Território em disputa: o museu como mediador da diferença
Relato Crítico por Amanda Moreira Arantes
Coordenação: Gilberto Mariotti
10º Encontro Paulista de Museus | 18 a 20 de julho de 2018 | Memorial da América Latina
18/07/2018 | 15h | Auditório Simón Bolívar
Relato crítico do painel: “Desafios éticos contemporâneos para museus”com o Dr. Sérgio Gardenghi Suiama e prof. Christian Dunker.
Mediação: Regina Ponte, coordenadora da UPPM
Este relato faz parte do livro: Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus
Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus | Encontro Paulista de Museus |
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A mesa “Desafios Éticos Contemporâneos para Museus” trouxe um debate necessário acerca das disputas de poder que estão em jogo no campo da cultura e da arte. A conversa entre o doutor Sérgio Gardenghi Suiama e o professor Christian Dunker, mediada por Regina Ponte, expõe a situação atual das instituições museológicas em uma sociedade cada vez mais plural, fragmentada e marcada por contradições sociais.
Na fala de abertura do debate, Regina Ponte estabelece em linhas gerais o problema que será discutido: o museu, como “espelho e laboratório” de seu contexto social, precisa reavaliar seus acervos e as narrativas que apresenta ao público para que possa responder às transformações da sociedade no século XXI. Nesse processo surgem tensões decorrentes principalmente dos debates que o museu tem levado a público acerca de temas como sexualidade, classe, gênero e conflitos sociais.
É interessante notar que, exceto Regina Ponte, que tem uma carreira sólida e bem reconhecida na área da museologia, atuando hoje como coordenadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico, os outros convidados não são profissionais ligados diretamente a museus. O doutor Sérgio Gardenghi Suiama é procurador da República e coordenou o grupo de trabalho Justiça de Transição e Direitos Sexuais e Reprodutivos, do Ministério Público Federal. Christian Dunker é psicanalista e professor da Universidade de São Paulo. O debate pôde então ultrapassar as questões da área da museologia e contou com contribuições diversas a respeito do tema, abordado sob as perspectivas do direito, da sociologia e da psicologia. Nesse breve relato busco destacar as principais contribuições dos convidados para um debate tão urgente hoje.
O doutor Sérgio Gardenghi Suiama foi um dos autores de uma nota técnica publicada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão em resposta às polêmicas do caso Queermuseu, exposição realizada no Santander Cultural em Porto Alegre, e do caso da performance La Bête, apresentada no MAM/SP, ambas em 2017. Nessas ocasiões, setores conservadores da sociedade acusaram as instituições de promover a pedofilia e ofender crenças religiosas. Em sua fala, Suiama procura expor as condições que tornaram possíveis essas polêmicas. Ele trouxe referências do campo da sociologia da arte para descrever as dinâmicas de produção, validação e circulação de obras de arte, reconhecendo três atores principais nesse cenário: as instituições artísticas, o público erudito e o grande público. Suiama fala sobre a crescente autonomia do campo da arte e seu sistema de criação de normas próprias de validação e reconhece a existência de desencontros entre esse campo erudito e o grande público.
A questão principal que Suiama busca articular a partir do caso Queermuseu é: como uma instituição consagrada no campo erudito, como o Santander Cultural, que apresentou artistas igualmente consagrados, não pôde assegurar a continuidade da mostra e recuou diante da reação de setores conservadores? Para ele, o motivo está no não reconhecimento do tema da sexualidade (um dos muitos temas apresentados na exposição) como um tema legítimo de ser apresentado no museu. Essa situação estabelece um cenário problemático para as instituições culturais, que cada vez mais são convocadas a acolher questões como sexualidade e gênero em suas narrativas, e por outro lado encontram resistência em setores da sociedade que não aceitam que tais temas tenham espaço nessas instituições.
Um dos desafios enfrentados pelas instituições é a postura reativa e combativa dos movimentos como o MBL, que promovem a depreciação de museus, artistas e obras de arte em meio à opinião pública. As estratégias adotadas por esses grupos incluem retirar as obras de seus contextos, ressignificá-las associando-as a discursos acusatórios. Em tempos de pós-verdade, essas estratégias fragilizam cada vez mais as instituições culturais e apontam sobretudo para o enfraquecimento do diálogo, questão que será trabalhada adiante, na fala do professor Christian Dunker.
O museu como mediador de conflitos
Suiama cita em sua apresentação um trecho do artigo de Daniela Name “Não há arte possível para gente de bem”, publicado no jornal O Globo por ocasião da polêmica do Queermuseu. Ele destacou o trecho em que a autora afirma que “a arte e o museu contemporâneo serão sempre mais potentes quando forem menos apaziguadores”. Mas qual é essa potência que o museu e a arte podem ter?
Passando para a apresentação do professor Christian Dunker, ressalto um conceito que ele trabalha ao introduzir sua fala: o museu como metainstituição. Além de ser ele mesmo uma instituição, o museu é responsável por representar outras instituições, ele cria normas ao construir suas narrativas sobre nossa história e nossa identidade. Por isso, deve ter o papel de mediador, representar e colocar em diálogo as contradições sociais que se apresentam no mundo contemporâneo, enfim, contribuir para o debate sobre a construção da sociedade. Essa seria a potência do museu e da arte: propor novas configurações do possível.
O título da apresentação de Dunker é um pouco diferente do título da mesa. Ele fala sobre “Desafios éticos para museus contemporâneos”, uma leve alteração que aponta para um tema bastante explorado em sua fala: a contemporaneidade. Ele defende que o contemporâneo não está definido de forma homogênea, mas é composto de diferentes temporalidades. Dunker afirma que, além de ser um mediador de conflitos e dar voz à diversidade de ideias presentes na sociedade, o museu deve cumprir a função de arbítrio desses diversos tempos em que vivemos; ele precisa negociar essa diferença, mesmo que seja necessário renunciar ao poder de dizer “aqui está o contemporâneo”.
Para Dunker, o museu deve deixar de ser apenas um dispositivo de lembrança do passado, mas deve também propor indagações sobre o futuro, passando pela problemática do tempo presente. Como mediador de conflitos e árbitro da temporalidade, o museu tem como desafio conciliar forma estética e contradição social. Dunker desenvolve essa ideia apresentando como exemplo bem-sucedido o Museu do Apartheid, em Johanesburgo. Nesse museu o visitante é aleatoriamente classificado como branco ou não branco logo ao comprar o ingresso, e o percurso de sua visita depende de tal classificação. Ao simular a experiência do apartheid, o museu consegue fazer uma exposição do passado mostrando qual tipo de futuro não queremos. Esse é um dos desafios de uma instituição que historicamente teve o papel de conservar e preservar o passado, e que encontra hoje o dever de indagar sobre o amanhã.
No mundo de contradições sociais, a museologia tem proposto narrativas mais empáticas, e nesse contexto a curadoria tem um importante papel de mediação e por isso precisa se reinventar. Vemos surgir exposições que propõem reavaliar narrativas oficiais da arte, incluir autores que foram em outros tempos invisibilizados, dar espaço a temas como sexualidade e gênero, guerra e conflito. Dunker reafirma essa função ética e política do museu. Para que tenha uma atuação transformadora, ele precisa dar visibilidade e voz a grupos marginalizados, além de expor formas de sofrimento tanto do presente quanto do passado. Nesse contexto, ele traz uma questão de grande pertinência. Por que não existe no Brasil um museu da escravidão?
Dunker propõe que o museu busque reinventar sua linguagem e se proponha a “dar guarida para o universal”, este que não sabemos bem qual é. Ele defende a importância de criticar os “falsos universais”, e nesse processo os museus certamente precisam rever seus acervos. Nesse contexto, cabe ao museu reavaliar as diretrizes para a aquisição de obras, repensar as escolhas políticas que orientam a construção das narrativas. A responsabilidade é grande tendo em vista a dificuldade que enfrentamos – tanto nós indivíduos quanto as instituições – na relação com o outro e na relação com o tempo. Como lidar com um passado que não está definitivamente abolido e um futuro que ainda desconhecemos? O desafio já é muito grande, e tende a ser ainda mais difícil em um mercado cultural atravessado muitas vezes por interesses particulares. Christian Dunker propõe uma questão provocativa: a serviço de quem a curadoria atua?
É notável o esforço por parte de algumas instituições museológicas em São Paulo que têm acolhido a produção artística de autores antes preteridos, como pessoas periféricas, homossexuais, mulheres, artistas autodidatas, que ficaram por muito tempo fora do circuito institucional e que agora finalmente ganham espaço em exposições.
Toda iniciativa nesse sentido é positiva, mas os museus precisam ter o cuidado de não classificar essas experiências estéticas particulares em grupos fechados que não se comunicam com uma narrativa mais ampla da arte e da cultura. É preciso dar visibilidade, por exemplo, às práticas das artistas feministas, sem torná-las algo totalmente separado daquela que ainda é conhecida como a narrativa oficial da história da arte. Há uma demanda crescente de uma produção cultural voltada para grupos que reclamam, de maneira justa, cada vez mais representação. Essas identidades particulares precisam estar em diálogo entre si para que o museu possa reavaliar o universal.
Para além do que o museu produz, é preciso considerar quem produz. Isso inclui repensar até que ponto seus curadores, diretores, mediadores e atendentes representam a pluralidade da sociedade hoje.
Educação e liberdade
Ao final do debate, uma pessoa da plateia fez uma pergunta ao doutor Sérgio Gardenghi Suiama: “Como definir a arte em seu contexto geral e educacional?”. Suiama respondeu parte da pergunta, afirmando que arte e educação andam juntas, e que para ler uma imagem é necessária uma educação prévia. Essa resposta provoca algumas reflexões. São muitas as formas de ler uma imagem, tão diversas quanto os sujeitos que as leem. O museu precisa saber lidar com todo tipo de público, desde aquele que já está familiarizado com a arte e seus códigos quanto aquele que não está disposto a dialogar.
Logo após a polêmica do Queermuseu vimos instituições adotar classificações indicativas em suas mostras, como no caso da exposição Histórias da Sexualidade, realizada no Masp. Para Dunker, resolver potenciais conflitos por meio da imposição de uma idade mínima para que o visitante possa ver uma exposição equivale a se ausentar do debate é se recusar a fazer a mediação necessária entre imagem e público. Dunker vê nessa atitude uma forma de infantilizar o público. A imposição de classificações parece responder à demanda de parte da sociedade que quer ser governada, que não só admite como reivindica a censura. Quando esse público se recusa a enfrentar temas delicados, ele abre mão de exercer sua liberdade de pensamento crítico.
A via da censura não é uma forma de lidar com os desafios enfrentados pelos museus. Um ponto defendido pelo doutor Sérgio Suiama é que o direito à liberdade de expressão deve não apenas garantir a livre criação artística, mas a circulação e a recepção das obras de arte, além de proteger os espaços e instituições onde isso ocorre.
Para isso, talvez seja difícil contar com a ajuda do Estado no momento atual de “desprivilégio da cultura”, como define o professor Christian Dunker. A questão da sobrevivência dos museus públicos é incontornável. Não podemos ignorar que, além de promover um espaço de reflexão crítica sobre passado, presente e futuro, as instituições precisam cumprir metas de público e têm o desafio de criar e organizar exposições com um orçamento e um quadro de colaboradores cada vez mais enxuto. O museu tem como desafio principal provar seu valor como espaço de liberdade de pensamento em um tempo de crise e deve trabalhar em conjunto com outras instituições – como as escolas – na formação de um público disposto a lidar com a alteridade e com as contradições sociais.