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Uma “fotografia” do 10º Encontro Paulista de Museus

Cayo Honorato Relato crítico síntese do 10º Encontro Paulista de Museus: “Gestão e Governança”

Cayo Honorato - 2021

 

Relato crítico síntese do 10º Encontro Paulista de Museus: “Gestão e Governança”

Este relato faz parte do livro: Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus

Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus Encontro Paulista de Museus

 

Este não é um relato crítico. Os pressupostos da crítica foram a tal ponto abalados que assumi-los sem outra reflexão pode incorrer numa simples postura ou transferência de responsabilidade. Embora essa reflexão deva ser feita, minhas intenções aqui são bem mais modestas.

Neste relato “síntese”, procuro apanhar que “fotografia” o 10º Encontro Paulista de Museus teria tirado em meados de 2018 do debate feito sobre ou por essas instituições. Embora se possa identificar a recorrência ou continuidade de alguns temas, em meio às questões mais recentes com que os museus se defrontavam naquele momento, três anos depois, a impressão de que esse instantâneo amarelou antes do tempo é inevitável.

Afinal, que planejamento ou “desenvolvimento” estratégico poderia ter previsto a conjunção entre o governo Bolsonaro e a pandemia do coronavírus? Vivemos uma situação que não só afeta diretamente o próprio funcionamento e manutenção dos museus como solicitaria de quaisquer instituições dedicadas ao “interesse público” uma revisão completa de seu próprio papel social, sem com isso pressupor a existência de condições favoráveis para desenvolver essa tarefa. Certamente, há cada vez mais desafios e cada vez menos condições.

O Encontro aconteceu no auditório Simón Bolívar do Memorial da América Latina, entre os dias 18 e 20 de julho de 2018. O auditório havia sido reaberto seis meses antes, após mais de quatro anos fechado desde a sua destruição por um incêndio em 2013. Naquele julho, entre a prisão de Lula em 7 de abril e a impugnação de sua candidatura pelo TSE em 31 de agosto, o resultado das eleições de 2018 ainda era bastante indefinido. Também não se podia prever o incêndio do Museu Nacional seis semanas depois. Os museus pareciam viver o rescaldo dos ataques conservadores ou mesmo de ódio, em setembro de 2017, às exposições e trabalhos de arte – o que se demonstrou ser parte de uma estratégia vitoriosa, se considerarmos o saldo político das guerras culturais.

Com o tema “gestão e governança”, o Encontro ofereceu uma programação dinâmica de conferências, painéis, mesas, sessões, encontros, reuniões, seminários e oficinas, reunindo profissionais e interessados das várias regiões do estado de São Paulo, mas também de outras partes do país, com a presença de convidados internacionais. A cobertura do Fórum Permanente produziu 14 registros em vídeo do evento, além de sete relatos críticos, todos disponibilizados em seu site[1].

As circunstâncias em que aceitei o convite para escrever este relato – no fatídico mês de março de 2021, quando museus e outros espaços voltaram a ser fechados – me fizeram adotar, imediatamente, a sugestão de que eu considerasse apenas os relatos críticos como referência. É importante que o leitor esteja ciente desses limites, inclusive de que eu não estive presente no evento. Em todo caso, o caráter altamente mediado das referências adotadas, relativamente ao que terá acontecido no Encontro, não dispensa minha tentativa de ser aqui o mais objetivo possível.

Um primeiro elemento que para mim se destaca, como parte daquela “fotografia”, diz respeito à atuação das instituições museológicas em uma sociedade cada vez mais culturalmente plural e politicamente fragmentada, além de marcada por desigualdades sociais. O desafio que se configurava em julho de 2018, tal como se pode depreender de um dos relatos, refere-se à necessidade de os museus não só reavaliarem os objetos e narrativas de seus acervos e exposições, de modo a acolher questões e perspectivas de grupos marginalizados, mas também responderem à resistência de outros setores da sociedade, que não aceitam a presença dessas questões na esfera pública.

Em 2018, aquele processo de reavaliação se encontrava em vias de consolidação, ao menos no sentido de tender a um consenso no campo museológico. Mas o desafio aqui tem pelo menos duas frentes. A primeira parece ter sido tematizada em mais de uma sessão do Encontro, chamando a atenção para a responsabilidade do museu tanto em ser de algum modo “universalista” – no sentido de não endereçar suas revisões exclusivamente aos grupos representados – quanto em não classificar experiências particulares em grupos fechados, que não se comunicam com outras narrativas. Em alguns casos, certamente, a oportunidade de endereçar uma exposição aos próprios representados, como sujeitos também em formação, traz outra camada para o desafio em questão.

A segunda frente, que talvez não tenha sido diretamente tematizada, diz respeito à recepção pelos museus justamente daqueles setores que resistem àquelas reavaliações, considerando o horizonte da formação de públicos dispostos a lidar com as alteridades e contradições sociais. Observe-se que, naquele momento, a noção de fragmentação em sentido conflitivo aparecia em contraponto à de pluralidade em sentido convivial. A partir das eleições de 2018, é a própria experiência dos rompimentos intrafamiliares, de uma convivência cada vez mais próxima com o estranhamento daqueles que antes reconhecíamos como nossos, que vem sobrecarregar o problema a ser enfrentado.

Um segundo elemento passa pelo modo como o problema da memória, dos monumentos e dos memoriais – tal como recebido pelos museus – articula relações entre o passado, o presente e o futuro. Inicialmente, o problema se coloca nos termos de um debate entre o dever de lembrar e o direito de esquecer, mediado pela possibilidade de uma memória justa, entendendo-se que a memória não pode se sobrepor à justiça. Nesse contexto, reivindica-se que o museu seja um árbitro das diferentes temporalidades em que vivemos, propondo novas configurações do possível, mas também que a comunidade seja convidada a participar do tratamento da memória traumática, de modo que a experiência do sofrimento seja trazida para o cotidiano, em vez de sacralizada ou heroificada.

Nos diferentes relatos, aponta-se que a memória e os esforços de preservação podem tanto higienizar quanto monumentalizar o passado. Em um relato, levanta-se a questão sobre o que a preservação pode descartar, ou, ainda, se algumas “descaracterizações” não deveriam, antes, ser consideradas parte do patrimônio arquitetônico em questão. Noutro relato, reivindica-se uma “instância de atrito”, para que a memória musealizada não se apresente de forma supostamente autojustificável, distorcida por uma função simbólica que adjetiva os objetos para si, em detrimento às vezes desses mesmos objetos.

O que, retrospectivamente, esse debate parece desconsiderar é que o problema da representação da memória não pode mais ser resolvido por uma simples questão de acesso – ainda que qualificado – aos documentos, pesquisas e exposições, desde que a propagação dos revisionismos pelos canais de falsas notícias ocorre em velocidade maior do que é possível desmenti-los. Também a perspectiva do trauma como algo sendo processado no presente – o que, no caso da conjunção do governo Bolsonaro com a pandemia, tem sido cada vez mais associado a um “crime contra a humanidade” – não estava ao alcance de 2018.

Finalmente, um terceiro elemento busca conciliar os interesses públicos e privados, as questões de reparação histórica e justiça social com a proatividade do mercado. O problema foi abordado ora pela chave das boas práticas, ora pela das tendências na área de museus. Nele fatores de legitimação social se misturam com os de sustentabilidade financeira. Certamente, interesses econômicos e sociais não necessariamente se excluem, embora a sustentabilidade da instituição não leve necessariamente a um compromisso com a justiça social. Do mesmo modo, a inclusão dos marginalizados pode ser um modo de promover mudanças, embora sua capitalização em “múltiplas perspectivas” não necessariamente concorra para uma redução da desigualdade social.

Outra dobra desse elemento diz respeito a uma alternância entre as diretivas da democratização e da democracia cultural, que em todo caso sinalizam perspectivas diversas entre si: grosso modo, a primeira voltada para uma afirmação daquilo que o museu tem para oferecer; a segunda voltada para o reconhecimento pelo museu do que outros atores produzem, mesmo quando não fazem referência ao museu. Oscilando entre tais posições, a instituição afirma ou negocia sua própria identidade, relativiza ou não sua própria reprodução, promove ou contém processos de transformação. Eis a sua ambiguidade: ora é um ente, ora está entre.

Nesse processo, a cultura digital já desempenhava um papel importante, mas só agora a demanda pela digitalização se tornou um imperativo. É curioso notar que a utilização de tecnologias de comunicação e informação pelos museus em 2018 era tímida. Certamente, a digitalização responde a um aspecto limitado das mudanças que estão sendo processadas neste momento, se considerarmos os desafios que elas representam para os museus. De fato, é a própria internet que ameaça desconfigurá-los. Muitas instituições podem achar que se trate de uma oportunidade para alcançar públicos mais amplos, quando isso talvez signifique adentrar um espaço altamente competitivo, onde boa parte delas não tem experiência comprovada.

 



[1] Fórum Permanente. Vídeos 10 EPM. Disponível em: http://www.forumpermanente.org/event_pres/encontros/encontros-paulista-de-museus/x-encontro-paulista-de-museus/videos. Fórum Permanente. Relatos críticos. Disponível em: http://www.forumpermanente.org/event_pres/encontros/encontros-paulista-de-museus/x-encontro-paulista-de-museus/relatos-criticos.