Descentralizando o olhar: museus indígenas no Japão e no Brasil
Por Mirella Del Mazza
O final do mês de maio de 2023 no Brasil foi marcado pela tensão diante da votação do marco temporal, uma tese jurídica baseada na ideia de que os povos indígenas têm direito apenas às terras ocupadas ou que estivessem em processo de disputa até a data de 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal. Esse ambiente de disputas, que tenta colocar as populações originárias do Brasil como antagonistas de uma certa ideia de progresso (ao mesmo tempo em que ameaça a continuidade de seus costumes e crenças), demonstra como o debate sobre colonização e seus efeitos na cultura é pautado em uma ideia de hierarquia que privilegia o homem europeu branco em relação a sujeitos negros e indígenas.
Esse contexto parece propício para que se encare com mais profundidade uma discussão que ainda é tem muito a avançar não só no Brasil, mas em todo o mundo: qual o papel das instituições culturais no debate acerca de uma produção de conhecimento que abarque uma perspectiva descentralizada e decolonial? É fundamental que as organizações culturais e seus agentes não só reflitam, mas ajam para que esses temas sejam centrais e o arcabouço colonial seja superado. Buscando propor caminhos para responder a toda essa problemática, o Instituto de Estudos Avançados da USP promoveu o seminário Entre Diversidade e Decolonização: Museus como Mídia e a Representação dos Ainu em Museus no Japão, organizado pelo Grupo de Pesquisa Fórum Permanente em 29 de maio de 2023.
A fala inicial da expositora Mariko Murata, professora do Departamento de Sociologia da Kansai University no Japão, trouxe mais informações acerca da cultura Ainu, uma população indígena localizada no norte da ilha e que atualmente não passa da marca dos 13 mil habitantes no Japão. Segundo Murata, há registros dos Ainu na região desde o século XII, mas a partir do século XVII se iniciou um processo de apagamento da sua cultura, tendo começado com os Ainu sendo impedidos de comercializar com populações vizinhas pelo governo japonês. Após dois séculos de perseguição política, já no século XIX, diversas ações de assimilação dos Ainu foram implementadas pelo governo japonês, que inclusive renomeou a região. É possível notar semelhanças entre a população Ainu e outras culturas indígenas brasileiras, que também foram silenciadas pela autoridade local em nome de uma “hegemonia nacional”. Além disso, Murata relata que o povo Ainu chegou a ser exposto como atração em exposições universais ao longo dos séculos XIX e XX.
O exemplo japonês abordado por Murata chama a atenção para dois tipos de museus dedicados à cultura Ainu no país: há museus desenvolvidos pelos próprios remanescentes, que preservaram sua memória e cultura e também fomentaram o turismo da região, ajudando a afirmar uma história que quase foi apagada. Outro tipo de museu Ainu é o oficial, no caso apresentado no seminário, o Museu Nacional Ainu Upopoy, inaugurado em 2020 e parte de uma tentativa do Japão em criar símbolos nacionais que denotassem uma narrativa progressista e mais diversa, especialmente em razão das Olimpíadas de Tóquio. O Upopoy, desde sua inauguração, foi criticado por reproduzir as práticas coloniais, alguns exemplos citados por Murata foram a retirada de objetos para exposição que acabaram descontextualizando o passado sangrento que tentou apagar a população Ainu, o uso de linguagem escrita para representar uma cultura ágrafa, a exposição repleta de aparelhos eletrônicos que em nada remetem à cosmogonia desse povo. Fica aparente que o museu Upopoy falhou em apontar a crítica necessária ao processo de apagamento de culturas diversas em nome de uma narrativa criada artificialmente de um Japão único e homogêneo.
Aqui é importante iniciar uma reflexão sobre o que é um museu e qual a sua contribuição para a sociedade. Historicamente, no decorrer do século XIX os museus tiveram extrema importância para a constituição de identidades nacionais, em um período que os Estados-Nação estavam se consolidando, os museus serviram como símbolos importantes de culturas que se afirmaram sempre em oposição a outras, ou seja, não havia espaço para multiplicidade e diálogo, era a máxima expressão do plano colonial que extermina tudo aquilo que pareça diferente. Em artigo publicado acerca da demarcação de terras indígenas no Brasil, as autoras Andréa Rosendo da Silva e Paloma Gerzeli Pitre citam o sociólogo Ramon Grosfoguel para delinear o conceito de colonialidade, o qual salienta que o racismo é componente organizador de relações de dominação pautadas em hierarquia. Segundo, Grosfiguel, o racismo se organiza a partir de dentro de todas as relações sociais hierárquicas de dominação da modernidade. O museu, como equipamento cultural, reproduziu essa lógica ao longo do séculos XIX e XX, o que se nota ao verificarmos práticas museológicas que privilegiam a produção europeia, além do constante assalto à manifestação cultural de povos conquistados, que era seguidamente expropriada de seus locais de origem para servir como símbolo de conquista a quilômetros de distância de seu local de produção.
Em oposição a essa ideia de museu, o movimento de decolonização não deve se limitar a reflexões, mas sim partir para a ação, pois é inegável a importância da discussão, mas também é essencial pensar em como fazer a decolonização no ambiente dos museus. Após séculos de predominância de um modelo eurocêntrico, a ação para decolonização no ambiente museal passa a tomar corpo a partir do começo do século XXI. A autora Brenda Caro Cocotle, em artigo que reflete sobre o início desse debate e seus pontos cegos, entre eles, uma ideia errada de que a mera representação será capaz de dar conta de tamanha mudança de paradigma. A autora salienta que “o indígena, a mulher, o afrodescendente e o chicano ‘ganharam voz’ pelo outro e raras vezes por si mesmos; foram transformados em tema ou, no pior dos casos, objeto e fetiche museológico”. O ambiente museal deve repensar suas práticas para que haja protagonismo daqueles que foram sistematicamente apagados da história oficial. E esse partir para a ação pode ser percebido na fala dos convidados brasileiros no seminário: Susilene Elias de Melo, assistente de pajé kaingang e atuante no Museu Worikg, localizado na Terra Indígena Vanuíre, no município de Arco-Íris em São Paulo; e Suzenalson da Silva Santos, doutorando em história social na UFC e coordenador do Ponto de Cultura: Memorial Museu Indígena Kanindé, localizado na Aldeia Sitio Fernandes, em Aratuba no Ceará trouxeram ao debate exemplos ricos de museus indígenas que estão recontando a história de seus povos sob uma perspectiva inspiradora.
As falas de Susilene e Suzenalson no seminário denotam a diferença de um equipamento cultural feito a partir da vivências da coletividade na qual está inserido. O Museu Worikg foi fundado a partir das ideias da avó de Susilene, Jandira Umbelino. Após o seu falecimento em 2016, a comunidade se uniu para dar continuidade ao seu legado. O museu remete a um questionamento da mãe de Susilene sobre o porquê do povo não indígena falar tanto dos povos indígenas. Esse questionamento aparentemente simples abarca a grande questão da narrativa colonial: quem é o dono da voz? Quem é o responsável pela narrativa? Nesse sentido, o Museu Worikg dá aos visitantes a oportunidade de fazer uma imersão na cultura kaingang e mudar a perspectiva, a cultura material e imaterial kaingang está presente por meio de cantos, danças, caminhadas e rituais, entre eles a fogueira que é acesa dentro do próprio museu, ou seja, é um museu para além da narrativa através de objetos. A fala de Suzenalson também lembra como processos de memória estão intimamente ligados à ideia de território, na medida em que o reconhecimento de si passa também pelo pertencimento àquele local.
Os museus indígenas apresentados apontam para um questionamento importante: como o museu descoloniza seu discurso? Em 2022, o Conselho Internacional de Museus (ICOM) aprovou uma nova definição para museus. O novo texto surgiu após intensas discussões e busca responder demandas contemporâneas, tais como sustentabilidade, diversidade, comunidade e inclusão. O texto, traduzido para o português, enuncia que:
“Um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos e ao serviço da sociedade que pesquisa, coleciona, conserva, interpreta e expõe o patrimônio material e imaterial. Abertos ao público, acessíveis e inclusivos, os museus fomentam a diversidade e a sustentabilidade. Com a participação das comunidades, os museus funcionam e comunicam de forma ética e profissional, proporcionando experiências diversas para educação, fruição, reflexão e partilha de conhecimentos."
A definição acima demonstra que o museu do século XIX quer superar um viés moderno que parece não ser mais capaz de traduzir os anseios de nosso tempo. O século XX, marcado pelas duas guerras mundiais, os campos de concentração e a ameaça constante de uma bomba atômica, evidenciou o que Walter Benjamin tratou ao salientar a ligação estreita entre modernidade e barbárie. Em um debate que trouxe o questionamento do legado de um povo indígena quase aniquilado no Japão, o mesmo país que foi atacado em Hiroshima e Nagasaki, é perceptível como a ideia de modernidade está em xeque no século XIX, não sendo mais possível uma ideologia moderna abarcar a complexidade da busca pela emancipação humana.
A partir dessa perspectiva, a fala da convidada Michiko Okano, professora associada do programa de graduação e pós-graduação do Departamento de Artes da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo, acerca da arte nipo-brasileira trouxe importante reflexão sobre caminhos possíveis para um olhar decolonial da arte. Em artigo publicado em 2022, Okano comenta a transculturalidade a partir da obra do filósofo alemão Wolfgang Welsch, um conceito que nos ajuda a abarcar o trabalho de artistas cuja obra remete a muitos modos de vida e culturas simultaneamente, como é o caso de nipo-brasileiros, assim como são multifacetados os trabalhos presentes em um museu como o Museu Afro Brasil Emanoel Araújo, também representado no seminário por Sandra Mara Salles, coordenadora de planejamento curatorial do museu. É interessante relacionar o museu que surgiu a partir do acervo particular de seu fundador, o artista e curador Emanoel Araújo, museu esse composto por obras abordando temas da negritude através dos universos culturais africanos e afro-brasileiros, com o tema de pesquisa de Michiko Okano, focado na busca por um identidade nipo-brasileira. Destaca-se a intervenção da escritora e professora Conceição Evaristo, presente como convidada no seminário, que fez uma intervenção inspiradora ao refletir sobre como assumir uma identificação quando há identidade dada, pois nossa sociedade é organizada através de identidades raciais, o que significa que um branco não precisa se apresentar como “branco-brasileiro”, diferentemente de outros povos. Evaristo lembrou que o discurso da arte é um dos que mais diz da identidade de um grupo: o que nos leva a questionar: quais grupos identitários estão contemplados no museu decolonial?
O trabalho de Mariko Murata defende que o museu é uma mídia e como tal é meio de expressão de mensagens para a comunidade na qual está inserido. Esse conceito levanta a discussão de que tipo de mensagem um museu que se pretende decolonial está apto a levar para aqueles que o frequentam. O passado de conflitos, se for trazido à tona sem uma discussão aprofundada, pode tentar reescrever a história à parte da verdade factual, do mesmo modo, pode apagar toda uma cultura. Mariko Murata também alerta que enquanto grandes projetos para descolonizar museus se concentram em questões de escravidão e perseguição de povos indígenas, a descolonização não deve se limitar apenas ao colonialismo, há aqui um sentido mais amplo, cujo objeto é descentralizar a visão eurocêntrica e desconstruir questões de gênero, etnia e alteridade. Durante o debate, a convidada Conceição Evaristo lembrou do conceito de Beatriz Nascimento sobre a práxis brasileira quilombola ao defender que numa perspectiva decolonial, as metáforas devem incorporar sentimento decolonial, substituindo a ideia de gueto para ideia de quilombo. Sob essa ótica, é interessante pensar no conceito de contra-colonização defendido por Nego Bispo, o qual une quilombolas e indígenas numa perspectiva que ele intitula como “afro-pindorâmica” e a qual entende essas culturas como foco de resistência à colonização. Nesse sentido, fica evidente que as trocas realizadas no seminário com a presença de representantes tanto de museus indígenas quanto do museu afro foram essenciais para apontar caminhos para uma ação decolonial em museus não só no Brasil, mas no mundo.
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