Reflexões sobre o conceito de patrimônio e processos de patrimonialização
Ao iniciar sua palestra, a professora Regina Abreu explicou que, no final do século XVIII, o conceito de patrimônio passou a ser visto como um bem nacional, articulado no sentido de proporcionar o fortalecimento do Estado moderno. Contudo, naquele momento, nem tudo era considerado patrimônio, mas apenas o que era estimado como belo ou como parte da arte e que, principalmente, representasse a ideia nacionalista. Os museus históricos e pedagógicos foram constituídos nesse momento. É interessante observar que as coleções salvaguardadas por estas instituições representam uma forma positiva de nacionalismo e por esse fato ficam de fora os possíveis conflitos existentes no interior dos grupos sociais, ou seja, a ideia de preservação do Patrimônio Histórico era de fundamental importância para o estabelecimento do sentimento nacional. No entanto, o modelo positivista de interpretar a história ficou caracterizado pela forma romântica a favor do Estado, com seus heróis, batalhas e grupos sociais hegemônicos. Sendo assim, os bens patrimonializados refletiam uma clara exclusão de parte dos grupos sociais - os negros, índios e pobres de uma forma geral. Segundo Pedro Funari, nesse momento histórico “o sistema educacional e seus auxiliares, bem como os departamentos pedagógicos em museus, foram definidos, tradicionalmente, como importantes ferramentas para a reprodução das relações sociais, transmitindo um saber verticalizado, reforçando ideologicamente estruturas hierárquicas e reproduzindo desigualdades sociais e culturais (1993, p.51)”.
Em outras palavras, patrimonializava-se a história dos vencedores. Caso os demais grupos sociais fossem abordados, assumiam uma caracterização secundária, apenas como um pano de fundo da história da pujança econômica e social de uma parte da sociedade. Como exemplo, podemos citar a patrimonialização da história da expansão cafeeira. Quantas vezes ao visitar os museus históricos e pedagógicos não observamos a vestimenta da época dos senhores do café, o maquinário, os costumes, mas não encontramos presente nenhum retrato do conflito entre escravos e proprietários da fazenda de café, ou mesmo dos trabalhadores imigrantes? O que podemos observar é que esses espaços propunham uma visão positiva da expansão cafeeira, mas deixava de lado os outros atores sociais que estiveram presentes nesse processo. Como bem define Funari (2001), no Brasil houve uma tendência a não patrimonializar o legado africano e indígena, tampouco o dos subalternos.
Nesse sentido, o contexto apresentado nas conferências propostas pelo I Encontro Paulista questões indígenas e museus e o III seminário Museus, Identidades e Patrimônio Cultural foi muito importante para compreendermos a ampliação do debate e as alterações conceituais que foram ocorrendo no que compete ao patrimônio e à visão da nova museologia.
Feita a reflexão preliminar do contexto histórico, passamos às contribuições da mesa redonda intitulada Patrimônio: ampliação do conceito e processos de patrimonialização. Essa mesa proporcionou um entendimento da construção teórica do conceito de patrimônio e, ao mesmo tempo, a ampliação do debate acerca do processo de patrimonialização. Foi composta pela professora doutora Regina Abreu, por representantes indígenas Kaingang, Krenak e Terena, tendo a mediação feita pela professora doutora Maria Cristina Bruno.
Regina Abreu comentou sobre a questão patrimonial e o papel que vem sendo desenvolvido pelos diversos agentes sociais no que compete o reconhecimento do patrimônio e o que deve ser patrimonializado. Para a pesquisadora, o patrimônio tem de ser observado como uma questão rica em complexidade e de múltiplas faces. Nesse sentido, a sua explanação trouxe grandes contribuições para a compreensão não só do quadro conceitual acerca do que é patrimônio, mas também metodologia para definir o conceito e também o que deve ser patrimonializado, ultrapassando a problemática dos bens tangíveis perpassando pelos intangíveis.
Segundo Bruno, é possível observar que, na atualidade, vêm ocorrendo transformações significativas na sociedade sobre o entendimento do que é patrimônio cultural. Essas mudanças têm possibilitado uma ampliação conceitual e aprofundamento de conteúdos, pois as transformações em curso estão associadas à mudança na vertente da pesquisa das instituições museológicas e isso ocorre graças ao empoderamento por parte dos agentes sociais e no maior uso e qualificação das referencias culturais.
Para Abreu, está se construindo uma nova forma de compreensão a respeito do patrimônio, explicitando a presença de diversos agentes, notadamente novos sujeitos coletivos como os povos indígenas, que passaram a interagir com as políticas públicas e as instituições governamentais.
No quadro geral de transformações, a Unesco terá um papel importante nesse processo de patrimonialização dos bens culturais, pois ela surge após a 2ª guerra Mundial e celebra a defesa da riqueza humana resultante da diversidade cultural.
O contexto da guerra, segundo Boaventura de Souza Santos (2002), que por sua vez cita Walter Benjamin, infringiu sobre a constituição de uma concepção de conhecimento, como é possível observar no trecho abaixo:
[...] a primeira guerra mundial tinha privado o mundo das relações sociais através das quais as gerações anteriores transmitiam um mundo novo, dominado pelo desenvolvimento da tecnologia, um mundo em que mesmo a educação e o conhecimento tinham deixado de se traduzir em experiência. Tinha, assim, emergido uma nova pobreza, um déficit de experiência no meio de uma transformação desenfreada, uma nova forma de barbárie (1972, p.215). “A conclusão do ensaio inicia-se assim, com as seguintes palavras: Tivemos vezes de depositar na casa de penhores por um centésimo do valor, para receber as moedas sem préstimos da atualidade” (BENJAMIN, 1972, p.219).
As colocações de Benjamin são interessantes na medida em que esse contexto proporcionará que órgãos como a Unesco passem a ter como prerrogativa o rompimento com os reflexos da guerra e em proporcionar uma amplitude do entendimento da necessidade de se preservar o patrimônio como o reflexo daquilo que nos une, ou seja, da cultura enquanto bem que é diverso, mas ao mesmo tempo universal.
Mas, de fato, somente no ano de 1989 é que esse quadro se alterou e se reconheceu que há diferenças importantes que torna o mundo menos homogêneo, passando-se a olhar para as outras culturas. Essa leitura foi proporcionada pelo reconhecimento de que a uniformidade pode ser perigosa. Foi preciso exacerbar as diferenças, respeitando a diversidade para evitar que se criasse uma supremacia de uma cultura sobre outra.
Diversos grupos passaram a atuar como agentes sociais de transformação. Entre eles estão as organizações não governamentais, o Estado e os movimentos sociais. A reivindicação participatória está presente nesses diferentes agentes sociais, mas a patrimonialização das diferenças gerou um grande acervo de patrimônio cultural e a Unesco passou a intervir novamente junto aos agentes sociais acerca desses bens culturais. Com a convenção de patrimônio cultural, material e imaterial, diversos países passaram a colocar em prática as prerrogativas da política para os bens culturais.
Diversos casos em que há uma maior adesão por parte dos agentes sociais permitem a discussão e a implantação de programas mais representativos, o que torna mais profícua a valorização do patrimônio cultural e há uma maior horizontalidade na tomada de decisões a respeito de sua preservação.
Regina Abreu explicou que a questão do patrimônio é complexa, assim como a questão do museu. Para entender o grau de complexidade sobre os conceitos, a pesquisadora retomou a ideia de como surgiram os museus e com qual finalidade. Na sua concepção, ao longo dos anos houve uma desnaturalização dos bens de família, onde se passa a exacerbar a concepção de uma identidade coletiva para esses bens patrimoniais. Esse fator é tributário das alterações ocorridas na Europa, em especial na França, pois nesse momento histórico tudo passava a ser compreendido e identificado dentro de uma concepção nacionalista, tirando qualquer caráter de particularismo das coleções privadas.
No Brasil, como afirma José Ribamar Bessa Freire, esse processo de valorização das diferenças foi possibilitada pela Constituição de 1988, pois grupos populares passaram a ter direitos constituídos em lei e as políticas passaram a ser apropriadas pelos diferentes grupos sociais e as organizações não governamentais, que começaram a ser mais atuantes na sociedade. Anteriormente, essa relação era verticalizada e o Estado escolhia o que haveria de ser patrimonializado, mas, depois da aprovação da nova Constituição, os grupos sociais ocuparam estes espaços e contribuíram para essas tomadas de decisões.
Segundo Abreu, a partir dos anos de 1980, com o fortalecimento dos movimentos sociais e a redemocratização do país, o campo do patrimônio vem encontrando extrema ressonância em grupos sociais que antes eram refratários às iniciativas de agências patrimoniais, entre eles os povos indígenas. A análise destas experiências certamente traz elementos para oxigenar o debate em torno do campo do patrimônio, além de fomentar ações e práticas singulares capazes de ampliar a participação de grupos sociais antes excluídos do contexto nacional. Como exemplo, Abreu citou em sua palestra a professora Dominique Gallois, expondo que a mesma realizou assessoria antropológica ao Programa Wajãpi, com apoio da gestão do Iepé.[1]
Será mesmo que as novas políticas, como o programa nacional de patrimônio imaterial, mantêm a singularidade?
Atualmente, é um determinado grupo social que pede para patrimonializar seus bens culturais. Antes, não havia interesse, pelos órgãos de preservação do patrimônio, que este processo acontecesse. O que se percebe é que na atualidade há um interesse maior nestes processos participativos. Regina Abreu, ao citar Gallois, comentou que os jovens Wajãpi querem ir para a cidade, mas, com a patrimonialização de sua cultura, os mesmos reincorporam a tradição cultural e a valorizam. O grupo indígena em questão começa a discutir em seus livros o conceito e o significado de suas imagens. Abreu, ao citar Gallois, explicou que a apropriação, por parte dos grupos sociais, de uma nova referência conceitual a respeito do patrimônio, permite o entendimento do que é mais importante nesse processo, não apenas constituir o patrimônio, mas, também se construir como patrimônio.
Com o objetivo de problematizar o debate, Maria Cristina Bruno explicou que a conferência evidenciou o papel da sociedade brasileira no que compete às questões patrimoniais e museais. E esse momento foi importante, tendo em vista que permitiu que as lideranças indígenas pudessem se colocar no debate e se posicionarem sobre o papel dos museus para a sua efetiva representação na exposição etnográfica existente nos museus.
Ao colocar essas questões, Abreu explicou o quanto era importante a presença indígena naquela mesa. Assim, Marília Cury convidou os representantes indígenas da região para compor a mesa, dos grupos Kaingang e Krenak da Terra Indígena Índia Vanuíre.
A participação de representantes destes grupos indígenas foi de grande importância na medida em que se pôde pensar o que se espera com a patrimonialização e musealização da cultura desses grupos. Se eles de fato se sentem representados nas expografias museais, ou mesmo como eles entendem essa patrimonialização. Assim, os depoimentos que se seguiram foram elaborados no sentido de lançar um pouco de luz na reflexão sobre as questões da representação social, a partir da nova museologia, bem como ampliar o debate a respeito do conceito de patrimonialização cultural, agora sendo observados sob a perspectiva dos grupos étnicos presentes.
A professora Lidiane Damaceno, de descendência Krenak e Kaingang, comentou que nas conversas com os avós e com a mãe ela faz um levantamento da cultura destes grupos. Argumentou que, muitas vezes, os avós não queriam falar sobre sua história e cultura, pois sofreram muita violência ao longo dos anos passados. Seus avós Krenak foram trazidos de Minas Gerais para as terras de São Paulo. Já os avós Kaingang, foram aldeados, inicialmente, na região onde hoje se encontra o município de Promissão. Depois foram trazidos para as atuais terras indígenas. Comentou que eram cinco clãs, uns dominantes e outros dominados e que todos foram colocados juntos pelos agentes do governo, sem levar em conta que havia divergências entre os grupos. Só mais tarde foram separados.
Lidiane Damasceno enriqueceu o debate ao afirmar que acredita que o levantamento da cultura pode ser feito por meio da cultura material. Afirma que o indígena faz parte do patrimônio brasileiro e que “nós somos museus vivos do nosso Brasil”. Concluiu dizendo que seus avós falam com dor sobre seu povo e sua história e cita como exemplo que, no passado, calçar sapatos e vestir roupas não indígenas fez levar muita surra.
A professora Luciane Melo, também de descendência Kaingang e Krenak, disse que o passado é difícil e que o resgate da cultura é importante para preservá-lo. Em 1997 e 1998 seu povo conseguiu retomar a cultura por meio de pesquisa e conversa com os mais velhos e sábios da aldeia.
Já a professora Simone Rodrigues, da Terra Indígena Icatú, explica que o trabalho que vem sendo realizado no município de Lins, SP, com a construção do museu histórico e arqueológico, está sendo realizado com a participação dos representantes da comunidade indígena. De igual forma, todos os representantes indígenas presentes na mesa de debate esclareceram que deveria ser reservado nas aldeias um espaço para recolherem suas memórias e mostrarem sua cultura.
O professor Adriano Cesar Rodrigues, também representante Kaingang da Terra Indígena Icatú, explanou sobre a importância de preservar a cultura, principalmente a dança Kaingang, pois lembra que não há como generalizar e homogeneizar esta cultura, já que essa tem sua particularidade e reflete uma dança para cada ocasião. Para completar disse que “somos iguais, mas a cultura é diferente, com pensamentos diferentes”.
Um fato de grande relevância a nosso ver é que a cultura ao longo do tempo foi ressignificada por esses grupos. Eles reconhecem a importância do resgate cultural e a valorização de sua memória histórica, transmitida por meio da oralidade na relação com os mais velhos, sem, contudo, negar o avanço da sociedade atual.
Por fim, entendemos que a maior contribuição dos povos indígenas presentes no evento foi reconhecer que a preservação da cultura e da identidade também se dá por meio da patrimonialização. Este processo contribui para a continuidade de sua existência cultural e fortalece a resistência social ao fortalecer aspectos da diversidade presente na organização dos povos indígenas no oeste do estado de São Paulo.
Para nós, do grupo de Arqueologia GEA/CEIMAM/ARAPORÃ, foi de especial importância o posicionamento da mesa frente às questões da patrimonialização da cultura, principalmente porque a fundamentação do grupo preza sempre pela constituição de uma identidade com o patrimônio, pois entendemos que a patrimonialização, seja do ponto de vista pré-colonial ou colonial, tem que ter por princípio a constituição do espaço da memória, da historia, da identidade e de sua cidadania.
Para nóssão duas as perspectivas para a preservação. A primeira está associada à concepção de que os materiais nos remetem ao passado e que, portanto, fazem parte da história e da memória daquela comunidade. E a segunda está associada a nossa contemporaneidade, tendo em vista que são encontradas na paisagem no presente. O que nos coloca uma questão pertinente, a da necessidade de se preservá-la enquanto espaço da construção da memória e do ambiente.É necessário edificar e solidificar essa relação de pertencimento e principalmente compreendê-los como lugar de todos evidenciando seu caráter público. Neste sentido, é importante ressaltar que a sensibilização dos munícipes por meio de instrumentos educacionais que estimulem a valorização de seus bens patrimoniais, tanto materiais como imateriais e ambientais, podem contribuir para aprimorar a gestão do patrimônio local, fortalecer a memória de seu povo e consolidar as idéias presentes no âmbito das políticas públicas em desenvolvimento no país.E épreciso valorizar o conhecimento dos sujeitos, assim como a sua produção cultural. E isso possibilitará uma relação de pertencimento e identidade com os bens patrimoniais e culturais e a consciência de seus direitos, como sua inserção critica na realidade. Nossa vertente de ação tem por objetivo a criação de uma relação de pertencimento com os bens patrimonializados. Nesse sentido, a nosso ver, a pesquisadora Regina Abreu e os demais membros da mesa trouxeram para a conferência uma análise fundamental, já que apresentaram a perspectiva de ação dos diferentes agentes sociais na questão patrimonial.
[1]“Plano integrado de valorização dos conhecimentos tradicionais para o desenvolvimento socioambiental sustentável da comunidade indígena Wajãpi do Amapá”. O plano foi aprovado pela Unesco no contexto do registro das manifestações culturais dos Wajãpi como patrimônio imaterial da humanidade. Terá boa parte de suas ações executadas pelo Programa Wajãpi/Iepé, em parceria com o Conselho das Aldeias Wajâpi - Apina, que já vêm desenvolvendo conjuntamente algumas de suas linhas de ação. Em associação ao Museu do Índio/Funai, ao Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da Universidade de São Paulo e ao Núcleo de Educação Indígena da Secretaria de Educação do Governo do Estado do Amapá, o Apina comporá um conselho consultivo que deverá sugerir supervisionar e apoiar todas as ações. Informações sobre os grafismos Wajâpi<http://www.institutoiepe.org.br/programas-de-trabalho/wajapi.html?showall=1> acesso 11/05/2012.
Referências bibliográficas
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