Mesa-redonda Arte africana e o conceito de arte
Introdução: a arte africana é uma invenção?
"Artista! Pode lá isso ser se Tu és d´África,
tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto? (...) Artista!
Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longíqua região desolada,
(...) criação dolorosa e sanguinolenta de Satãs rebelados?"
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Esse trecho do poema "O Emparedado", escrito por Cruz e Souza (1861-1898), filho de escravos, foi citado por Lígia Ferreira em sua fala de abertura. Com efeito, antes da descoberta da arte africana por Picasso, Gauguin, Modigliani e outros artistas europeus, no início do século passado, era quase impossível se admitir a existência de uma arte africana merecedora de tal designação. Tanto em razão do paradigma evolucionista, segundo o qual as populações negras seriam "menos evoluídas", como também em virtude da política colonial. A descoberta da arte africana pelas vanguardas modernistas correu paralelamente ao colonialismo dos séculos XIX e XX e não colocou em xeque as teorias raciais da virada do século[1]. As expressões art nègre ou arte "primitiva" foram, muitas vezes, empregadas de forma a estigmatizar e exotizar seus produtores.
Lígia Ferreira, mediadora da mesa-redonda, levantou uma segunda questão, que, como a anterior, provavelmente tenha perpassado todo o Encontro Afro-Atlântico de Museus: categorias como "arte latino-americana" e "arte africana" são generalizações simplificadoras, que escondem a pluralidade e a historicidade das manifestações artísticas presentes em cada região. Ora, a África é quatro vezes maior que o Brasil. Dividida em dois pelo deserto do Saara, teve sua parte norte colonizada por árabes, a partir do século VII d.C., ao passo que a colonização européia no restante da África começou em 1884. Essa história se reflete, entre outros aspectos, na diversidade religiosa do continente, onde vivem 200 milhões de muçulmanos, 200 milhões de cristãos e 100 milhões de adeptos de religiões tradicionais. Existem, então, várias Áfricas – a África islâmica e a África dos transes, a África urbana e a África semi-nômade, a África árida e a África tropical.
Não obstante, nas regiões em que prevalecem modos de vida tradicionais, observam-se certas recorrências socioculturais: predomina uma visão de mundo em que todos os elementos são coesos e integrados; o indivíduo se pensa dentro de uma família extensa, reunindo várias gerações de parentes; o cultivo da terra é feito de forma coletiva; busca-se uma relação harmônica com a natureza; praticam-se cultos aos ancestrais, que fazem a ligação dos vivos com os seres supremos; valorizam-se os anciãos, por sua sabedoria acumulada; divide-se a sociedade por linhagens, grupos de idade e de iniciação; e concebem-se os seres como animados por uma força vital, que é menor nas espécies animais e vegetais, moderada nos seres humanos e alta nos ancestrais e divindades[2].
Tudo isso se traduz nas práticas artísticas. Na África Negra tradicional, a arte não se separa do resto da vida social, ao contrário, perpassa todas as atividades. As linguagens artísticas estão conectadas e se complementam na performance (dança, música, pintura corporal, escultura etc.). A ligação entre ritual e atividade artística faz com que os objetos sejam vistos como receptáculos de poder. A preferência pela madeira como matéria-prima e o uso de máscaras de corpo inteiro são outros elementos comuns a diversas culturas. Como se vê, mesmo que se trate de um construto intelectual, que simplifica e homogeniza a realidade, a categoria arte africana aponta para características comuns que marcam ou marcaram parte significativa da produção artística tradicional da África Negra.
Por outro lado, apesar dessas persistências na longa duração, não se trata de um fenômeno estático. Os conflitos pós-coloniais, a globalização do mercado, as novas tecnologias de comunicação e a intensificação do turismo, por exemplo, têm influência sobre os valores e práticas tradicionais. Materiais antes desconhecidos são incorporados, surgem novos temas e suportes, técnicas antigas desaparecem. Os contornos da arte africana estão permanentemente sendo reinventados por marchands, curadores, estudiosos e, mais recentemente, pelos próprios artistas. Mas essa invenção não se dá no vazio; ela dialoga com pressupostos culturais e raízes históricas caros ao continente africano.
Em síntese, o que chamamos hoje de arte africana resulta da dialética entre permanência e transformação, entre unidade e diversidade, entre a criação dos artistas africanos e os parâmetros do mercado de arte euroamericano. As falas dos três convidados da mesa-redonda que relatarei a seguir discutem ou tangenciam tais questões, tão instigantes, quanto espinhosas.
Samuel Sidibé: a arte africana não existe na África
Diretor do Museu Nacional do Mali e liderança internacional em processos de repatriação de objetos, Samuel Sidibé começou sua intervenção afirmando que a noção de arte africana é estritamente Ocidental. O palestrante argumentou que os primeiros colecionadores não consideravam os objetos coletados na África como arte: foram artistas brancos que efetuaram tal transformação. Mas a questão que eu levanto, aqui, é a seguinte: o que permite considerar uma criação como artística é apenas a intenção do artista no momento da confecção do trabalho ou pode também ser a recepção do público e da crítica, posteriormente?
O antropólogo Nelson Graburn[3] acena com uma possível resposta: existe a arte "por destinação" (art by destination), explicitamente produzida com intenção estética, mas também a arte "por metamorfose" (art by metamorphosis), rotulada posteriormente, em geral numa sociedade distante da do produtor. Nessa perspectiva, acredito ser possível considerar que as primeiras máscaras e estatuetas coletadas na África são representantes da "arte por metamorfose", ou seja, tornaram-se arte ao longo do tempo e conforme se inseriram no sistema das artes e dos museus. O que não quer dizer que as intenções originais devam ser obliteradas, pelo contrário, diversas camadas de sentido e de valor vão se sobrepondo durante a trajetória dos objetos.
Ademais, gostaria de lembrar ao leitor que as noções de religião, família e Estado também foram cunhadas no Ocidente e, não obstante, ajudam a compreender fenômenos presentes (ou ausentes) em outras sociedades. Embora a noção de arte africana tenha surgido no Ocidente, hoje o sistema global de artes e museus chega a praticamente todos os cantos do planeta e, certamente, existem apropriações locais e agenciamentos dos africanos em relação à ideia de arte africana. O próprio Sidibé contou que, quando a Europa descobriu a "arte negra", isso teve impacto imediato na África: surgiu um mercado de exportação de objetos africanos para colecionadores particulares.
Talvez a resistência de Samuel Sidibé à categoria arte africana venha do fato de ele temer a mercantilização do patrimônio cultural: "concordo que se devam escolher os objetos mais significativos e bem acabados de uma coleção e expô-los de um modo atraente, mas sem entrar na discussão de arte ou não – pois arte vem sempre associada ao valor financeiro e o museu deve se pautar por valores ligados ao conhecimento". O curador de Mali completa: "o mercado busca objetos que sejam valorizados e a exposição em museus acaba fazendo parte desse processo de valorização. Depois da inauguração do Museu Branly, em Paris, os objetos africanos atingiram preços inacreditáveis".
Aliás, segundo Sidibé, 80% da arte africana produzida até hoje se encontra na Europa e não existe nenhum museu de arte africana na África, com exceção do Museu de Arte de Dakar. Os museus africanos não têm orçamento, nem acervo que lhes permitam organizar grandes exposições, tampouco realizam debates sobre o assunto. Via de regra, artistas, curadores e coleções da África ficam fora também do circuito internacional. A arte africana é feita na África, mas avaliada, discutida, exposta e vendida fora da África. Apontar esse paradoxo foi provavelmente a maior contribuição do palestrante à mesa-redonda.
Enid Shildkrout: refletindo sobre estratégias expositivas
Antropóloga de formação, Enid Schildkrout fez pesquisa de campo em Gana e na Nigéria. Trabalhou trinta anos no Museu Americano de História Natural, em Nova York, e foi curadora-chefe do Museu de Arte Africana de Long Island City, de 2005 a 2011. Enid acredita que "a maneira como o público percebe um objeto depende da forma de expô-lo. Hoje, pensa-se em contexto não mais como o habitat natural, mas como uma configuração sociopolítica que inclui a desertificação da África, a questão dos refugiados, os percalços da biografia do artista etc.". Cruzando as visões de antropóloga e curadora, seu objetivo principal é "colocar a arte em contexto". Assim, ela apresentou ao público do evento casos concretos de estratégias expositivas para a arte africana.
O primeiro foi o do African Hall, espaço permanente do American Museum of Natural History, que recebeu crítica positiva do New York Times, em 1968, elogiando o fato de oferecer uma "contextualização iluminadora". Os objetos estavam inseridos em cenografias, numa das quais pessoas usavam máscaras rituais e chinelos industrializados. O público, acostumado a estereótipos, reclamou que isso não era acurado, mas, segundo a palestrante, é exatamente dessa forma que as coisas se passam na África contemporânea. Nas entrelinhas, Enid parecia afirmar: o curador não deve corresponder a expectativas de "pureza" cultural, mas discutir os hibridismos da época em que vivemos.
O segundo caso apresentado foi o da mostra "African Reflections: Art from Northeastern Zaire". Um estudioso escrevera que a arte banto não existe e Schildkrout, como resposta, decidiu expor as centenas de peças banto que pertencem ao Museu de História Natural, historicizando-as. Na hora de produzir a itinerância, contudo, encontrou dificuldades: os museus de arte resistiram, alegando tratar-se de uma exposição etnográfica.
Figura 1. Capa do catálogo da exposição "African Reflections", inaugurada em 1990.
O contrário ocorreu em 1995, quando ela levou uma exposição ao British Museum of Mankind chamada "Spirits in Stell", reunindo esculturas de pessoas, em tamanho natural, assinadas pela nigeriana residente em Londres Sokari Douglas Camp. As esculturas de aço ficavam ao lado de máscaras rituais da etnia da artista, Kalabari. Na época, um crítico questionou por que uma exposição de arte contemporânea estava em um Museu de História Natural.
Ambas as controvérsias revelam uma tensão recorrente ao se exporem as artes de povos tradicionais ou de indivíduos que não têm origem euroamericana. Vistos como nossos Outros – e produtores de objetos que, muitas vezes, tiveram finalidade utilitária ou ritual –, eles não se encaixam bem no sistema das artes. Ao mesmo tempo, críticos, artistas e colecionadores reconhecem, cada vez mais, as qualidades formais, a inventividade e o apuro técnico de suas criações. Dessa forma, ora as exposições de arte africana encontram acolhida em museus de história natural, ora em instituições de belas-artes.
Samuel Sidibé, em sua fala, relatara algo que aponta exatamente na mesma direção. Quando esteve em Berlim, visitou uma exposição de arte africana que ficava ao lado de uma outra, classificada como etnográfica. Ficou surpreso ao constatar que os objetos expostos como arte e aqueles apresentados como testemunhos etnográficos eram bastante semelhantes. "Isso revela a dificuldade de separar a dimensão artística da etnográfica, mesmo no seio das instituições especializadas", disse Sidibé.
Vale a pena abrir um parêntese para lembrar iniciativas recentes, na França, que ilustram bem o binômio objeto etnográfico versus obra de arte. O marchand de arte "primitiva" Jacques Kerchache publicou em uma página inteira do jornal Libération, no dia 15 de março de 1990, um manifesto defendendo o fim da hierarquia das culturas no Museu do Louvre, e pleiteando, no bojo das reformas arquitetônicas pelas quais o museu acabara de passar, a abertura de uma seção destinada às artes "primeiras". O presidente Chirac, amigo pessoal de Kerchahche, resolveu encampar a ideia. Criou-se, primeiramente, um anexo dentro do Louvre, chamado Pavillon des Sessions. Inaugurado em 2000, mostra pouco mais de cem objetos e esculturas da África, da Oceania e da América indígena, alguns pertencentes a acervos de museus franceses, outros compradas de colecionadores. As etiquetas ficam distantes das peças, as salas são espaçosas e despojadas.
Figura 3. Sala do Pavillon des Sessions, inaugurado no Louvre, em 2000.
A partir dessa experiência no Louvre, projetou-se a construção do Musée du Quai Branly, inaugurado em 2006, para abrigar artefatos de outros povos, tratados como arte. Mais uma vez, decidiu-se afastar textos explicativos das peças expostas, "a fim de permitir uma comunicação direta e silenciosa com a obra"[4]. O argumento é de que o próprio objeto deve revelar as intenções do artista, e que as explicações etnográficas interferem na comunicação entre a peça e o público. O Musée Branly tem provocado polêmicas, sobretudo devido ao passado colonialista não explicitado das peças de sua coleção, muitas delas adquiridas de forma discutível. Não cabe discutir isso aqui, mas apenas sugerir que o problema de como e onde expor objetos de outras sociedades permanece bastante atual e não se restringe à arte africana.
Voltando para a apresentação de Enid Schildkraut, a palestrante mencionou, também, "Grass Roots: African Origins of an American art", que curou no New York Museum of African Art, em 2005. O interessante, nesse caso, é que ela trabalhou com objetos trançados em fibra produzidos, ainda hoje, por afroamericanos, bebendo na fonte de uma antiga tradição africana. Nessa exposição, as cestas se tornaram arte para a contemplação; sua variedade e sofisticação foram exploradas, colocando em xeque a distinção arbitrária entre arte e artesanato. Por outro lado, estava ali presente um aspecto importante da história econômica dos Estados Unidos: as peneiras de fibra que os escravos africanos sabiam fazer foram fundamentais nas plantações de arroz de South Carolina. Segundo Schildkrout, o objetivo era mostrar a passagem do instrumento de trabalho para o artesanato em série vendido nas lojas, chegando a exemplares refinados feitos por artistas premiados.
Seu grande mérito, portanto, foi desvendar a historicidade daquela técnica e daquelas peças: "na África, os materias mudam, mas as formas das cestas se mantêm. Nos Estados Unidos, acontece o contrário, continuam-se usando as mesmas fibras vegetais, mas surgem formatos inusitados", explicou Enid Schildkrout. Isso é fundamental, para combater a atemporalidade e o anonimato que marcaram, durante o século XX, a relação do Ocidente com a arte africana, como se houvesse uma África primeva, autêntica e inalterável; como se não ocorressem traduções e adaptações legítimas na diáspora ou em contextos coloniais.
Uma outra estratégia expositiva utilizada por Enid Schildkrout, desta vez na mostra "Masks in Motion", foi a inserção de vídeos em que os artistas ou pessoas de seu grupo dizem o que aquelas peças significam em seu contexto original, como foram feitas etc. Mas, provavelmente, um de seus experimentos mais radicais estará na próxima exposição, atualmente em estágio de planejamento e com cenografia assinada por Robert Wilson. Trata-se do projeto "Trap as art / Art as a trap" (A armadilha como arte / A arte como armadilha) – inspirado em um artigo seminal de Alfred Gell[5].
O antropólogo inglês discute, nesse artigo, quando um objeto fabricado pelo Homem é arte e quando é um mero artefato. Toma como ponto de partida a exposição "Art/Artifact", curada por Susan Vogel, no Center for African Art de Nova Iorque, em 1988. Na primeira sala da exposição, a curadora dispôs uma rede de caça Zande enrolada para o transporte. O nome provocativo da sala era "The Contemporary art gallery". Arthur Danto, crítico e filósofo da arte norte-americano, escreveu um texto para o catálogo da exposição no qual discordava da classificação daquela rede enrolada como arte contemporânea. O argumento de Danto era que uma rede de caça não contém densidade simbólica nem mesmo para a cultura Zande, por se tratar de um instrumento utilitário. O contra-argumento de Gell é que não se pode separar tão claramente as esferas simbólicas e utilitárias. No Ocidente, pinturas religiosas podem ter funções litúrgicas, bustos de personalidades assumem funções políticas e assim por diante; nas sociedades sem escrita, máscaras são dotadas de eficácia e, ao mesmo tempo, condensam significados culturais.
"The proposed separation between instrumentality and spirituality is not feasible. (…) So, had the net been properly documented at the time of its collection (c. 1910), it is most likely that it would have figured ritually as an attribute of the hunter role in the collective drama of the ritual hunt (…)". For this Fang wise man, the idea of a trap is a master metaphor of very deep significance. (…) The trap, like all traps, functions as a powerful sign. Not designed to communicate or to function as a sign (in fact, designed to be hidden and escape notice), the trap nonetheless signifies far more intensely than most signs intended as such. (…) We read in it the mind of its author and the fate of its victim". (GELL, 2006: 225-226).
Segundo Alfred Gell, a escolha da curadora Susan Vogel foi um "golpe de mestre", pois naquela rede de caça estavam alocadas a sabedoria e a técnica do caçador. Nesse sentido, a rede de caça seria, tanto um modelo de seu criador, quanto um modelo da presa, já que sua forma e seu mecanismo se referem aos hábitos e características do animal. A armadilha, portanto, seria um nexo dramático que liga esses dois protagonistas – caçador e caça. Sem a colaboração da presa, que dispara o gatilho, o caçador não teria sucesso. Sem conhecer em detalhes a caça, tampouco obteria êxito. Portanto, a rede de caça Zande era, sim, carregada de significado, quase uma metáfora da condição humana e das relações entre presa e predador. Não por acaso, vários artistas contemporâneos utilizam a temática da armadilha – como o tubarão no formol de Damien Hirst.
Figura 4. Catálogo da exposição Art/Artifact, com a rede enrolada na metade inferior.
As definições de arte proposta por Gell no artigo em que analisa a exposição "Art/Artifact" são as seguintes:
- qualquer objeto ou performance que carregue em si uma rede complexa de intencionalidades, deixando-se interpretar e suscitando reações;
- qualquer coisa que funcione como uma "armadilha de pensamento", capturando-nos durante um certo tempo;
- tudo que objetive relações entre homens ou entre homens e coisas.
Mesmo que, à primeira vista, essa proposta pareça radical, e exclua qualquer critério propriamente estético, ela faz sentido, sobretudo num momento em que o sistema das artes parece permeável, mais do que nunca, a novas linguagens, formatos e experimentações – que vão, aos poucos, expandindo o que cabe na categoria arte.
Durante a mesa-redonda, a maneira de Enid Schildkrout lidar com a arte africana, buscando revelar, nas exposições, as motivações e modus operandi dos produtores dos objetos, a história que lhes nutre, bem como as relações de diferentes objetos entre si pareceu bastante alinhada à antropologia da arte de Alfred Gell. E deve ter deixado incomodados ou desafiados os profissionais das artes visuais que ainda consideram que uma máscara ou estatueta africana não devam ser expostas em museus de arte.
Karen Milbourne: um museu de arte africana serve para levantar questões
Curadora do Museu Nacional de Arte Africana, do Instituto Smithsonian, em Washington, Karen Milbourne enfatizou, em sua fala, que um museu de arte africana tem o papel de levantar questões e não de oferecer respostas prontas. "Museus de arte africana ajudam a construir ideias sobre a África e precisam estar atentos a essa dimensão". O desafio não é pequeno, uma vez que cabem no museu de arte africana tanto uma máscara Chokwe tradicional – confeccionada por um indivíduo negro anônimo –, como um vídeo de animação de William Kentridge – produzido por um branco com fama internacional.
Karen Milbourne considera "muito difícil saber quem pode ser considerado africano. Só quem vive abaixo do Saara? Ou de todo o continente?". A diáspora torna a situação ainda mais complexa. Só no Brasil, há pelo menos 80 milhões de afrodescendentes. Aliás, a curadora contou que um adido cultural da Embaixada do Brasil nos Estados Unidos lhe disse, em certa ocasião: "no Brasil, somos todos africanos". Assim, nas exposições que concebe, ela se preocupa em estabelecer diálogos, aproximações e conexões entre produções de diversas partes e épocas da África e entre artistas africanos e de outros continentes.
Em "Brave New World", por exemplo, Theo Eshetu, londrino filho de um etíope, projetava um vídeo com suas viagens pela África, dentro de uma caixa de espelhos, e, de repente, o visitante se via dentro das projeções. Outro artista presente na mesma exposição era de família armênia, mas morava no Egito. Para revelar as maneiras pelas quais as peças chegam ao museu, Karen Milbourne preparou uma exposição sobre aquisições e doações, "African Mosaic", em que colocou lado a lado máscaras esculpidas da primeira metade do século XX e pinturas da segunda metade do século XX. Na hora de colocar as legendas, surgiu um obstáculo: as etiquetas do Smithsonian são padronizadas e, para máscaras, deve vir primeiro a categoria descritiva mask, depois a etnia, a região e a data, sem o nome do artista. Já no caso das pinturas, o nome do artista deve vir primeiro. Nota-se como os protocolos cotidianos do museu incorporam a divisão de senso-comum entre artefato etnográfico (máscara) e belas artes (pintura sobre tela).
A fim de sugerir a historicidade e o dinamismo da arte africana, ela costuma expor peças antigas e contemporâneas conjuntamente. Para revelar a divisão internacional do trabalho que pode estar por trás de algo que, aparentemente, é arte "étnica", Karen Milbourne convidou Yinka Shonibare Ben, da Nigéria, para expor seus manequins sem cabeça, vestindo têxteis que parecem tradicionais africanos, mas que, na verdade, são desenhados em Bali e produzidos na Holanda.
Figura 6. Yinka Shonibare Ben. "Reverend on Ice", 2005.
Por fim, com o intuito de promover trocas, Karem Milbourne criou a série "Diálogos", que sempre convida dois artistas com trajetórias diferentes, para que criem novas obras levando em consideração o trabalho do outro. Na primeira edição, convidou Antonio Oie, de Serra Leoa, e Aimé Mpane, do Congo. Atualmente, está em cartaz o diálogo entre Sandile Zulu, da África do Sul, que trabalha fogo, e o paulistano Henrique Oliveira, de São Paulo, conhecido por seu penetrável de tapumes na última Bienal de São Paulo.
Figura 7. Trabalhos de Sandile Zulu e Henrique Oliveira, no National Museum of African Art.
Se a palestrante está certa e o principal papel de um museu que trabalha com arte africana é levantar questões, o Museu AfroBrasil cumpriu perfeitamente seu papel, ao organizar esse Encontro Afro-Atlântico. Na mesa-redonda que me coube relatar, não foram poucas, nem simples as perguntas formuladas. Espero ter conseguido transmitir ao leitor o quão estimulantes e às vezes controversas foram as falas. Ao fim e ao cabo, só causa certa tristeza perceber que o debate sobre arte africana é mais desenvolvido na América do que na África.
[1] Sobre teorias raciais, em particular no contexto brasileiro, consultar SCHWARCZ, Lilia. O Espetáculo das Raças. Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil: 1870-1930. São Paulo, Cia. das Letras, 1993.
[2] Fontes: HUG, Alfons; JUNGE, Peter. Arte da África. Obras-primas do museu etnológico de Berlim. CCBB/ Goethe, 2005; LEITE, Fábio. "Valores civilizatórios em sociedades negroafricanas" in: Revista do Centro de Estudos Africanos n. 18-19. São Paulo, USP, 1995/1996, p. 103-118; BALOGUN, Ola. "Forma e expressão nas artes africanas". In SOW, Alpha. Introdução à cultura africana. Lisboa, Ed. Unesco, 1980.
[3] GRABURN, Nelson. Arts of the Fourth World. IN: MORPHY, Howard; PERKINS, Morgan (eds.). The Anthropology of art: a reader. Oxford: Blackwell, 2006, p. 412-414.
[4] Mais informações sobre o Musée Branly podem ser encontradas em: L'ESTOILE, Benoît. Le Gout des autres. De l'exposition coloniale aux arts premiers. Paris: Flammarion, 2007; PRICE, Sally. Paris Primitive. Jacques Chirac's Museum on the Quai Branly. Chicago: University of Chicago Press, 2007.
[5] Gell, Alfred. "Vogel´s Net. Traps as artworks and artworks as traps" In: Morphy, Howard e Perkins, Morgan (org.). The Anthropology of art. A reader. Cornwell: Blackwell Publishing, 2006.