Museus indígenas: a decolonização necessária no Japão e a emergência no Brasil
por Mauro Bellesa para o Instituto de Estudos Avançados - IEA
http://www.iea.usp.br/noticias/o-polemico-processo-de-decolonizacao-dos-museus-japoneses
É conhecida a valorização que a cultura japonesa tem dado há séculos a uma pretensa homogeneidade étnica de sua população. No entanto, essa concepção tem enfraquecido neste século, principalmente a partir de 2013, quando Tóquio foi escolhida para sediar a Olimpíada e a Paraolimpíada de 2020 (realizadas em 2021, devido à pandemia de Covid-19). A intenção governamental passou a ser apresentar ao mundo um novo Japão, sintonizado com a ênfase na diversidade e na inclusão que permeia diversas sociedades na atualidade.
Uma das formas que o governou japonês encontrou para isso foi promover uma crescente valorização da cultura dos ainus, indígenas do norte do país, que somam atualmente 13 mil pessoas, pelos dados oficiais, contingente que deve ser bem maior se consideradas as pessoas que deixaram de se reconhecer como ainus, devido à rejeição.
Agora, com as políticas de valorização da cultura desse povo, essas pessoas estão tentando se redefinir, segundo a socióloga Mariko Murata, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Kansai: "Os museus podem ser um espaço para a realização desse processo de redefinição. No entanto, eles são muito coloniais, o que nos faz pensar sobre como podemos decolonizá-los”,
No dia 29 de maio, Murata foi a expositora no seminário Decolonizando Museus e Exposições sobre os Indígenas Ainus no Japão, organizado pelo Grupo de Pesquisa Fórum Permanente: Sistema Cultural entre o Público e o Privado e pela Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência.
Como parte da ação governamental de valorização da cultura ainu, em 2020, foi inaugurado o Museu Nacional Ainu Upopoy, em Hokkaido, a grande ilha no norte do país. No entanto, apesar da importância da iniciativa, surgiram muitas críticas sobre a forma como o museu se estruturou e apresenta a cultura ainu, segundo a socióloga.
De acordo com Murata, o governo central japonês começou a tomar as terras dos ainus no século 19 e o clã Matsumae, que desde o fim do século 16 era responsável pela fronteira norte, proibiu que eles praticassem o comércio por conta própria. “No período que se seguiu, o governo criou uma agência de reconhecimento da terra e foi então que a ilha foi denominada Hokkaido, em 1863, datando daí o início da política de assimilação dos ainus”, disse
No final do século 19 e início do 20, ainus chegaram a ser exibidas em exposições industriais, afirmou a pesquisadora. “Depois da Segunda Guerra, eles foram ignorados, como se não existissem, e sua cultura foi praticamente extinta. Apenas em 2008 o governou os reconheceu como um povo indígena do Japão.”
Com a escolha de Tóquio para a Olimpíada e a Paraolimpíada, de repente a cultura ainu passou a ter destaque. "O governo queria tornar sua cultura um símbolo de diversidade do Japão, algo importante para o turismo e para as relações políticas globais", afirmou a pesquisadora.
Segundo Murata, quando o Upopoy foi inaugurado, havia cerca de 20 pequenos museus, com coleções estabelecidas por ainus ou formadas por pesquisadores, governos ou comerciantes. Os ainus também já haviam se envolvido em atividades turísticas para obtenção de renda, disse.
Murato relatou que uma liderança ainu criou um museu em 1973, doando o prédio e os objetos para a municipalidade alguns anos depois. Em 1991, foi construído um novo museu, próximo ao antigo, mas em terra sagrada para os ainus. O criador do museu antigo processou o governo, mas perdeu a causa. No entanto, essa derrota teve um lado positivo, pois significou que a corte reconhecia legalmente que rejeitava a cultura ainu, o que era o mesmo que reconhecer que o Japão não era unitário etnicamente, que havia indígenas no país, afirmou a socióloga.
Em 1984, os ainus construíram um museu, que foi melhorado e agora integra o Upopoy. Nele há um memorial e continua sendo terra ainu. Boa parte do acerto é constituído de objetos devolvidos por universidades. As instalações são semelhantes ao que era o museu antigamente, mas agora preservadas adequadamente, comentou Murato.
Além de objetos e registros do passado da etnia, o Upopoy também mostra como os ainus são hoje, suas atividades como pescadores, comerciantes, cozinheiros, exploradores da floresta etc. As maiores críticas sobre como o museu apresenta a cultura ainu está na narrativa controvertida, afirmou Murato. “Os ainus são ágrafos. Os painéis são em japonês e outras quatro línguas. É utilizado o pronome nós, como em 'nossa terra'. Usar 'nós' para uma exposição não explica tudo, como o caso da relação com os colonizadores e o processo de colonização. Em japonês, isso fica ainda mais difícil, pois raramente usamos o sujeito numa frase, soa esquisito.”
Segundo Murato, novos tipos de exposição evitam representar a cultura ainu como pré-moderna, mostrando o povo na sua vida atual e com excesso de recursos digitais. “Uma das críticas é de que o museu ignora a história trágica dos ainus nos últimos 150 anos. A cultura ainu é explicada do ponto de vista japonês e, além disso, ignorando a espiritualidade do povo. Quando se fala do risco de extinção da cultura ainu, não é obrigação do museu falar de quem é a culpa?”, questionou.
No entanto, apesar de todos os comentários críticos, a situação levantada pelo Upopoy iniciou uma discussão que nunca havia acontecido, disse. "A decolonização dos museus no Japão é uma questão polêmica. Estamos começando a criar esse espaço para pensar o Japão como não homogêneo".
Para ela, o Japão precisa reconhecer sua diversidade, que inclui coreanos, okinawanos, ainus e imigrantes que foram lá trabalhar, como os brasileiros. “Os estrangeiros são 2% da população, número que deve aumentar. A diversidade é crucial para um país como o Japão continuar existindo”, ressaltou.
Decolonização no Brasil
O encontro também abriu espaço para a realidade brasileira quanto à decolonização, com apresentações sobre museus criados por povos indígenas e sobre o Museu Afro Brasil Emanoel Araújo. Os participantes indígenas foram: a assistente de pajé kaingang Susilene Elias de Melo, uma das responsáveis pelo Museu Worikg, criado a partir do acervo de sua avó, Jandira Ubelino, na Terra Indígena Vanuíre, no município de Arco-Íris, SP; e Suzenalson da Silva Santos , doutorando em história social na UFC e coordenador do Ponto de Cultura: Memorial Museu Indígena Kanindé, localizado na Aldeia Sitio Fernandes, em Aratuba, CE.
Pelo Museu Afro Brasil, falou sua diretora executiva, Sandra Mara Salles. Um tema paralelo ao encontro, mas envolvendo questões étnicas, foi a apresentação sobre artistas visuais nipo-brasileiros feita pela semioticista Michiko Okano, da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Unifesp.
Em sua fala, Suzenalson da Silva Santos disse que nos anos 90, houve um movimento de renascimento das culturas indígenas no Ceará: "Houve a apropriação de um formato dos colonizadores, o dito museu, e começaram a surgir espaços chamados de museus".
Em 1995, seu pai, Sotero, cacique e mestre da cultura Canindé, criou um pequeno espaço para mostrar a história de seu povo na sociedade. “Dessa iniciativa nasceram outras etapas e ações do processo”, disse.
"Não tínhamos escola quando o museu foi criado. Fomos um dos povos a conquistar escolas muito tarde, só em 2006. O museu apresenta objetos no contexto que as universidades têm chamado de decolonização, uma outra perspectiva para falar desse movimento indígena.”
Segundo ele, a implantação do museu trouxe muita formação para a comunidade, abrangendo várias gerações, do mestre Sotero até os mais novos, formados na perspectiva da educação patrimonial e da vivência com o mestre. "As atividades do museu se relacionam com a educação indígena. Ele fica ao lado da escola e faz parte do currículo escolar", disse.
Santos afirmou que as relações do museu com outros povos indígenas e além deles têm crescido: "Em 2014, foi criada uma rede de memória e museologia que envolve comunidades indígenas de todos os estados do país. São espaços, pontos de cultura, casas de memória. Só no Ceará, são 17 locais. No último encontro da rede, havia representantes de 32 iniciativas de vários pontos do país".
Ele destacou que essas iniciativas têm sido organizadas de forma autônoma ou em parceria com vários atores, como as universidades. Acrescentou que há aldeias que trabalham com turismo comunitário.
Segundo Santos, o surgimento dos museus indígenas não significa apenas um esforço de autoafirmação, mas também um movimento de construção da própria memória das comunidades, em processos dinamizados de acordo com as peculiaridades de cada povo.
Susilene Elias de Melo contou que o desejo de construir um museu para registrar a cultura de kaingang nasceu em 2015 como desejo de sua avó Jandira Ubelina, pajé que morreu no ano seguinte. “Ficamos com a necessidade de colocar o museu em pé, como ela queria. Em 2017 fizemos a primeira exposição do Museu Worikg”, relatou.
Agora, Susilene dá continuidade ao trabalho com sua mãe, a nova pajé, da qual é assistente, assim como foi de sua avó. “Canto, dança, alimentação, aprendi tudo com as duas”, afirmou.
O museu fica aberto durante todo o ano e tem várias visitas de escolas por semana. “Não temos muita ajuda. Tiramos um pouco daqui, um pouco dali", disse.
Durante muito tempo a cultura kaingang na região de Tupã “ficou adormecida, até para proteger nosso território”, afirmou. "Diziam que os kaingangs estavam extintos. Estamos firmes e fortes no centro-oeste paulista. A gente é um museu vivo.”
Em Tupã, existe o Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre, do governo do estado, dedicado à memória dos povos indígenas do Oeste paulista. Susilene disse não ter queixa do museu, parceiro do Worikg. “Se hoje temos nosso museu, foi devido a ida da minha mãe ao museu de Tupã. Ela queria saber por que os não indígenas falam tanto sobre os indígenas.” Ela também citou parceria com o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP.
O museu não é só sobre a cultura material. Há um lado espiritual, como local de cura e fortalecimento, disse. “As pessoas pensam que vão ver um museu igual ao da cidade. Mas o museu é o território, é tudo aquilo que se vive. Eu sou museu, minha mãe é museu. Tem fogueira dentro do museu, canto, dança, caminhada na trilha. E estamos construindo nossa casa de barro",
Segundo a diretora executiva do Museu Afro Brasil Emanoel Araújo [o nome de seu criador foi acrescentado depois de sua morte em 2022], a instituição vive um momento de transição, com uma nova reflexão sobre a formação da coleção e sobre a programação cultural.
Sandra recordou que o museu foi criado a partir da coleção particular do artista, curador e gestor cultural Emanoel Araújo, que o fundou em 2004 e permaneceu por 18 anos como seu diretor e curador.
O museu contém itens relacionados com a religiosidade de matriz africana e do catolicismo popular, objetos de trabalho e da vida nas fazendas, esculturas, pinturas, entre outros itens. O acervo inclui fotografias e informações sobre pessoas negras de diferentes áreas das artes e do conhecimento.
Para ela, o museu é decolonial na sua construção narrativa e na perspectiva, ao falar da história não oficial. "Mas, sendo a narrativa de um homem só, seu criador e dirigente, é preciso, enquanto prática decolonial, abrir espaço para que outras vozes sejam ouvidas", disse.
“Desde o ano passado, o museu vem tentando construir uma rede de acervos afro-brasileiros, para se conectar com outros espaços, inclusive coleções particulares, de forma a ter uma outra visão de sua própria coleção”, afirmou.
Um exemplo dessas conexões é o diálogo iniciado em 2018 com o Quilombo de São Pedro, no Vale do Ribeira, SP, com o objetivo de criar lá um centro de memória, para promoção do turismo e de práticas culturais. Os moradores do quilombo também participam do Museu Afro Brasil, como no caso da mostra “Roça É Vida”, que será inaugurada no dia 24 de junho, com curadoria compartilhada com grupo de trabalho do quilombo.
O plano museológico está sendo repensado com a participação de todos os profissionais da instituição, afirmou Sandra. Haverá também participação externa nessa discussão, com rodas de conversas e grupos de trabalho. “Vamos enviar convites para que diversos setores da sociedade participem disso, para que a sociedade diga que museu deseja. Acho que esse é o momento de o movimento negro participar da redefinição do modelo do museu", disse.
Fotos (a partir do alto): 1, 3 e 4, Museu Nacional Ainu Upopoy; 2, Leonor Calasans/IEA-USP; 5, Memorial Museu Indígena Kanindé; 6, arquivo pessoal de Susenalson da Silva Santos; 7, Museu Worikg; 8, Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre; 9, Museu Afro Brasil Emanoel Araújo; 10, IEA-USP