, antes mesmo de ser construído. A exposição final curada pelo grupo se espalhou por três locais distintos, entre eles o bazar de segunda mão Emmaus. Sarah e Inti chamaram atenção para o fato desses curadores de países periféricos, uma vez nesse subúrbio serializado holandês, terem se reconhecido na opacidade de um brechó.
Trabalho do artista Gabriel Kuri no bazar Emmaus, dentro da exposição "Master Humphrey's Clock"
Detalhe da instalação Grounded, de Michael Rakowitz, também no Emmaus.
Inti Guerrero trouxe parte da pesquisa que realizou para a exposição "A Cidade do Homem Nu", atualmente em cartaz no MAM de São Paulo [NOTA3]. A exposição parte do "plano diretor" de uma cidade sem "tabus escolásticos", idealizada por Flávio de Carvalho, reunindo trabalhos de diversos artistas a fim de sondar a construção social do corpo. A exposição mostra trabalhos de arte e objetos comuns sem distinção, como revistas da época que registraram o "New Look" da "Experiência nº2" de Flávio, capa e encarte de um disco de Ney Matogrosso ou a incrível série de fotografias de uma matéria intitulada "A Verdade Andava Nua", publicada na revista Cruzeiro em 1949, onde jovens burgueses cariocas desfilaram na praia usando roupas de gala e maiôs, protestando contra o veto dos trajes de banho fora da orla.
"A verdade andava nua" - ensaio publicado na revista O Cruzeiro em dezembro de 1949
Inti compara o trabalho do curador a uma colagem, utilizando elementos que, combinados, forjam uma novo painel - bastante autoral no caso de sua exposição. Ele pensa o profissional menos como prestador de serviço e mais como sujeito criativo; Daniela Castro entrou no debate lembrando que a delimitação da atuação do artista e do curador precisa ser repensada, pois tais formas de atuação se contaminam mutuamente. Luisa Duarte contribuiu traçando um painel do estado da curadoria no Brasil, onde praticamente não há cursos profissionalizantes e o aprendizado acontece na prática, trabalhando e/ou fazendo assistências. Para Daniela, mais importante do que pensar em cursos de curadoria é analisar as condições da prática no cenário institucional nacional - segundo ela, há uma obsolescência do modelo de gestão dos espaços, muitas vezes defasado em relação às novas práticas da arte contemporânea. E, se na Nova Zelândia os curadores tem que viajar para fora por haver poucas vagas disponíveis no pequeno mercado de arte, aqui no Brasil há bastante vagas mas elas são muitas vezes ocupadas de forma escusa.
1 Sarah ilustrou sua fala com essa obra de Runo Lagomarsino: "If You Don't Know What the South Is, It's Simply Because You Are from the North" (2008). 2 Ann Demeester veio ao Brasil em 2007 e proferiu uma palestra no Centro Cultural São Paulo sobre novos modelos de instituição, registrada aqui no Forum Permanente: http://www.forumpermanente.org/.event_pres/mesas/a-curadoria-no-campo-expandido-pos-institucionalismo 3 Site da exposição: http://acidadedohomemnu.blogspot.com/