Entre empatias e alteridades: Olafur Eliasson a partir de Karim Aïnouz
17º Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil - 04/10/2011
“... numa cidade entulhada e ofendida, pode, de repente,
surgir uma lasca de luz, um sopro de vento.”
O breve encontro com Karim Aïnouz, no SESC Pompéia, durante o 17º Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil foi um destes momentos importantes que problematizam e iluminam certos lugares de reflexão em torno do campo das artes. A apresentação por Solange Farkas, diretora geral do evento, deixou claro o significado desta mesa, quando esta apresentou Aïnouz como “um dos nossos grandes nomes do cinema contemporâneo brasileiro”. Atribuição facilmente compreendida na medida em que se percorre sua premiada filmografia, bem como outros lugares por ele assumidos como diretor, roteirista e pesquisador. No entanto, Aïnouz ressaltou um outro lugar de sua trajetória, importante para muitas das questões por ele apresentadas: um olhar que lhe é próprio, pela sua formação de arquiteto e urbanista. Este, certamente, foi um dos pontos chaves da sua fala, ao apresentar a aproximação que vem tendo, a convite do festival, com o artista dinamarquês Olafur Eliasson, tema desta mesa.
O artista dinamarquês Olafur Eliasson é o grande convidado desta edição do SESC_Videobrasil, sendo esta a sua primeira exposição individual na América Latina. Com obras em três importantes instituições culturais – SESC Pompéia, SESC Belenzinho e Pinacoteca do Estado de São Paulo –, Eliasson reeditou algumas de suas obras passadas como: The New York City Waterfalls (2008), no SESC Pompéia, numa escala que poderia ser chamada de doméstica frente à suntuosidade da obra montada sob a Ponte do Brooklin, e Take your time (2008), no centro da Pinacoteca. Além destas reedições acomodadas em espaços brasileiros, Eliasson projetou obras novas, como o Sua cidade Empática (2011), realizado em parceria com Aïnouz, um dos temas deste encontro.
A aproximação de Aïnouz com a obra de Eliasson partiu de um convite da curadoria do evento para que o cineasta realizasse um documentário sobre a obra do artista dinamarquês, exposta no Brasil. Durante o evento, Solange Farkas explicou que este trabalho fará parte da série Videobrasil Coleção de Autores, que vem sendo produzida ao longo das últimas edições do festival e será lançado no início de 2012. No entanto, como a diretora fez questão de frisar, trata-se de um filme de Aïnouz sobre a obra de Eliasson e não de um documentário. Questão que já problematiza certos lugares de gêneros cinematográficos, bem como organiza uma narrativa em torno da produção de Aïnouz. Segundo ele, muitas questões se colocaram a partir deste convite e são elas que vêm organizando este seu trabalho e, ainda, que serviram para nortear sua fala, neste encontro no SESC Pompéia.
Como olhar para a produção de um autor que trabalha com a noção da experiência sensorial e, consequentemente, como apresentar esta experiência ao sujeito num formato cinematográfico, num suporte que enquadra, recorta e apaga? Ou seja: como a experiência do sujeito sobre a obra de Eliasson pode ser captada pela lente de um câmera, num suporte que encadeia imagens e organiza uma narrativa ao longo de um tempo? Segundo Aïnouz, estas foram algumas das perguntas colocadas por ele neste início de realização deste trabalho. A partir de então, detalhou alguns encontros e pequenas reflexões quanto ao desenvolvimento de sua obra. Destas reflexões compreendem-se dois movimentos distintos que parecem nortear seu trabalho, como também nortearam sua fala durante o evento.
Empatias
O primeiro movimento desta aproximação refere-se à empatia entre o cineasta e o artista, bem como entre as suas obras. Primeiramente, Aïnouz relatou a dificuldade de contato em relação ao artista dinamarquês, muito por conta de incompatibilidades de agendas, o que pode ser compreendido, no caso de Eliasson, através do volume de obras que vem desenvolvendo em uma série de instituições, por diversos países. No entanto, esta dificuldade se resolveu a partir de alguns breves encontros e de uma relação entre suas obras, o que foi determinante para que pudessem compreender certas congruências e afeições correlatas. O que acabou por revelar com clareza um cuidado especial em torno da relação construída pelo espaço produzido pela obra, o espaço ocupado e a maneira como as pessoas se relacionam com a obra de Eliasson. Neste sentido, o corpo, segundo Aïnouz, foi reconhecido como grande motivo correlato entre suas obras e, finalmente, o espaço sentido por ele ganhou também sua relevância. Como a obra opera o corpo? E como o corpo opera a obra?
Foi neste ponto em que a arquitetura e o espaço das cidades – a urbanidade – ganhou relevo. Se obras anteriores de Eliasson propunham repensar o espaço urbano das cidades através da experiência do corpo de seus habitantes, a preocupação de Aïnouz passou a gravitar, segundo ele, em torno da leitura que o dinamarquês faria da cidade de São Paulo. Como certas categorias como o uso, a ocupação, a legislação, o espaço público e o espaço privado da cidade de São Paulo poderiam ser apreendidos pelo artista e como esta apreensão poderia propor novos projetos? Desta forma, o cineasta brasileiro propôs traduzir a cidade de São Paulo, que, segundo ele, funciona, mesmo que à base de trancos.
A tarefa de traduzir esta cidade é certamente ingrata seja para artistas, arquitetos ou escritores dada a sua complexidade. Neste ponto, a título de nota, parece bastante problemático apresentar esta cidade como algo que funcione. Fica a dúvida de onde Aïnouz pode ler esta questão. Mas, por outro lado, a escolha do Elevado Costa e Silva – o Minhocão – como fragmento capaz de sintetizar ao artista dinamarquês a complexidade e a dialética desta cidade, parece bastante acertada. Para o cineasta, importa um fragmento ou um espaço capaz de implodir as diferenças entre espaço público e espaço privado, revelando uma natureza própria às cidades do hemisfério sul. O que parece tratar de uma boa provocação, em seu sentido propositivo.
Tendo este objetivo, o cineasta brasileiro relatou o seu trabalho de coleta de uma série de imagens abstratas em plano fixo deste objeto incrustado no centro da cidade de São Paulo. Captando imagens em diferentes momentos e usos (noturnas, diurnas, carros em trânsito, espaço de lazer), Aïnouz criou o que podemos chamar de uma coleção de registros – um álbum de possibilidades, como ele chamou –, que construíam um sentido sobre aquele espaço e, finalmente, sobre esta cidade. Material este que foi a base para a obra de Eliasson Sua cidade Empática (2011), ou seja: uma obra realizada pelo dinamarquês sobre uma coleção de imagens, um álbum de possibilidades construído por Aïnouz. Este o grande resultado desta empatia entre os dois autores.
Alteridades
O segundo movimento entre os dois artistas refere-se a uma alteridade. A primeira diferença trata, segundo o cineasta, de um gosto pelo figurativo que não se encontra na obra de Eliasson, muito mais próxima do abstrato, de um bem acabado, matemático e científico. Neste ponto, a inserção do Minhocão como elemento simbólico capaz de representar a cidade de São Paulo revela muito de interesses de Aïnouz e, ainda, muito da estrutura narrativa por ele desenhada para construir a obra cinematográfica sobre o dinamarquês. Obra que fará parte da série Videobrasil Coleção de Autores. Aos moldes de Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, o cineasta indicou que este filme se dará a partir de fragmentos, de pequenos poemas, estes organizados em torno do que seriam os ruídos presentes nas obras, como que representando um local, um brasileiro, contaminando a obra de Eliasson, já que para ele, este filme não pode ser belo e liso, mas que o belo se dê através do ruído. Aïnouz apontou, como um dos seus grandes interesses, que pretende “sujar” esta precisão assustadora presente na obra do dinamarquês.
A perspectiva de Eliasson parece mesmo muito mais científica do que a de Aïnouz. Uma de suas obras expostas no SESC Pompéia opera sobre a reação dos olhos – da visão – à medida em que se caminha entre as gelatinas de cores primárias, dispostas como um labirinto. O verde, por exemplo, se constrói no interior do corpo. Ele não existe fisicamente, mas se faz na medida em que, ao caminhar, ao se experimentar a obra, sobrepomos uma gelatina azul com outra amarela. Neste ponto, os Penetráveis de Hélio Oiticica foram lembrados pela platéia bem como por Solange Farkas como referência explícita nesta obra. Um cuidado que Eliasson parece ter claro na realização de sua obra, visto que disse, recentemente, conhecer bastante a obra de Oiticica: “Sim, conheço bastante. Creio que em seus escritos ele falou do efêmero de maneira interessante, pois para ele efêmero é algo que se internaliza, não um local que se atravessa. Efêmero é um lugar dentro de espaço. Isso é muito interessante, pois os neurocientistas Francisco Varela e Humberto Maturana escreveram que algo efêmero também coloca questões éticas e não é um conceito moderno neutro, mas uma fenômeno performativo. Acho que o Oiticica tem esse componente. E é sempre perceptível que os trabalhos dele, quando estão cheios de gente, são incrivelmente bons, de alguém que percebeu que a interação abre novas dimensões.”
Esta citação de uma fala de Eliasson abre espaço para se pensar numa grande alteridade em relação à proposta de trabalho apresentada por Aïnouz. Esta precisão assustadora, que o cineasta brasileiro tem vontade de sujar – o que ele fez questão de frisar durante sua fala –, parece se ligar não a uma preocupação com a construção de algo absolutamente organizado, controlado. Se as obras se enquadram e se organizam desta forma, a resposta para estas escolhas parece se encontrar na questão do interior do corpo, como apontado por Eliasson, quando citou Oiticica. É neste ponto que a questão ética, que se revela no trabalho do dinamarquês, parece tomar forma. Trata-se da tomada de consciência do corpo como meio de reflexão sobre a espécie, sobre o humano. Trata-se do papel ético da arte em relação ao futuro do humano, à encruzilhada do futuro da espécie. Como o próprio Aïnouz fez questão de frisar em sua fala, a experiência que teve ao atravessar o espaço construído por uma das obras expostas no SESC Pompéia – o que ele chamou de caixa preta de fumaça branca – foi um sentimento de medo, talvez, da própria morte.
Esta relação à questão da experiência como meio de tomada de consciência do corpo, na obra de Eliasson, fica evidente ao se visitar o site do dinamarquês. Dentre muitas delas, destaca-se o desenvolvimento do trabalho “ATS satellite film of the earth rotating / transmitted to television in 1967”, a primeira transmissão para televisão de uma sequência de frames da Terra, como também as “Cartographic series”, uma espécie de arquivo de imagens sobre a própria Terra. A questão do futuro do homem, bem como o seu meio ambiente, sugere um tema compartilhado por muitos artistas a partir do momento em que a Terra é colocada em perspectiva através de um olhar projetado – através de um satélite. Objeto científico que Eliasson compreender como um espelho que mira o planeta. Espelho que é elemento frequente em suas obras.
Finalmente, a alteridade entre as perspectivas artísticas dos dois autores parece se desenhar no que Aïnouz chama de ruído do espaço que interfere na obra. Para o cineasta, a arquitetura de Lina Bo Bardi gera ruído no que considera liso. O lago projetado cruza a obra e desorganiza o espaço. Os vãos entre as telhas projetam raios de luz que interferem na obra. No entanto, o que para Aïnouz é ruído da obra, parece ser a própria obra para Eliasson. Segundo ele: “…o Sesc Pompeia de Lina Bo Bardi é tão especial e generoso, que realmente quero que meu trabalho possa estar numa correspondência clara a essa brilhante arquitetura”.
Lina Bo Bardi
Se há uma correspondência entre a obra de Eliasson e Lina Bo Bardi ela, possivelmente, se encontra na perspectiva da tomada de consciência. Se para Eliasson ela se encontra na experiência do humano, na obra da arquiteta, esta questão parece estar gravada na própria superfície do edifício. Gravada como que no ruído visível e tátil da arquiteta, quando Lina deixa que as formas de madeira marquem a volumetria prismática da caixa de concreto armado. É ali e em outros que se pode tomar consciência do trabalho daqueles que realizaram a obra, dos operários que ajustaram as formas e lançaram o concreto. É na manutenção de uma história, de uma vivência, de uma “alegria” – como prefere a arquiteta – que realizou o SESC Pompéia. Não na imposição de um sobre o outro.
Estas lugares ocupados entre empatias e alteridades em relação às obras e perspectivas de Aïnouz e Eliasson são potenciais forças geradoras de energia, para se pensar questões ligadas à arte. Mesmo que em certos momentos existam aproximações e em outros distanciamentos, é certo que destes lugares pode-se criar algo extremamente potente como trabalho cinematográfico. O que parece em gestação nas mãos de Aïnouz para a série Videobrasil coleção de autores.
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São Paulo, 19 de outubro de 2011.
Relato por Eduardo Costa
RUBINO, Silvana; GRINOVER, Marina. Lina por escrito: Textos escolhidos. São Paulo: Cosac Naify, 2009. P.149.
Entrevista com Olafur Eliasson. Folha de São Paulo – Ilustrada 20.12.2010 (http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/847705-leia-integra-da-entrevista-com-olafur-eliasson.shtml).
Quanto a questão do pós-humano, ver: SANTOS, Laymert Garcia dos. Demasiadamente Pós-Humano. In: Revista Novos Estudos – CEBRAP. Nº72. São Paulo. Julho de 2005.
É preciso aqui destacar que a série “Horizont” (2002), também uma espécie de arquivo de imagens da Terra, foi apresentada, em agosto deste ano, durante a exposição Coleção de Fotografia Contemporânea da Telefônica, organizada pelo Instituto Tomie Othake.
Dentre muitas obras, destaca-se o documentário “Out of the present” (1999), de Harum Farocki e Andrei Ujica