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Arte e contexto ou recorrentes problemas em se falar daquele que se apresenta ou apresentamos como o outro

relato por Marina Capusso

Relato da mesa Arte africana: como decifrar seus enigmas?

 

Auditório cheio, um pouco de atraso, tietagem e muito entusiasmo marcaram o início das mesas redondas do I Encontro Afro Atlântico na Perspectiva dos Museus. Para debater o tema “Arte africana: como decifrar seus enigmas?”, foram convidados Robert W. Selenes, mediador da mesa, Robert Farris Thompson, Abdou Sylla e Constantine Petridis, que se apresentaram nesta ordem.

Robert Selenes deu início aos trabalhos chamando atenção para a importância dos três historiadores ali presentes, proeminentes pesquisadores da arte africana. Apresentou a bio(blio)grafia dos convidados[1] e introduziu as falas a partir da leitura de um excerto da introdução do livro de Robert Thompson, Flash of the Spirit, cuja tradução foi lançada na noite anterior no próprio Museu. No trecho lido por Selenes, Thompsom nos fala da influência do que ele denomina “espírito de um povo”, se referindo à África, sobre manifestações culturais de diferentes populações.

A platéia estava bastante empolgada com a mesa. É difícil traçar um perfil dos que ali estavam, mas pelos comentários[2] e as perguntas finais, boa parte dos participantes eram pesquisadores e estudantes em áreas relacionadas ao tema da mesa, além de profissionais de museus de diferentes estados brasileiros e países.

Antes que exploremos a especificidade das falas, é importante ressaltar que, de modo geral, todas abordaram a relação entre arte e contexto, passando, ainda que sem se aprofundarem, por uma miríade de questões colocadas pela antropologia, e também por outras ciências sociais, desde a sua constituição enquanto disciplina acadêmica[3]. Curioso notar que, ainda que o público não fosse um público desavisado das questões colocadas pela mesa, a exposição dos palestrantes, de modo geral, e o debate proposto giraram em torno de problemáticas absolutamente básicas, primevas[4] em termos de debate acadêmico, não relacionadas especificamente à arte africana, mas relacionadas aos problemas em se falar sobre este que achamos ser o outro.

 

“A palavra exótica é uma maldição”[5]

Apresentado por Selenes como um dos primeiros historiadores de arte africana a atentar às especificidades culturais, aos contextos sociais e filosóficos onde esta arte foi produzida, Robert Thompson, que nos falou em português, partiu da apresentação de uma escultura, um objeto ioruba da religião dos orixás, apresentando algumas variações do mesmo, para argumentar a importância de compreendermos os contextos histórico e cultural aos quais pertence esta arte, compreendendo, a partir desta mesma perspectiva, a combinação dos diferentes elementos que a compõe e assim, como sugere a mesa, decifrar esta arte. Para Thompson, “decifrar o objeto começa quando somos conscientes das partes que o compõe”.

Thompson contou-nos a história de cada elemento da escultura, a coroa aberta, as pedras, as duas mãos segurando um pote, o rio, formando assim, a partir dos diferentes elementos, uma compreensão sobre esta escultura, sobre o seu significado. A importância da compreensão destes elementos se faz tanto para a compreensão da escultura apresentada, enquanto uma totalidade, quanto para a compreensão de diferentes contextos onde estes símbolos aparecem isoladamente. Ainda que Thompson não tenha realizado tal afirmação, podemos inferir, a partir de sua fala, que ao mesmo tempo em que o contexto nos permite compreender uma determinada obra, as obras também nos permitem significar um determinado contexto, passado ou atual[6].

E é por dar significado a ações atuais, e não somente na África, que Thompson se recusa ao uso do termo exótico e defende a importância de conhecermos intimamente a simbologia africana.  Os símbolos apresentados, e que estão disseminados em diversos países, não só da África Negra, dão significado a diversas ações do nosso cotidiano, são atuais e estão por toda a parte, desde o pote com água e pedras, feito pela mãe de um estudante estadunidense negro para protegê-lo, dado seu ingresso em uma universidade de brancos, às modernas casas iorubas na cidade de Lagos que são iluminadas com luz azul, que, de acordo com Thompson, simboliza a paz, a frescura divina. Thompson argumenta que estes elementos fazem parte de uma ampla corrente cultural, aparecendo em diferentes povos, em diferentes épocas, e que não necessariamente tiveram uma relação direta, seja ela temporal ou espacial.

Thompson finalizou sua fala mostrando o objeto apresentado em ação, no que ele denominou “o clímax, o centro cultural que explica tudo”, que é a dança, a expressão onde “você com seu corpo, torna-se parte da iconografia, uma iconografia que está no corpo, viva”.  O historiador apresentou um vídeo de uma festa de Orixá, onde mulheres dançavam com a estátua, que ele apresentara, na cabeça, tornando a coroa da estátua, coroa de fato.

Ajoelhando e tocando na mesa, dando ritmo ao vídeo mudo, Thompson proporcionou um momento de bastante emoção a todos os presentes. À minha frente dois participantes se entreolharam e um deles disse “Lindo, né?!”. Sem dúvida!

 

 

“Os artistas africanos produziram durante a história artes maiores, dignas de interesse e que convém estudar sem preconceito, multiplicando e, se possível, diversificando as abordagens e as perspectivas”[7]

Apesar de algumas incompreensões da fala de Abdou Sylla, talvez impostas àqueles que dependiam da tradução, é certo afirmar que sua fala se voltou para questionar os conceitos propostos pelo seminário, notadamente aquele que afirma a existência de uma arte africana. Ao contrário da fala de Thompson, bastante carismática e despreocupada em explorar conceitos, Sylla realizou uma fala mais rente ao texto, procurando esclarecer os equívocos da proposta temática da mesa e das generalizações.

Afirmando que não faz a parte prática do museu, o palestrante expôs que, ao receber o convite para a palestra, ficou perplexo, visto ser o tema da mesa bastante problemático. Decifrar e enigma pressupõem que a arte africana é um mistério, algo para além da nossa inteligibilidade, de uma explicação impossível pelos métodos que utilizamos às demais artes. Para Sylla, a arte africana é, do ponto de vista da sua compreensão, como qualquer outra expressão artística, das quais não nos referimos, quando da sua explicação, como enigmas.

Mas o principal problema seria falar em arte africana, no singular, afirmando uma unidade que não existe, como se o continente não fosse palco de uma diversidade imensa de produções artísticas. Este problema está ligado às generalizações. Para o palestrante, são as generalizações que, ao anularem as especificidades, impedem uma real compreensão do objeto estudado. Antes que gritem: relativista! É importante frisar que o historiador não pretende negar semelhanças, baseadas, inclusive, numa relação histórica e cultural entre estes povos - os antropólogos bem sabem que o isolacionismo cultural é mais um discurso relacionado a estratégias políticas do que uma constatação empírica -, mas mostrar que não se trata de uma massa homogênea, assim como não é homogênea uma arte européia ou arte sul-americana, e que estas artes não podem ser explicadas a partir de variáveis únicas como o território, a etnia, a língua falada, etc. O palestrante destacou a importância da etnologia para o estudo das artes, tendo em vista que, na sua visão, a estética sozinha comete muitas generalizações.

Na tentativa de entender a afirmação de uma unidade, Sylla propõe que uns dos motivos desta afirmação seja o lugar do olhar. O palestrante argumenta que, olhando de fora, comparando as artes de outros povos e continentes com a da África, temos a impressão de que há uma unidade, mas quando se entra nas artes africanas e se estuda as artes das diferentes etnias, percebe-se a diversidade das artes. E é por olhar uma diversidade da arte, a partir de um olhar para as etnias, que, de acordo com Sylla, muitos especialistas vão afirmar que a arte na África é étnica, correspondendo assim para cada etnia uma forma de arte. Mas Sylla mostrará que está abordagem sozinha também é problemática, pois há diferenças nas artes dentro de uma mesma etnia.

Durante toda a sua fala, Abdou Sylla realizou várias afirmações sobre as artes africanas, baseadas em diferentes etnólogos, no intuito, não de descartá-las, mas sim de apresentar como há uma variedade de perspectivas, relacionadas, por exemplo, às formas e ao uso, e que todas elas permitem compreender algum aspecto destas artes, ou alguns tipos de arte realizados na África, ressaltando que nenhuma delas, isoladamente, permite uma correta compreensão do que é produzido em todo o continente africano.

Dentre estas propostas de análise, Sylla dedicou grande parte da sua fala a explorar a discussão sobre a religiosidade das artes africanas, uma vez que, de acordo com o palestrante, a primeira unanimidade entre etnólogos e estetas é que as artes da África Negra são mágico-religiosas, ou seja, os objetos de arte são ferramentas e acessórios dos rituais mágico-religiosos. Sylla argumenta que esta generalização foi admitida por todos os pesquisadores até a metade do século XX, surgindo, desde então, outras perspectivas, como as relacionadas à estética, para compreensão das artes africanas.  Ainda que o palestrante critique as generalizações, ele parece não se importar em realizar generalizações relacionadas aos pesquisadores. Em vários momentos da mesa, Sylla afirmou “os etnólogos pensavam”, “os etnólogos afirmavam”, como se não houvesse divergências entre os pesquisadores, ainda que houvesse uma corrente dominante.

Outra generalização realizada por Abdou Sylla se refere ao entendimento do universo pelos africanos. Esta generalização está relacionada à questão que abordamos anteriormente da relação histórica e cultural dos povos.  Discutindo sobre a afirmação de que a arte africana é uma arte mágico-religiosa e que a etnologia e a etnoestética consideraram que era preciso distinguir a magia da religião, o palestrante afirmou a dificuldade de se fazer esta distinção, pois a religião e a magia se fundam no mesmo dogma, qual seja, na crença na existência de uma entidade criadora, a crença na existência de dois mundos, o visível e o invisível, a crença nos espíritos, nas forças, nas coisas, nos animais, crença na existência de uma interação entre os seres dos dois mundos, que funda o dinamismo dos seres e das coisas.  E, de acordo com o Sylla, este dogma, e muito dos seus corolários, seria compartilhado por todos os africanos. Ainda que eu esteja longe de ser uma especialista em povos africanos e que não seja impossível uma base comum, a partir da própria discussão proposta por Sylla, e também por Constantine Petridis, como veremos a diante, fica difícil acreditar que não haja variações e, até mesmo, reais diferenças no que ele denomina pensamento religioso e filosófico, visto que o próprio continente africano, e esta unidade que o termo africano impõe, é uma construção imposta por uma visão de fora, como àquela que vê somente uma arte e que foi criticada pelo historiador.

 

“As imagens são construções e representações da realidade, como são as análises de tais imagens”[8]

Assim como os outros palestrantes, Constantine Petridis nos falou sobre a importância da contextualização, mas a partir de uma proposta metodológica que pode ser aplicada pelos profissionais de museu. Com o tema “A multiplicidade dos significados da arte africana e a importância dos contextos” Petridis iniciou sua fala afirmando que ao invés de decifrar, gostaria de apresentar uma proposta de explicação e interpretação das artes africanas.

De acordo com o palestrante, os museólogos precisam enfrentar diversas questões, sendo a primeira o significado da própria arte e como traduzi-las a um público leigo. Partindo da experiência do museu onde trabalha, Petridis argumenta que a forma como os museus mostram a arte é descontextualizada, as interpretações acontecem nos rótulos e nas fotografias que sugerem como o objeto é usado no contexto e, atualmente, faz-se o uso de ferramentas tecnológicas permitindo a inclusão de vozes e, o mais importante para a arte africana, de acordo com o palestrante, a inclusão de imagens em movimento.

Petridis ressaltou, como praticamente em todos os problemas que levantou, que a descontextualização não é um privilégio das artes africanas, pois todas as artes apareciam descontextualizadas no museu. Mas, no debate, o palestrante nos disse que o museu é um constructo ocidental, dessa forma, poderíamos pensar que as obras de arte não ocidentais[9] estariam mais descontextualizadas neste ambiente, por terem sido produzidas sem ao menos vislumbrarem esta forma de contato com o público. Talvez esta questão esteja relacionada ao tipo de arte apresentada e aos contextos específicos em que esta arte foi produzida. De acordo com o que foi apresentado, pareceu limitado o escopo de atuação dos artistas africanos, como se estivessem presos a uma determinada temática e estética, e como se não fossem produzidos objetos absolutamente diferentes, principalmente se pensarmos em uma produção contemporânea, que ainda que se referencie a uma mesma simbologia, opere transformações que dificultem a própria identificação visual imediata destes significados. 

Petridis citou vários pesquisadores, notadamente pesquisadores belgas que se dedicaram ao estudo das artes africanas desde a década de 30 do século XX, ressaltando o pioneirismo da academia belga que as estudava como parte da disciplina de história da arte. Estes pesquisadores pioneiros que, tendo em vista o estado do conhecimento à época, da pouca literatura produzida, se iniciaram ao trabalho de campo, como diversos antropólogos desta geração, para compreender melhor esta arte e sugeriram métodos alternativos para o estudo da especificidade destas artes ditas não ocidentais.

Petridis dedicou sua fala a apresentar algumas perspectivas teóricas e problematizá-las, a partir, inclusive, das pesquisas que desenvolveu, dedicando-se, majoritariamente, à crítica do método de Panofsky, o sistema tripartite, abordando a relevância deste método para o estudo da arte africana, ressaltando que o mesmo já foi aplicado e avaliado em pesquisas de campo.

Através da crítica a Panofsky, Petridis expôs sua perspectiva metodológica de estudo das artes africanas. A primeira ressalva é relacionada à descrição factual proposta por Panofsky. Para o palestrante, esta proposta se torna um problema quando analisamos uma arte que é estilizada e abstrata, como são as artes africanas. Ainda sobre a descrição, o palestrante coloca objeções a uma análise que se proponha realista, já que não há possibilidade de se realizar meramente uma abordagem realista, pois não há análises realistas que não dão importância a diferentes aspectos igualmente importantes no continente africano. Para Petridis, é obvio que mesmo uma descrição deve ser vista como uma expressão de um ponto de vista particular. Como diz a velha e atual sentença de Franz Boas, o olho é o órgão da tradição. E é pelo problema da subjetividade, inerente aos estudos iconológicos e iconográficos, daquele que interpreta, seja ele nativo ou pesquisador, que Petridis defenderá uma multiplicidade de elementos para análise, a começar pela crítica às fontes orais, importantes fontes de informação no trabalho de campo, método que também deve ser submetido à crítica histórica, como qualquer tipo de pesquisa e análise. Petridis deu exemplos de pesquisadores que fizeram pesquisas nos mesmos locais e na mesma época e tiveram conclusões diferentes, tendo em vista seus informantes[10].

Outro elemento de análise para a interpretação das obras de artes é a revisão crítica da literatura, tanto oral quanto escrita; uma análise do discurso dos especialistas indígenas e também um exame do lado cultural e histórico do trabalho, da morfologia, das imagens usadas, no relacionamento com outras artes no contexto de desempenho e a compreensão de que o significado da arte não é estático. Assim como a questão da contextualização nos museus, a discussão sobre esta interpretação abrange não somente o estudo das artes africanas, mas de qualquer arte.

Petridis defende que a interpretação de um objeto pelo nativo depende do nível de conhecimento ou de iniciação da pessoa, e o seu significado muda com o tempo, de acordo com a relação que é estabelecida entre os usuários e os objetos. O significado depende das várias associações existentes e do uso. Pode acontecer, como acontece com figuras do povo Congo[11], de aqueles que usam os objetos o significarem de forma diferente daquele que o produziu.

Mas a principal objeção ao método de Panofsky é de que ele é muito hierárquico. Amparado em Suzanne Blier, pesquisadora de Harvard, Petridis afirma que na arte africana há tipicamente uma equivalência de vários significados distintos, dessa forma, esta não pode ser interpretada de forma simples e única. Há, como diz o titulo da palestra, uma multiplicidade de significados que existem concomitantemente em uma obra única, o que Thompson já havia explorado ao desmembrar a estátua Ioruba, nos mostrando o significado de cada elemento e ao que Abdou Sylla chamou a atenção em toda a sua fala.

A analogia entre forma e significado também é questionada. De acordo com Petridis, somente olhar um objeto não nos permite saber o que ele significou naquele momento especifico da história. Você tem um objeto que pode significar várias coisas e apenas o uso e o contexto do objeto é que vão revelar o significado de uma imagem específica. O problema é que há objetos históricos sobre os quais não há testemunhas ou relatos e, assim, o significado de muitos objetos é hipotético. Há muito pouco do que se pode falar com certeza. Pode-se propor uma hipótese e chegar algum tipo de sugestão, mas não se sabe com certeza o que significam.

Além da questão histórica, há de se considerar os aspectos geográficos. Segundo Petridis, a “variabilidade geográfica é muito significativa e problemática quando temos que interpretar o significado da arte africana”. Para o palestrante “estamos numa armadilha em relação ao tribal. A noção de um grupo étnico distinto, ou tribo, que carrega a idéia de fronteiras estilísticas, insulares, hermeticamente fechadas, onde pouca coisa muda. Essa abordagem ignora a complexidade, a diversidade dentro das civilizações africanas, inclusive as dimensões históricas e também as contribuições de artistas e de outros indivíduos da sociedade. Hoje estamos prontos a aceitar que não haja algo como o Ioruba, porque sabemos que são civilizações ricas, mas mesmo em pequenas comunidades, os povos podem parecer iguais, visualmente, mas em termos de conteúdo e significados são diferentes”. E há o caso de coisas que parecem distintas, mas são muito semelhantes, fazem parte de uma história compartilhada que originam conceitos semelhantes traduzidos em formas visuais distintas.

Ainda em relação à geografia, um  aspecto importante são os resultados de pesquisas discrepantes e as contradições nos escritos de estudiosos que trabalharam na mesma área. Petridis defende que, na verdade, eles não trabalharam na mesma área e que esta impressão de mesmo espaço está relacionada à idéia de que a África é um país grande, o que ela não é. De acordo com Petridis, “estamos falando de centenas de milhões de pessoas e é muito difícil fazer generalizações, mesmo que você estude os mesmos povos, na mesma época, há diferenças regionais, conectadas a vilarejos e até a entidades menores. Isso explica por que, geralmente, há tantas contradições na arte africana. E a idéia de que ela seja algo hermético, algo fechado, também levou à idéia falsa de que não há história, que arte africana, e a África, fossem totalmente isoladas do resto do mundo. O que não é verdade. Há integrações de imagens estrangeiras nos objetos locais com significados vernaculares e indígenas”.

Por fim, Petridis afirmou que a “perspectiva contextual, não apenas é importante para interpretar a arte africana, mas também quando analisamos os problemas complicados da estética”. Para o palestrante, entender o significado da arte africana terá uma conseqüência na apreciação do que é bonito e interessante para um público local. Argumenta que “infelizmente, este ponto de vista nunca é levado em consideração, nunca é tornado explícito nas exibições gerais, em museus, nas publicações, nunca foi uma consideração que foi feita em relação ao mercado, nos catálogos e, por isso, raramente os leilões mencionam as percepções locais da estética, mesmo em relação àquelas poucas tradições, onde algumas informações sobre o tópico estão disponíveis.” Para o historiador, esse conhecimento da estética e estes critérios de excelência são importantes, pois “ajudam a entender porque uma figura, uma máscara, tem uma aparência específica, ou seja, ajuda a entender a diversidade e a riqueza de estilos da arte africana e permitem que tenhamos uma escolha mais bem formada em relação ao objeto para que este seja selecionado para uma publicação, para uma exibição.”

 

***

Foram colocadas várias questões no debate que versaram sobre como trazer a “energia vital” das obras de arte africanas para o museu, de como trabalhar com a questão da autoria em uma arte que não tem a identificação de autores, da marginalidade da arte africana e das pesquisas que são desenvolvidas fora da Europa, da falta de participação ativa daqueles que são objetos do museu, e questões sobre a própria concepção de arte, que se referiam ao porquê de atribuirmos a determinados objetos a categoria de arte, o porquê atribuirmos esta concepção de arte ao que é produzido na África e o que é, para os grupos que vivem na África, isso que nós ocidentais chamamos de arte. De modo geral, estas questões estão relacionadas aos problemas que se apresentam quando falamos de populações ou grupos sociais que ocupam a posição de outros. Para os fins do relato, deter-me-ei em duas questões que obtiveram ressonância na fala dos palestrantes. Em comum, ambas tiveram o caráter de provocação aos palestrantes, corolário de um discurso de ultra valorização do discurso do nativo, o único legitimo a falar de si próprio.

A primeira questão foi dirigida ao Constantine Petridis e realizada por um participante do evento oriundo do Museum for African Art.  Este participante iniciou sua questão afirmando que os palestrantes ignoraram a exposição feita no Museum for African Art, onde se discutiu a estética do museu, que consiste no isolamento de um objeto para sua fruição. Afirmando que a iconografia não é somente simbólica, abstrata, mas envolve uma organização e dando exemplos de como o negro aparece em segundo plano na mídia, o participante criticou a fala de Petridis por ter se focado na contribuição dos pesquisadores belgas aos estudos das artes africanas[12].

A resposta de Petridis trouxe e retomou questões interessantes, para além da levantada especificamente pelo participante. Constantine Petridis afirmou que “não quis rever tudo o que foi escrito sobre arte africana, mas discutir como a arte africana é apresentada nos museus para uma determinada platéia”e que se referiu aos estudos monográficos realizados pelos Belgas para mostrar que estes estudos não começaram nos anos 60, mas sim nos anos 30, e que essas pesquisas não são conhecidas. Falando sobre o questionamento referente à exposição no museu, Petridis ampliou a discussão, relacionando-a a outras questões feitas pelo público. Argumentou que a exposição no Museum for African Art “atingiu poucas pessoas no mundo”e completou: “Nós especialistas sabemos tudo, mas não é o conhecimento das pessoas em geral que vão ao museu. E é isso que está em jogo aqui. Estamos num impasse de como a África e a arte africana se interconectam com a vida”. Se referindo ao participante afirmou: “Você já foi à África, você sabe que as coisas não são simples, mas ai você vai a um Museu e vê um objeto descontextualizado, com a legenda de uma autoridade anônima que diz esta máscara foi usada num ritual. Isso é problemático. É um desafio para nós museólogos, acadêmicos. Como se pode veicular estas contradições e estas diferenças. Acho que estas noções podem ser aplicadas a qualquer tipo de arte, do mundo todo. Eu sinto um alívio quando vejo um museu de arte enciclopédica nos Estados Unidos. A arte européia da Renascença tratada da mesma maneira que a arte africana, quando se tenta interpretar e contextualizar estas obras. O problema não se limita a arte africana.”

A grande questão para Constantine é de “como transformar o museu de arte em algo diferente do que tem sido nos últimos 250 anos”. Para o palestrante, o museu, de muitas maneiras, está separado da realidade[13], é como se houvesse dois mundos que somente superficialmente se interligam, e como lhe dar com isso é um grande desafio.

Referente ao questionamento sobre os museus, Abdou Sylla fez uma intervenção bastante interessante, encarando de forma bastante pragmática, o que às vezes assusta àqueles que reiteram determinadas questões apresentadas como insolúveis, o problema da descontextualização desta criação ocidental, mas que não se restringe atualmente somente ao Ocidente, que é o museu. Sylla afirmou que “há muito tempo os museólogos se deparam com esta questão. E é preciso fazer escolhas. E as escolhas foram feitas. O museu não é uma coisa africana, os objetos foram transplantados e então foram descontextualizados. Houve a tentativa a partir dos anos 70 de se constituir um museu com perspectiva antropológica, que consistia em reconstituir o meio, e o contexto de vida dos objetos de arte, como no museu em Dacar. Pensava-se que era possível reconstituir o contexto dos objetos, mas não é sempre possível reconstituir tudo o tempo todo. Há dificuldades materiais e também particulares, são muitas as dificuldades”. De acordo com o palestrante, “pode-se  privilegiar os museus pelo seu lado estético, mostrando os objetos de arte, qualquer que seja o seu contexto. Há muitas questões a serem discutidas e o debate está aberto, mas a museologia não pode deixar de lado a apresentação dos objetos, ainda que descontextualizados”.

Fechando a questão com aplausos, Thompson defendeu a existência dos museus, afirmando que o museu ao mostrar a arte, os livros, os periódicos, conquista o que deve ser conquistado: o pensamento e o trabalho de um povo.

A segunda questão que trataremos se refere àquilo que um participante denominou “museologia participativa”, adjetivo que adora acompanhar diferentes métodos e teorias das ciências sociais. O participante afirmou que, na noite anterior, havia conversado com integrantes da Irmandade da Boa Morte e perguntado quando elas se apresentariam. Ao responderem que já haviam realizado a apresentação, o mesmo as questionou dizendo que queria saber quando elas sentariam no lugar dos palestrantes e falariam sobre o que elas fazem, como elas interpretam suas próprias ações. Criticando àqueles que são remunerados para estudarem estas populações, propôs uma “reconceitualização do museu, na qual vemos uma pessoa do povo, que tem um conhecimento profundo sobre a sua estética, a sua inteligência, sobre o seu papel, em relação àqueles que têm a oportunidade de exercer outro tipo de inteligência e serem pagos por isso.”

Constantine Petridis, em resposta, afirmou que as duas abordagens não se excluem. Para tanto, o palestrante deu exemplo do museu em que trabalha, onde são utilizados os espaços de exposição  temporária para promoverem momentos nos quais as populações, de onde os objetos são oriundos, participam, seja falando sobre os objetos ou realizando cerimônias. Essa ação é realizada, de acordo com Petridis, no intuito de romper com uma abordagem meditativa e contemplativa do museu. O palestrante deu o exemplo de um padre que fica falando em um museu de arte bizantina e que proporciona aos visitantes deste uma interpretação de fé, às vezes diferente da interpretação do historiador da arte.  Ignorando as falas dos palestrantes, e na ânsia de resolver anos de desigualdade e exploração a partir de uma discussão que é também teórica, o participante absteve-se de pensar que o próprio museu, as análises, as pesquisas, os palestrantes e a platéia também fazem parte do contexto onde as artes africanas, e o discurso sobre elas, seja dos nativos, ou dos de fora, estão inseridos, e estes múltiplos sujeitos devem ser levados em conta, a não ser que se acredite na possibilidade de isolamento quando se propõe uma compreensão, independente da finalidade que se queira com esta.


[1]  Sobre os palestrantes ver perfil completo em www.museuafrobrasil.org.br

[2] Ouvi algumas vezes o comentário de alguns participantes que afirmavam terem vindo nesta mesa para “conhecer a bibliografia”, ou seja, para conhecer pessoalmente àqueles autores  que utilizaram em suas pesquisas.

[3] Questões relacionadas às diferenças culturais, às relações entre culturas, ao ponto de vista do observador, aos conceitos gerados fora das sociedades estudadas, a mudanças nas sociedades que para o ocidente são imutáveis, ao papel do “informante”, à autoridade antropológica, ao discurso do nativo e etc.

[4] Quando afirmo que estas questões são primevas quero dizer que elas são problemas que aparecem a nós, enquanto questões formuladas, desde as chamadas descobertas, e são elaboradas enquanto questionamento teórico desde o  surgimento da antropologia no início do século XX. Talvez fosse interessante que, ao invés de abordamos as artes africanas a partir destas questões, que se aplicam a diversos estudos, fosse apresentado como o estudo das artes africanas iluminam estes problemas teóricos relacionados às pesquisas que se dedicam a diferentes sociedades que são estudas a partir de conceitos e teorias criados fora do contexto no qual estão inseridas.

[5]  As aspas deste tópico se referem às falas de Robert Thompson.

[6] Muito se falou na importância do contexto para a compreensão da arte, mas faltou explorar uma dimensão fundamental que é a da arte não como um epifenômeno, mas como criadora de contextos. Até que ponto as artes africanas influenciam ou determinam novas formas de pensar, de se organizar, de se relacionar? Ou será que só atribuímos essa capacidade às expressões artísticas ditas ocidentais, baseadas no preceito da expressão individual e por isso capaz de inovação e transformação cultural?

[7] As aspas deste  tópico se referem às falas de Abdou Sylla.

[8] As aspas deste tópico se referem às falas de Constantine Petridis

[9]  A discussão sobre o que é ou não ocidental é bastante interessante. Uma pessoa da platéia, ao fazer uma pergunta sobre a produção moderna de arte na África, ressaltando que a mesa deu espaço somente a arte tradicional, disse que mora na Holanda e que, para os holandeses, o Brasil não é ocidente. Afinal, o que é outro quando falamos no Brasil? Talvez caiba pensar nas generalizações que usadas para definir àqueles que em vários aspectos ocupam posições dominantes em relação às hierarquias estabelecidas entre os países e continentes, e que, portanto, não são questionadas, tendo em vista o impacto, mais político do que teórico, que estas generalizações produzem.

[10] Como afirma Marcio Goldmam, “termo infame que a antropologia compartilha com a polícia”.

[11]  Petridis argumenta que, às vezes, é o usuário que vai ser o responsável pela aparência, a parte física do objeto. O palestrante deu o exemplo de figuras do povo Congo, onde a gravura é o suporte do objeto que se torna algo além do que uma escultura de madeira, devido ao especialista de rituais, que vai colocar outros significados de outras substâncias que também possuem forte significado para a comunidade em questão.

[12]  Vale a pena citar: “E todos aqueles belgas que você mencionou, eu sei que vocês querem compensar todas aquelas coisas boas que fizeram, mas nós americanos estamos aí nas vitrines.”

[13] Constantine Petridis em sua fala afirmou que geralmente quando falamos de arte africana, falamos de significado, pensamos em uma pergunta simples: o que isso representa?  Mas a arte africana não tem a ver com representação, mas sim com o fazer, o agir. Não é representar nada, é tornar presente uma força, uma entidade do outro mundo. No debate, foi questionado como trazer ao museu uma arte tão cheia de potência. No momento em que Petridis colocava a problemática dessa separação do museu da realidade, a pessoa que havia feita esta questão, afirmou: Sobretudo numa arte tão cheia de energia e de força. Ao que Petridis respondeu: Os ícones bizantinos e medievais também são cheios de energia e força! Afirmando, mais uma vez, que os problemas apresentados em relação à compreensão da arte africana, não o são exclusivos.