Dobras do tempo
Como transmitir experiências já realizadas, das quais talvez não tenhamos acesso ou possibilidade de verificação, e ainda manter o potencial de interesse e significação deste processo de comunicação? Ambas as apresentações deste encontro, entre Santiago Garcia Navarro e Carla Zaccagnini, traziam um certo sentido de incompletude e narratividade que interessava como potencialidade para a abertura de novos diálogos e leituras. A mediação criada pela fala do escritor e da artista (qualidades que pareciam porém estar presente em ambos) criavam uma situação singular: no ato de comunicar e mediar os seus próprios processos e produções, criava-se uma segunda experiência de sobreposição de narrativas, tempos e lugares que atualizavam aqueles processos e ainda criavam novos momentos e sentidos.
Santiago Navarro inicia apresentando o projeto Final de Temporada, projeto em desenvolvimento definido por ele como um ensaio expositivo literário, cujo foco reside na exploração de certas iconografias da cidade de Mar del Plata. O ensaio de Santiago era composto de uma série de trechos e fragmentos de obras de diversos tipos, elementos iconográficos que possuíam um poder evocativo sobre aquela realidade, sem constituírem nenhuma menção explícita sobre a mesma. Santiago destacou que o projeto foi sendo desenvolvido lentamente ao redor de seu interesse por situações que estivessem em uma espécie de “fora de campo” e que permitissem uma forma de atenção ampla sobre aquele contexto, ativando possíveis estados reflexivos sobre o mesmo.
Segundo Santiago, Mar del Plata possui um lugar importante no imaginário argentino ligado ao verão, cuja função fundamental como balneário se constituiu juntamente com o surgimento da noção de verão como invenção social. Santiago apontava para a cidade como um contexto criado para encarnar certas experiências ligadas ao veraneio, dando forma a um imaginário de verão através das projeções de identidades sobre o território, que ao fixarem-se como construções urbanas e estruturais perduram até hoje. A dicotomia entre os movimentos demográficos das temporadas de verão e inverno que caracterizam também a cidade guiavam uma observação sobre alguns efeitos colaterais que geravam fenômenos de saturação icônica no tecido urbano. Esta atenção à dimensão construída, seus respectivos usos e a produção de modos de vida geravam leituras destes enquanto índices culturais, antropológicos e sociais. O inverno real, caracterizado ali como um vazio urbano temporário, era contraposto à saturação do verão, compondo um vasto ciclo de fluxo e refluxo de situações sociais e signos urbanos.
Neste contexto interessa a Santiago rastrear uma imagem: a de Mar del Plata invernal. Esta é uma imagem de difícil acesso, dupla, sobreposta e mesmo perdida. Para Santiago não importa referir-se ali a um tema explícito, mas sim ir em busca de uma idéia e de uma imagem que, sabendo não existir exige sua própria reconstrução, e cujo resultado configura a própria constituição de uma mensagem ligada a este ato. Santiago aponta para uma espécie de revisão histórica e social dos desenvolvimentos estruturais e subjetivos que criaram esta situação de sobreposição entre os imaginários de verão e inverno da cidade, configurando sua dupla condição. Integram sua pesquisa diversos aspectos narrativos de um imaginário de classes contraditório que se torna visível apenas nos interstícios e fragmentos de obras e iconografias, as quais contam com imagens de mansões, chalés, pequenos hotéis populares e edifícios comerciais, direcionando-se também a registros de fluxos históricos e turísticos que se conectam a estórias locais.
Final de Temporada constitui-se como a reinterpretação de produções visuais, teatrais, arquitetônicas, audiovisuais e textuais de múltiplas proveniências, informadas por e a partir da noção de inverno mas produzidas na cidade balneário. O projeto propõem-se como a reconstrução de uma paisagem urbana e antropológica, ao mesmo tempo real e mental que estabelece um certo tipo de ‘dobra temporal’ que aborda reflexões e comparações visuais informadas por um olhar sobre uma realidade que toca, sem ser totalmente explícito, diversas formas de registro cultural evocativas de uma ambígua realidade social.
Em seguida, Carla Zaccagnini inicia sua apresentação, pontuando que seria a primeira vez que falaria sobre uma série de trabalhos que seriam exibidos ali através de imagens e registros audiovisuais. Carla apresenta e descreve os processos de um conjunto de trabalhos e projetos realizados no Brasil e também em outros paises, nos quais as noções de bifurcações e encruzilhadas informavam sua produção. Ela explica que ‘bifurcação’ era assumida como uma situação na qual duas coisas que deveriam ser iguais se mostram diferentes; e ‘encruzilhada’ como o momento em que dois elementos aparentemente diversos mostram que de algum modo obedecem a um mesmo princípio. Estas noções configuravam segundo Carla, momentos de separação e justaposição que evidenciavam seu interesse por aspectos da linguagem, pelo processo como forma e ato gerador de experiências que se configuravam posteriormente como obra, porém procurando manter indícios daquela situação anterior. Os resultados destes processos de trabalho situavam-se entre os limites do registro, da comunicação de uma experiência processual e de um diapositivo visual finalizado, cujos conteúdos e resultados apresentavam característica evocativas de uma situação. Vídeos, imagens fotográficas e processos conceituais assim como um sentido de narrativa visual formavam os campos de produção de seus projetos. Carla apontava nestes um interesse pela possibilidade de atualização do pensamento sobre as idéias de repetição e diferença, que geravam proposições e experimentações estruturadoras de certos trabalhos e situações expositivas.
Carla pontuou ainda que a idéia da impossibilidade de uma repetição ou representação fiel às experiências reais começa a informar cada vez mais seu processo de trabalho. Tornava-se cada vez mais importante construir as perguntas referentes ao trabalho de forma lenta, no decorrer dos processos e experiências pessoais, geradores dos projetos, obras e registros que ao carregarem um caráter quase indiciário pareciam atuar como agentes ativadores de formas de comunicação tanto visuais quanto textuais. Neste momento ela identifica de forma ainda mais clara sua relação com o texto como forma de articulação de idéias e trabalhos, colocando-o muito próximo (através de uma noção de eco) de certos trabalhos. A partir deste momento Carla procura algumas aproximações com o projeto de Santiago, refletindo sobre certas possibilidades híbridas de atuação e produção, um lugar não definido e por este motivo rico em potencialidades de atualizações: um espaço flutuante situando-se entre a curadoria e a literatura. Este ato de estar entre situações interessava a ela como um local fértil e de grande potencial para a produção artística.
Ao final das apresentações e decorrente discussões, a sensação de comunicação duplicada e de possível atualização do passado, talvez tenha sido uma das características mais marcantes dessas falas. As pesquisas de Santiago Garcia Navarro e Carla Zacagnini parecem, de certo modo, seguirem dinâmicas e lógicas ligadas às noções de relato, memória e transmissão recodificada de fatos e experiências que originam-se nas bordas da história. E estas exploram os percursos e facetas pessoais que entrecruzam-se a fatos coletivos, e que no momento em que são retransmitidas e processadas em situações de quase re-encenações, fazem emergir as potencialidades (não literais) do sujeito enquanto narrador.
Carla Zaccagnini
"Bravo-Radio-Atlas-Virus-Obra" 2009/10
Registro en video realizado durante las horas de navegación de la travesía interoceánica del canal de Panamá, en dirección Atlantico-Pacífico, entre las 17hs del 27 de julio del 2009 y las 13hs del día siguiente; pintura sobre pared. Duración 10h45'
Santiago Garcia Navarro
Projeto “Final de Temporada” (em progresso)
Foto: Thomas Locke Hobbs