relato do painel 3: Pesquisa e prática interdisciplinares - estruturas de apoio nacional e internacional
Nem sempre a equação entre projeto artístico e modelos de financiamento tem como resultado um produto final e palpável, como uma obra de arte em um museu. Quando tratamos de iniciativas relacionadas a práticas interdisciplinares, no mínimo, devemos levar em conta as inúmeras variáveis que acompanham longos períodos de trabalho e o fato amplamente constatado dos tramites institucionais em providenciar recursos para uma etapa importante deste processo: pesquisa. Se as considerações da mesa do debate “Pesquisa e práticas interdisciplinares” não foram tão convidativas e estimulantes do jeito que eu esperava, é porque, em grande medida, seus participantes optaram pelo caminho comum do discurso oficial dos fazedores de políticas públicas.
De início, a mediadora Bronac Ferran, do Royal College of Arts, anunciou que a discussão seria tratada com base no “triângulo” entre arte, políticas culturais e pesquisa, e também sobre a necessidade de gerar novas equações que consigam responder a cenários diversos. A diretora do Arts and Humanities Research Council (AHRC), Susan Amor, falou muito brevemente sobre a proposta do AHRC em financiar pesquisas de “alta qualidade” e o apoio a projetos internacionais através de intercâmbios. Apesar das boas intenções, faltou à apresentação uma especificidade maior da prática e dos meandros sobre como os financiamentos são realizados[1].
Com o doutorado sobre o “vale eletrônico” no Brasil, localizado em Santa Rita do Sapucaí, Minas Gerais, o professor José Geraldo de Souza apresentou um estudo de caso sobre esta região. Seguiu por um longo panorama acerca da transformação industrial, tecnológica e educacional da cidade desde os anos de 1950. Embora o município tenha se beneficiado deste desenvolvimento tecnológico, o professor esclarece que a produção artística e cultural do município é, ainda, irrelevante em comparação com êxito das outras áreas de atuação.
Em contraste, Annette Wolfsberger expôs a iniciativa de financiamento de trabalho interdisciplinar por uma organização independente, a Virtueel Platform (Plataforma Virtual)[2], subsidiada pelo Ministério da Cultura e da Ciência da Holanda.
Criada como “instrumento de lobby para os media labs holandeses”, a Plataforma Virtual funciona como um mediador entre os as políticas públicas e àqueles que precisam de financiamento. “O governo holandês não quer decidir a política cultural do país”, diz Wolfsberger. “É por isso que existem diversas organizações para não haver uma influência direta.” Um dos principais ramos de subsídio da plataforma são as organizações de e-culture, um conceito retomado diversas vezes por Wolfsberger em sua apresentação, e que tenta expressar não apenas a direção de um novo rumo para as artes, como o interesse em mapear as transformações sócio-culturais dentro das propostas interdisciplinares. Wolfsberger cita projetos que foram subsidiados utilizando o e-culture de maneira inovadora e ultrapassam, segundo ela, as formas tradicionais, como o Killer TV [www.killertv.nl], uma televisão interativa online, e Couscous Global [www.couscousglobal.com], uma plataforma transnacional de discussão e de troca de experiências pessoais através de relatos e vídeos.
Tais, projetos, em especial o Couscous Global, parecem dialogar com algumas considerações feitas pelo professor Calvin Taylor, da Universidade de Leeds, e também um dos convidados da mesa. Quando ressalta a conexão direta entre sustentabilidade e localidade em tempos de globalização, Taylor acredita que projetos interdisciplinares devem ajudar as pessoas a aprenderem ou adotarem o que existe de interessante em outros contextos. No entanto, ele parece cético em relação à metáfora da rede como um arranjo social. “Redes não são necessariamente benignas, pois dependem das associações entre seres humanos. Elas podem se fechar e excluir, pois costumam juntar pessoas que refletem de modo parecido, e não necessariamente codificam o seu conhecimento. Em nossas discussões, precisamos saber como que as redes se responsabilizam perante os cidadãos.”
Destruição criativa e outras nuances sobre crítica e colaboração
O momento crítico da mesa veio a seguir, com as apresentações de Afonso Luz, Coordenador do Programa Cultura e Pensamento da Secretaria de Políticas Culturais do Ministério da Cultura, e o professor Calvin Taylor. Ambos enfatizaram o pensamento sobre políticas públicas dentro da atual conjuntura da crise econômica mundial. No contexto brasileiro, Afonso Luz observou que, na última década, a cultura foi dinamizada pelas exigências do mercado. Ao invés de atender as necessidades da população, as políticas públicas passaram “a atender as demandas da sociedade em função de pressões corporativas e interesses econômicos.”
Qual seria o cenário de atuação das práticas artísticas interdisciplinares no Brasil? Afonso Luz cita uma dualidade entre modelos de pesquisa e o mercado das obras de arte, insuficientes para se pensar em alternativas econômicas de financiamento, assim como o modelo de indústrias criativas e consultorias internacionais que, no mercado global, convertem inteligência e criatividade em produtos.[3] No caso brasileiro, o artista interdisciplinar ficaria, na visão do representante do Minc, com o trabalho de “construtor de soluções” e organizador de “produtos de comunicação”. “A criação estética ganharia um modo de reprodução social com alguma sustentatiblidade econômica.” Trocando em miúdos, arte e interdisciplinaridade ganhariam um papel de criar interfaces para o conhecimento, socializando-o através de “produtos”, não só pesquisa.
Nesse momento, fiquei pensando quais tipos de produtos podem ser esses? Mais do que gerar processos de trabalho, pesquisa aprofundada, documentação e estudo, o artista interdisciplinar ficará fadado a propor eventos e a estimular o consumo? Afonso Luz cita, por exemplo, o caso da videoarte brasileira, com duas décadas de pesquisa no Brasil, e a necessidade de se estabelecer uma nova dinâmica com a sociedade. Embora a videoarte possa até ser considerada um caso isolado, diminuir o peso de uma pesquisa em detrimento de um produto final pode levar a prática artística a lidar, cada vez mais, com prazos escassos, modelos burocráticos de seleção e curadoria e dinheiro apertado.
Calvin Taylor conseguiu fugir de todo um protocolo da representação institucional para falar de forma mais aberta e interessante sobre o tema do painel. Ele começou contando dois episódios pessoais, quando foi convidado para uma reunião para pensar um “parque de criatividade” para o setor financeiro em Leeds, tendo que lidar depois com a falência de um dos bancos do projeto e de um outro ser assumido pelo governo, e o convite oferecido pelo governo da Lapônia, com o intuito de revisar as suas políticas culturais, econômicas e tecnológicas. Estes dois convites o fizeram perceber que a crise global também bateu na “porta da nossa casa”, e que mais importante do que pensar em programas de subsídios para os próximos dez ou vinte anos em um país, valeria a pena restaurarmos o nosso sentido de confiança.
“O que podemos trazer para essa discussão é o conceito de Joseph Schumpeter sobre a ‘destruição criativa’.[4] Os ciclos econômicos são destrutivos nas oportunidades e nas capacidades, mas criam a demanda de uma nova forma de pensar. Em termos de políticas públicas, é aí que nos encontramos.” Em seus argumentos, Taylor parece centrar-se em alternativas e no caminho de novas idéias sobre o que os artistas podem fazer nos termos de um debate sobre a questão da segurança alimentar, meio ambiente e visões de um futuro menos catastrófico. Coletivos como os norte-americanos Critical Art Ensemble [www.critical-art.net] e subRosa [www.cyberfeminism.net], os dinarmaqueses do N55 [www.n55.dk] e uma de suas coalizões, o Learning Group [www.learningsite.info], o coletivo argentino Ala Plastica [www.alaplastica.org.ar], exposições itinerantes como Beyond Green: Toward a Sustainable Art[5] e projetos como Interações Florestais [www.terrauna.org.br/interacoesflorestais/IF.html], realizado em uma ecovila no interior de Minas Gerais, parecem sinalizar um passo fundamental para novas idéias, ao tratarem das relações entre arte, ciência, ecologia e práticas colaborativas através de um compromisso ético de se apontar problemas, formular questões e propor transformações conscientes.
Nesse ponto, duas considerações finais devem ser colocadas. A primeira em cima da pergunta de Taylor sobre o fato das artes serem ou não um sistema de inovação. Ao invés de delegar este trabalho apenas aos especialistas, me parece fundamental na pesquisa interdisciplinar as possibilidades dos artistas trabalharem no campo da ciência e da tecnologia não apenas da forma institucionalizada como muitos experts estão acostumados a fazer, mas através de incertezas e da valorização de processos de trabalho como “amadores”, tal como fazem coletivos como Critical Art Ensemble e subRosa. De modo geral, o amador resiste à especialização, mas também sabe que o relacionamento versátil com especialistas é importante para uma colaboração multidisciplinar, para reforçar novos conceitos, diálogos e idéias. Como diz a artista Claire Pentecost, é pelo status do artista como amador que coletivos como Critical Art Ensemble são capazes de apresentar assuntos importantes na esfera social da arte e da cultura, esclarecendo a transformação do conhecimento privatizado por cientistas.[6]
O segundo aspecto a ser considerado nas práticas interdisciplinares é a sua possibilidade de formular uma nova crítica institucional, de maneira a apontar na arte como a produção desse conhecimento é apropriada, para o bem e para ou mal. Seria algo próximo aquilo que Brian Holmes chama de “investigações extradisciplinares”: “A ambição extradisciplinar consiste em levar a cabo investigações rigorosas em áreas tão distantes da arte quanto finanças, biotecnologia, geografia, urbanismo, psiquiatria, o espectro eletromagnético etc. Produzir, nessas áreas, ‘o livre jogo das faculdades’ e a experimentação intersubjetiva – características da arte moderna –, mas também tentar identificar nesses domínios os usos instrumentais ou espetaculares que tão freqüentemente se fazem da liberdade subversiva do jogo estético.”[7]
[1] O que, felizmente, pode ser visto no site da instituição: http://www.ahrc.ac.uk.
[2] http://www.virtueelplatform.nl
[3] Sobre os conceitos de “indústria criativa” e de “classe criativa”, ver FLORIDA, Richard. The Rise of the Creative Class: And How It's Transforming Work, Leisure, Community and Everyday Life. Nova York: Basic Books, 2003, ou o site http://creativeclass.com. Para uma leitura mais crítica sobre o tema, recomendo o livro editado por Geert Lovink e Ned Rossiter, MyCreativity Reader: A Critique of Creative Industries. Amsterdã: Institute of Network Cultures, 2007. O pdf do livro encontra-se disponível em: <http://www.networkcultures.org/_uploads/32.pdf>.
[4] Ver SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1961. O livro encontra-se disponível em pdf no endereço <http://www.ordemlivre.org/files/schumpeter-csd.pdf>
[5] O catálogo da exposição encontra-se disponível em: <http://smartmuseum.uchicago.edu/publications/Beyond_Green_CatalogueWEB.pdf>
[6] PENTECOST, Claire. “Trials of the Public Amateur”, setembro de 2004. Disponível em: <http://2004.memefest.org/shared/docs/theory/claire_pentecost-selections_from.doc>.
[7] HOLMES, Brian. “Extradisciplinary Investigations. Towards a New Critique of Institutions”, 2007. Disponível em: <http://transform.eipcp.net/transversal/0106/holmes/en>.