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relato painel 1: Arte, ecologia, design e tecnologia no Brasil

Paulo Miyada


O público que acompanhou o primeiro painel do Paralelo acabou assistindo também a abertura do evento, na qual falaram representantes de cada uma das instituições que colaboraram para sua realização – todos pontuaram que seu principal objetivo seria reunir profissionais interessados em conectar-se em redes internacionais de discussão e colaboração.


do Concretismo à Arteônica
Numa visada abrangente, esse evento pensado como plataforma de encontros transdiciplinares internacionais começou sob a sombra de um artista brasileiro já falecido. A primeira convidada a falar, Analívia Cordeiro, embora tenha um trabalho próprio como videoartista e bailarina, utilizou sua fala para compartilhar conceitos e informações sobre a pessoa e o trabalho de seu pai, o artista plástico Waldemar Cordeiro (1925-1973). Considerando referências a suas memórias e a reproduções de documentos, Analívia narrou brevemente a vida de seu pai, desde a educação em pintura na Escola de Belas Artes em Roma até o advento e militância pela Arteônica – arte + eletrônica. Mesmo para os que conhecem o conjunto da obra de Waldemar Cordeiro – através da exposição retrospectiva de seu trabalho e de publicações disponíveis em livrarias e bibliotecas –, a exposição de Analívia trouxe surpresas por focar-se na concepção conjunta do paisagismo, da teoria visual e das artes plásticas, uma concepção que, de forma inusitada, reunia as palavras chave do painel: arte, ecologia, design e tecnologia.

Uma dessas práticas foi seu trabalho em paisagismo, iniciado em 1954 como parceria em projetos de arquitetos e urbanistas como Vilanova Artigas. Analívia mostrou alguns projetos de jardins, destacando o método adotado para a implantação de espécies nativas, que envolvia retirada de mudas em matas ciliares e seu cultivo em um terreno particular de Waldemar, sem estufa e em situação climática distinta da de seu ambiente original, embora adequada ao seu crescimento. Na convivência de Analívia com seu pai, um ponto fundamental na concepção desses espaços paisagísticos era a exploração da teoria da gestalt visual – em particular dos princípios de proximidade e de similaridade.  No período seguinte, anos sessenta, os projetos de Cordeiro para praças, parques infantis e espaços públicos de maior escala passaram a explorar também a idéia de opera aperta – tal como elaborada e discutida por Umberto Eco.

Seguindo a cronologia, Analívia leu um trecho do manifesto lançado por Cordeiro na exposição internacional Arteônica, primeira mostra de arte eletrônica no Brasil, em 1971[1]. Desse mesmo período, apresentou a primeira obra visual de Cordeiro que empregava computadores, Derivadas de uma Imagem, realizada em parceria com Giorgio Moscarti, do Departamento de Física Núclear da Universidade de São Paulo (USP). Essa criação, que envolvia a transcrição de uma imagem para o computador e o cálculo eletrônico da derivada das linhas de dígitos que a compunham, gerava informação para a reprodução de uma imagem outra. A imagem resultante constitui uma modalidade de síntese formal da imagem original, mostrando os contornos dos rostos do casal de namorados que integravam a imagem original. Segundo Moscati, a programação então concebida é análoga ao princípio fundamental da cognição visual retiniana, o que aponta para a reciprocidade da relação entre arte e ciência estabelecida por Cordeiro.

Entre essas duas práticas, o paisagismo e as artes visuais, poderia se supor um abismo, que uma biografia sentimental explicaria como a separação entre a obra do trabalhador que tem de sustentar a família e a obra do artista obcecado por suas experimentações. A partir de seu testemunho, Analívia apresentou uma chave para uma leitura unificada: ela afirmou que se tratava sempre do estudo rigoroso de um homem europeu que olha simultaneamente para, de um lado, o desenvolvimento da arte e da ciência em todo o mundo e, de outro, para as peculiaridades da natureza e da sociedade brasileiras. O texto que fechou a apresentação, Hipótese para o Desenvolvimento Artístico do Brasil (1969), pontua o posicionamento político da abordagem artística de Cordeiro, que vai além de seu trabalho com a Arteônica e do momento histórico específico do final da década de 1960. Trata-se de um quadro comparativo entre a arte do ‘sistema tradicional’ e o do ‘novo sistema’ representado pela tendência da arte eletrônica, que transcrevo a seguir, a partir da leitura de Analívia:

“O Brasil é o maior laboratório de experiências do mundo, o vulto da demanda e a mentalidade aberta às inovações são fatores ponderáveis para a caracterização das condições gerais da arte do Brasil. As tentativas esporádicas e isoladas de estagnação, corolário de uma almejada estratificação social de grupos que caíram ou estão caindo do cavalo e de ex-esquerdistas frustrados não chegam a modificar substancialmente o panorama. Portanto, é hora de uma ação radical, para fazer-se algo que ainda não foi feito em grande escala, em parte alguma.

As Belas Artes modernas não representam mais nada, bijuteria insignificante para camuflar os vazios da ignorância e/ou da casmurrice embolada. É mais importante desenhar um letreiro do que pintar um quadro para um living de fino gosto. A relação direta da teoria com a prática é hoje essencial. Não se trata da arte aplicada, mas da arte operacional, ao nível da segunda revolução industrial, nas nossas condições complexas de país em desenvolvimento, caracterizadas pelos grandes contrastes que se refletem na problemática da comunicação. O artista precisa matutar atentamente sobre a situação se não quiser entrar mal.

Desde o último após guerra, surgiu no Brasil uma concepção artística nova e atualmente em franco desenvolvimento, apesar das tentativas de envolvimento de epígonos arrivistas que não hesitam em servir ao sistema tradicional.

O quadro comparativo abaixo apresenta aspectos que caracterizam os dois sistemas artísticos dominantes, as conclusões ficam a cargo do leitor:


aspectos                                               Sistema tradicional                                         Novo Sistema
Personalidade do artista                Individualista, extravagante                            Técnico, qualificado, original
Mensagem                                       Artesanal, manufaturada                                        Programada
Linguagem                                          Natural, analógica                                              Artificial, digital
Repertório                                           Artístico, tradicional                                            Semiológico
Canal                                                  Galerias, museus, bienais                     Meios modernos naturais E artificiais de comunicação
Receptor                                             1% das classes A, B superior                          Mais de 50% das classes A, B, C e D
Semantemas                              Tradição folclórica de redundâncias            Descoberta, invenção de novos sistemas comunicativos
Possibilidades profissionais           Limitadas pelo gosto da classe A                       Ilimitadas pela demanda do país

 
A leitura rápida desse texto arremessava para a platéia denúncias sobre um sistema obsoleto, limitado pelo gosto das classes dominantes e que falha em atingir mais de 1% da população, enquanto apontava para a obra renovadora de artistas técnicos-qualificados-originais, dispostos a explorar e corresponder às possibilidades ilimitadas pela demanda do país, empregando de forma operacional (teórica e prática) todos os meios naturais e artificiais. Pois bem, mas o que essa proposta acrescenta ao debate contemporâneo, além da demonstração de um antecedente formidável? Voltaremos a isso na conclusão do texto.


visualizando cultura
Na seqüência, houve a apresentação de Cícero Dias, pesquisador brasileiro vinculado ao grupo Software Studies, em torno do qual organizou sua apresentação. Sem discutir propriamente a organização e a infraestrutura desse grupo fundado por pesquisadores como Jack Burnham e Lev Manovich, Cícero procurou alinhavar suas motivações, referenciais e linhas de pesquisa, o que nem sempre é tarefa simples.

Dentre as motivações apresentadas, destaca-se a avaliação do software como ponto de articulação fundamental da sociedade contemporânea. Nó regulador, ferramenta que torna possíveis os principais processos produtivos, comunicacionais e sociais, o software seria objeto de estudo multidimensional, unidade que compreende estruturas ideológicas, linguagens e culturas sociais. Como exemplos dos estudos promovidos, Cícero destacou três projetos: Esculpindo Imagens, análise qualitativa de todas as imagens digitais disponíveis em um site de armazenamento e gerenciamento de imagens, músicas e relacionamentos; VideoGamePlay, análise dos padrões temporais em jogos digitais; e Playpower, desenvolvimento de software educacional para hardware de baixo custo.

Afora o projeto Playpower, em que a atenção ao software aparece de forma evidente, a relação das propostas com o mote do grupo apareceu de forma obscura. De que maneira as iniciativas de análise de produtos e bancos de dados culturais se relacionam com os estudos multidimensionais propostos pelo grupo? A visita aos sites citados na apresentação esclarece o intuito dos projetos, que se organizam sob a alcunha de análises culturais, ‘emprego de visualização interativa e análise de dados para pesquisa, ensino e apresentação de dinâmicas e artefatos culturais’[2], o que resolve apenas em parte a dúvida verificada na apresentação. Sem menosprezar o potencial desses estudos, eles parecem excessivamente unidimensionais quando comparados com o panorama que constitui o mote do grupo, a ponto de fazerem lembrar das discussões relatadas por Décio Pignatari acerca dos estudos estatísticos literários[3].


cultura de reparos
O palestrante seguinte foi Marcus Bastos, pesquisador e artista que construiu uma curiosa fala sobre seu processo de preparação para montar sua palestra. Assumindo não ser um especialista no assunto, Marcus afirmou ter iniciado sua preparação pela pesquisa sobre conceitos como sampling, remixing e mashing-up, a qual o levou a ensaiar suas próprias articulações conceituais em torno de uma possibilidade de reutilização dos produtos e eventos ‘no plano simbólico da linguagem’, algo que caminhava para uma definição de uma ‘samplertropofagy’.

Ao invés de esclarecer essa definição, Marcus abriu um parêntese para comentar sobre o momento em que percebeu a contradição inerente à sua pesquisa que, tentando definir conceitos sobre a ação ecológica do homem, consultava e consumia quilos e quilos de papel impresso, consumia energia elétrica etc. Essa ruptura levou à investigação das quantidades de energia e de matéria de fato consumidas por todo o mundo, que por sua vez apontou para a necessidade de uma outra modalidade de design, pautada pela possibilidade de completar ciclos de produção, uso e reciclagem sem perda material, como advogado por William McDonough no livro Cradle to Cradle.

Marcus novamente evitou estabelecer-se confortavelmente sobre uma noção, aprofundá-la e exemplificá-la, preferindo especular sobre os fundamentos e desdobramentos da ação do homem sobre o mundo, a partir de considerações do escritor norte-americano Henry David Thoureau, ao mesmo tempo em que procurava levantar experiências que renovassem o repertório de táticas possíveis de uso da tecnologia, como as culturas informais de reparos e upgrades de aparelhos celulares que Jan Chipchase pesquisou em países africanos, na Índia e na China.

Justamente nesse segundo movimento de abertura de referências e repertórios, a fala de Marcus teve de ser interrompida, sem chegar a uma conclusão. Mesmo inconclusa, ela demonstrou um ponto: é possível construir conceitos sobre modos de consumo, produção e renovação do ambiente pela articulação das inúmeras reflexões e experiências publicadas sobre o assunto, mas a coerência do resultado depende de que se assuma a parcialidade e o contexto de um discurso pessoal.


panoramas como taxonomias
Justamente na contramão da reflexão pessoal de Marcus, a também artista e pesquisadora Karla Brunet apresentou um esboço do que seria um amplo panorama dos trabalhos que articulam arte, meio ambiente e ecologia. Tendo como modelo o trabalho historiográfico de Jeffrey Kastner e Brian Wallis sobre a Land Art, Karla elencou as categorias design/reciclagem, projetos de inversão, documentação/conscientização/educação, visualização de dados, projetos pessoais e experimentação tecnológica. Assumindo se tratar de uma formulação provisória, Karla ilustrou-a com exemplos para cada categoria, sem chegar a criticar o alcance de cada trabalho ou dos grupos de trabalhos agrupados.

Como seria cobrado na rodada de perguntas, essa abordagem tem uma limitação óbvia: enquanto não for feita com extremo rigor cairá no universo das taxonomias falhas, quer dizer, das taxonomias que não cobrem todos os casos de estudo possíveis e, mais grave, têm contradições e sobreposições entre as categorias que as organizam. Além dessa limitação metodológica, apontaria uma limitação contextual: quando não estão no pólo da historiografia, esses panoramas taxonométricos, por não assumirem sua parcialidade como eixo estruturador, não conseguem articular novas práticas e conceitos – estão fadados a aparecer como enumerações acríticas ou panfletárias, dependendo do realizador.


floresta, protagonista multimída
Encerrando a rodada, o professor de filosofia Laymert Garcia dos Santos organizou sua fala como uma grande provocação. Primeiro, um diagnóstico – o mundo inteiro deixa para trás a era do excesso e vive uma nova situação provocada pela ‘crise do valor do valor’. Em seguida, o prognóstico – novos atores, que, por motivos diversos, viveram à margem da modernidade e da era do excesso, serão convocados para apresentarem outras visões de mundo, de arte e de cultura como alternativas aos modelos em declínio. E, daí, um destaque – a cultura brasileira será chamada para contribuir com a sua especificidade que se desenvolveu mais ou menos protegida da modernidade euro-americana, quer dizer, com a biodiversidade e a diversidade etno-cultural.

Na linha de chegada dessa provocação, Laymert defendeu a oportunidade de criar novas modalidades de articulação com as culturas milenares indígenas e com a natureza do território, articulações que lidem com o outro enquanto design, arte e tecnologia de pleno direito, e não simplesmente ‘étnicos’. O horizonte seria de uma contemporaneidade que não precise aniquilar os rastros de tradições milenares, mas, pelo contrário, trabalhe junto com ela.

Seu principal exemplo para tais articulações foi o trabalho que está desenvolvendo com a ópera do Zentrum für Kunst und Medientechnologie (ZKM) de Karlshure, uma ópera multimídia sobre a Amazônia, na qual a floresta seria o protagonista. Laymert não deu muitos detalhes do projeto, mas disse que se tratava de um diálogo, em confronto e em oposição, da imagem da floresta formada pelo xamanismo e as culturas milenares indígenas com aquela formada pelas ciências ocidentais.


possibilidades ilimitadas pela demanda do país 
O debate que seguiu às apresentações teve a maior parte de colocações endereçadas à Laymert, cuja fala foi a única claramente organizada como uma provocação para a platéia. Porém, como muitas vezes acontece quando uma provocação é mal entendida, o tom era de verificação da coerência da hipótese inicial de Laymert. O problema é que a discussão da existência ou não de uma crise da arte e da cultura ocidental e da necessidade ou não de uma abertura para as culturas milenares não converge para um ponto comum entre as falas apresentadas ou para a pauta do painel.

Acredito que a discussão poderia ir mais longe se fosse endereçada à outra provocação que foi lançada durante as falas, mas que não foi notada. Trata-se da apresentação do trabalho de Waldemar Cordeiro, na qual percebo dois argumentos que podem ser discutidos frente a cada um dos trabalhos apresentados no evento, assim como frente ao próprio mote do evento, como apresentado na sessão de abertura. O primeiro desses argumentos diz respeito ao uso da tecnologia mais recente e à colaboração transdisciplinar, que no último texto selecionado por Analívia aparece como elementos que só tem significado se atinge um público mais amplo que a pequena parcela da população envolvida com o meio artístico e/ou acadêmico, essa representada, por metonímia, por grande parte do público presente no auditório do MIS. O segundo desses argumentos diz respeito a uma abordagem do ambiente natural e da ecologia, que só tem lastro quando é coerente com uma abordagem do ambiente humano como um todo, englobando inclusive as interfaces virtuais e os contextos específicos de cada ação.

Minha principal inquietação em relação aos debates do painel foi a ausência da contraposição de argumentos transversais aos discursos paralelos trazidos pelos participantes. Com certeza poderiam ser estes presentes na obra e discurso de Waldemar Cordeiro, garantindo uma rica discussão de onde e porque podem se articular arte, ecologia, design e tecnologia.



NOTAS:
[1] A mostra Arteônica foi idealizada e produzida por Waldemar Cordeiro na FAAP, em São Paulo, 1971.
[2] “Cultural Analytics: using interactive visualization and data analysis for research, teaching and presentation of cultural dynamics and artifacts” In: http://lab.softwarestudies.com/2008/09/projects.html (acessado em 16 de Abril)
[3] Contrariamente ao referido por alguns, Guimarães Rosa era muito vaidoso e cioso de sua obra. Certa vez, num dos dois longos colóquios que com ele mantivemos, no Itamaraty, exibiu-nos o datiloscrito de um conto inédito, perguntando-nos ao mesmo tempo, por que a prosa literária brasileira contemporânea (1964) parecia tão frouxa, desossada, amebóide, em comparação com a sua, mais ‘pedregosa… e viril’. Respondemos, a um primeiro exame da amostragem representada pelo datiloscrito, que isso poderia resultar, entre outras coisas, de uma frequência maior de grupos consonantais. Achou curioso. Quis saber em seguida qual o escritor cuja prosa equipararíamos à dele. Resposta: ‘Entre os vivos, nenhum’. Rosa: ‘E entre os mortos… Machado?’. Resposta: ‘Não, Oswald de Andrade’. Visivelmente, não gostou do nome. E mais tarde, botamos um de seus contos no computador e lhe enviamos o resultado, que confirmava a observação inicial: uma pequena porcentagem a mais de consoantes. Uma pRosa é uma pRosa é uma pRosa…” In: Pignatari, Décio. “Informação, Linguagem, Comunicação”. p. 63