Duas histórias do passado, do presente e do futuro
Primeira história: Martin Beck
Outdoor Systems, indoor distribution
Martin Beck iniciou sua apresentação dizendo que foi convidado para participar da 29a Bienal de São Paulo com um projeto que ele havia realizado há 10 anos, em parceria com Julie Ault, pensando sobre a cidade de Los Angeles. O convite feito pela Bienal foi o de recriar projeto para uma seção da mostra denominada “Utopia e distopias”.
O projeto se chama Outdoor Systems, indoor distribution (“Sistemas exteriores, distribuições interiores”) e foi apresentado na Neue Gesellschaft für Bildende Kunst, em Berlim, Alemanha, entre junho e julho de 2000.
No contexto da Bienal, Beck disse que para recriar o projeto a dupla lida com uma circunstância específica de recompor, reconstruir ou revisitar o projeto do passado. Este já focava em alguns projetos históricos, portanto, segundo o artista, agora há duas camadas históricas, pois o remake para a Bienal incluirá o proprio projeto como uma camada histórica, e Beck demonstrou um particular interesse nisso.
Beck dedicou a sua apresentação para descrever “Outdoor Systems, indoor distribution”. Como ele é bem denso, e não havia tempo para investigar tudo naquela noite, ele apresentou uma visão geral, sem entrar em grandes detalhes.
Ele contou que originalmente a exposição começou com a ideia de colaboração e o compartilhamento de arenas, espaços urbanos, espaços de exposição, a construção de espaços e condições sociais e políticos.
Beck mostrou a imagem do convite, que era um cartão que tinha impresso de um lado uma imagem do deserto do sul da Califórnia com uma série de outdoors, e do outro lado aproximadamente o seguinte texto descritivo: “Uma superestrutura contendo uma série de montagens tridimensionai,s articulando modelos de espaços urbanos, de exposição, de ambientes e espaço público. Arenas temáticas feitas a partir de superimposições históricas e com materiais contemporâneos do campo da arquitetura, urbanismo, design e cultura popular. A exposição traz fragmentos em formatos de imagens, gráficos, livros, publicações, etc, em diálogo, selecionados, manipulados e arranjados.”
Ault e Beck entendiam a exposição naquela época como uma espécie máquina de arranjos que processava imagens e podia viajar no tempo até determinadas referencias históricas e até a contemporaneidade. Essa máquina também negociava diferentes tipos espaços, pensando, por exemplo, o que acontece se a cidade for colocada dentro do espaço da exposição ou o que acontece se o espaço expositivo é a própria cidade.
A entrada da exposição era como um corredor longo com papel de parede, que eles chamavam de papel de parede urbano, que continha duas imagens: uma vista panorâmica da cidade de Los Angeles e uma que era um corte dela. Essas eram duas imagens específicas que eles tiraram de um livro chamado “A imagem da cidade” (The image of the city) publicado por Kevin Lynch em 1960, um dos precursores em trazer uma leitura da cidade a partir de uma perspectiva coletiva. Trazendo essas questões inéditas na década de 60 como forma de perceber o espaço urbano, Ault e Beck as transformam em papel de parede como se as questões já estivessem domesticadas pelo tempo.
imagem da exposição
A imagem do convite do deserto com o outdoor também estava na exposição, e, para o artista, ela alude a midialização do supostamente branco ou vazio do deserto. Outra imagem chave para a exposição era uma imagem do projeto Non-stop city do grupo de arquitetos italianos Archizoom Associati. O projeto do grupo tinha uma perspectiva distópica da cidade, na qual a cidade tinha se tornado numa paisagem contínua, e não era mais possível saber a diferença entre exterior e interior, entre espaço de consumo e espaço de produção.
vista da exposição
Na entrada da mostra, havia um quadro de acrílico suspenso e transparente, de modo que se poderia ver através dele, onde estava o texto de apresentação da mostra escrito pelos artistas. A última frase desse texto é um ponto-chave de toda a proposta dos artistas: “no geral, a exposição pode ser entendida como um quebra-cabeça metafórico sobre a produção e o consumo do espaço”. No quebra-cabeça, segundo Beck, uma peça precisa se relacionar com as outras para gerar uma imagem inteira.
“Outdoor Systems, indoor distribution” continha vários tipos de mídia, inclusive o uso de uma fonte específica nos textos. Chamada Interstate, que é também o nome das estradas construídas nessa época, a fonte foi comissionada pelo governo norte-americano no final da década de 50 e foi usada para sinalização.
O campo heterogêneo de mídias e dispositivos da mostra eram integrados por um chão colorido, que, assim como a fonte, funcionava como uma sinalização para a “navegação” pelo espaço expositivo. O padrão do chão foi criado a partir de uma imagem de uma intersecção de uma complexa estrada em Los Angeles, e essa imagem se encontrava exposta em uma mesa próxima a entrada junto com uma maquete do espaço expositivo.
A exposição tinha dois vídeos. Um deles era uma montagem como se alguém dirigisse sobre uma estrada sinuosa e o outro foi criado a partir de um restaurante suspenso e giratório (com visão de 360 graus pra cidade) em prédio pós-moderno em Los Angeles. Portanto, um vídeo passava uma sensação de um sujeito se movendo na cidade e o outro da cidade se movendo em torno do sujeito.
De acordo com lógica de justaposições, dos vídeos, do padrão do chão e do papel de parede, havia também uma justaposição de objetos, como uma mesa do grupo de designers/arquitetos Superstudio, que apresentava o vídeo Supersurface. O Superstudio, nas palavras de Beck, é conhecido por tratar de questões utópicas e distópicas da arte, sobre as condições da vida no futuro além da arquitetura, da cidade e de objetos.
Havia ainda na exposição a projeção do vídeo House: After Five Years of Living (1955) dos designers americanos Charles and Ray Eames.
O percurso de toda a exposição se dava em módulos. No final dela, havia uma imagem do grupo americano Archigram. Segundo Beck, a exposição toda é um exercício de ilustração de megaestruturas e como navegar nelas. A imagem de Archigram nos faz voltar para uma abstração de módulos tentando construir uma megaestrutura novamente.
Martin Beck, por fim, afirmou que, para a 29a Bienal de São Paulo, pretende usar a mesma metodologia de justaposição, montagem, navegação, atualizando as questões anteriormente propostas ou para trazer questões novas. Em suas palavras, trata-se de um processo de reconstruir, repensar, revisitar, etc.
Algumas referências citadas por Beck - como Archigram e Superstudio - também fazem parte do corpo de artistas da 29a Bienal.
imagem da exposição
Segunda história: Milton Machado
Pré-história
Milton Machado é graduado, mestre e doutor em arquitetura, mas se define como um arquiteto sem medidas e um filósofo desmesurado, que elabora desenhos a partir do “puro prazer de desenhar”. Somente essa definição é capaz de explicar o seu trabalho artistico “História do futuro” que ele desenvolve desde 1978 e que irá ser apresentado na 29a edição da Bienal de São Paulo.
Machado, assim como Beck, demonstrou uma dificuldade em falar por somente 40 minutos para o público presente no Teatro de Arena sobre um trabalho que existe há mais de 20 anos.
Antes de apresentar o seu powerpoint, Milton Machado propôs uma pequena experiência: lançou algumas vezes uma bolinha de ping-pong contra uma parede de concreto do teatro de arena, propondo um cálculo do numero de probabilidades de uma bola de ping-pong qualquer atravessar uma parede de concreto qualquer. Segundo ele, essa probalidade é algo que tende para o zero, mas não é zero.“Em prática a bola nunca vai atravessar a parede, mas em teoria pode”, afirmou.
Essa experiência, segundo Machado, tem a ver com uma série de trabalhos que antecedem a “História do futuro”. São desenhos que mostram algumas situações em que teoricamente uma bolinha pode (no sentido de probabilidade, e não possibilidade) atravessar uma parede de concreto. Segundo o artista, para provar que uma bola de ping-pong pode atravessar uma parede de concreto basta que se minta, que se crie um intervalo, uma teoria, uma certa condição. “É muito mais interessante provar do que fazer ser possível”.
Machado mostrou uma série de desenhos, chamada CQD (a sigla é utilizada cientificamente quando se demonstra um teorema), que são algumas demonstrações como a da bola de ping-pong, como “Trem analisado” (1973) que em uma mesma folha mostra o desenho de um trem, o trem desconstruído, suas partes componentes separadas e numeradas, um diagrama a partir da numeração do qual é retirado outro diagrama que corresponde a projeção de um outro objeto que é uma estação de trem. Assim, em “Trem analisado” Machado prova que um trem corresponde a uma estação. A mesma metodologia é utilizada nos outros desenhos da série, como “Avião analisado” (1973).
A série CQD faz parte de uma série de exemplos de trabalho da década de 70 em que as estratégias de desconstrução, reconstrução e vida (ou manutenção, conservação) se passam tal qual como no trabalho “Historia do futuro”. Outro precursor da “História do futuro”, entitulado “Poder”, é um conjunto de 8 desenhos que apresentam um imaginário de complexos de cidades, ou pequenas redomas micro-climáticas, ligados por pontes, viadutos, ou conexões, que formam uma malha. Os mesmos desenhos também registram uma transformação permanente nesse imaginário em que aparecem pilares, que formam uma nova malha de edifícios. Essa nova reconfiguração acaba formando um pombo no desenho, um objeto aéreo, cuja presença passou a ser explorada em uma série seguinte de desenhos.
“Trem analisado” da série CQD. Imagem: divulgação 7a Bienal do Mercosul
Machado afirmou que na época desses desenhos ele tinha muito interesse em alguns grupos citados na apresentação de Beck, como Superstudio e Archigram. Ele também citou Yona Freedmann, um arquiteto que desenvolveu o conceito de arquitetura móvel, que, para o artista, teria a ver com essa série de desenhos na qual a presença do pombo/pássaro foi desenvolvida.
Em desenhos dos anos 1970, Milton Machado encontra pássaros no mapa da cidade
História (do passado) do futuro
A “História do futuro”, segundo o artista, “é um trabalho muito determinado a ser sobre a indeterminação”. É um trabalho, como diz o título, um trabalho em processo, que nunca vai ser terminado.
Em 1978, Milton Machado leu um livro escrito em 1937 chamado “Escripta pré-histórica do Brazil”, do palaeteólogo Alfredo Brandão. O livro explicava a formação dos continentes terrestres tal como conhecemos hoje a partir da destruição por diversos cataclismas de um continente único chamado Pangéia. A partir dessa ideia, como “um arquiteto sem medidas”, Machado se propôs a re-ligar esses continentes separados por meio de um sistema de pontes, reinstituindo a unidade perdida da terra.
Machado, afirmando não ter muita ideia do que fazia enquanto desenvolvia a sua “História do futuro”, passou por muitas especulações, que geraram croquis que depois geraram os desenhos. Segundo ele, a “História do futuro” é um universo fictício que só faz sentido nas margens estritas de seus desenhos. Ao perceber que já não se tratava mais uma ação que caberia para um “arquiteto sem medidas” de reunir continentes, Machado se viu na posição de um “filósofo desmesurado” ao se tornar criador de todo um universo.
“História do futuro” se refere a um universo constituído por três mundos: o “mundo imperfeito”, constituído por continentes e o que ele chama de “pontes simbólicas” que ligam os continentes; um segundo mundo chamado “mundo perfeito”, construído por pilares do novo mundo, pontes efêmeras e um plano ideal; e um terceiro mundo, em cima de todos, chamado “mundo mais que perfeito”, constituído por cidades mais que perfeitas e módulos de destruição.
Os pilares são estruturas primárias, verticais e horizontais, que já estão desde o início de um processo construtivo. Na cidade mais que perfeita, o módulo de destruição, que é um imenso cubo, abandona uma posição chamada Alfa destruindo a primeira camada do mundo perfeito e deixando aparecer o plano ideal (uma parte aparentemente quadriculada no desenho) que é o primeiro elemento do mundo perfeito. No segundo movimento o cubo, ou módulo, abandona a posição Ômega, voltando para a posição alfa e destruindo agora o plano ideal, mostrando o mundo imperfeito.
O universo criado por Machado consiste ainda de “cavernas”, pequenos fragmentos que unem o mundo mais que perfeito ao mundo imperfeito, passando por dentro do mundo perfeito. São elementos que perfuram todos os mundos.
O mundo perfeito é criado por tríades, onde vão se construindo a cidade mais que perfeita. Enquanto uma cidade vive seu ciclo de vida e construção, a outra vai viver seu ciclo de destruição e desconstrução. O que determina esses ciclos simultâneos e precisos é o módulo de destruição e seus reposicionamentos. O módulo de destruição, na verdade, é também um construtor.
O mundo mais que perfeito é habitado por alguns sujeitos: o “sujeito da morte vulgar”, que morre, ou é destruído, junto com a cidade pelo cubo; o “sedentário”, que penetra nas cavernas e atravessa mundos, procurando refúgio do cubo; e o “nômade”, representado por uma pequena esfera (pequena em relação ao módulo de destruição) que percebe que se ele (ou ela) conseguir atravessar para uma outra cidade ele vai fazer algo que Platão chama de uma “forma móvel de eternidade”: ter filhos, fazer poesia, politica, etc.
Machado, por fim, mostrou um trabalho que desenvolveu a partir da “História do futuro” no Museo Civico Gibellina, na Sicília, Itália, em 1991. A cidade de Gibellina foi completamente destruída por um terremoto em 1961 e os habitantes da cidade viveram por 12 anos em barracas improvisadas até que uma cidade nova fosse construída ao lado de uma cidade velha.
Para a exposição no Museo Civico, Machado construiu uma espécie de cubo em posição alfa, mas para isso, coincidentemente, foi preciso ser costruído pilares para que o prédio do museu não desabasse com a instalação do cubo. O trabalho acabou contextualizado, portanto, em uma exata coerência com a “História do futuro”: existia uma cidade destruída por um terremoto, uma cidade construída ao lado, e uma sequência de pilares, que formaram a situação ideal para que o cubo fosse instalado. Machado citou outras coincidências de seu trabalho com o contexto dessa exposição, bem como com textos de alguns autores, como o livro “Mil Platôs” de G. Deleuze e F. Guatarri, que demonstram um profundo mergulho do artista no seu próprio universo.
Assim como Martin Beck e Julie Ault, Milton Machado terá o desafio de apresentar em setembro um trabalho tão complexo e contínuo, estendidos no tempo e no espaço, como “História do futuro”, no pavilhão da Fundação Bienal São Paulo. Soma-se a esse desafio a relação com o discurso curatorial e a presença no espaço expositivo de outros trabalhos de 158 artistas que participarão da 29a edição. Nesse sentido, quais seriam as estratégias artísticas e curatoriais para a apresentação de trabalhos como esses?
Vale lembrar que Machado já participou, em 2009, da Bienal do Mercosul, dentro de uma curadoria denominada “Desenhos das ideias”, e, em 1987, da 19a edição da Bienal de São Paulo.