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Relato Crítico: Apresentações de projetos premiados no edital ProAC Difusão de Acervos Museológicos - Lampião de gás, lampião de gás

Relato por Carlos Eduardo Riccioppo

Coordenação: Gilberto Mariotti

19/07/2018 | 16h | Auditório Simón Bolívar

Apresentações de projetos premiados no edital ProAC Difusão de Acervos Museológicos

Mediação: mediação de Higor Advenssude Teixeira, representante regional SISEM-SP da RA Araçatuba

Comunicações:

- Bairros incluindo memórias, incluindo cidadãos”, representado por Leonice Mantovani Parajara

- “Exposição itinerante – Porta, porteira, portão: modos de 'falarrr' e costumes do 'interiorrr'”, por Renata Gava e Rodrigo Santos

- “A roda dos objetos”, por Olga Susana Costa;

 

 

Lampião de gás, lampião de gás*

 

 

 

Lampião de gás

Lampião de gás

Quanta saudade

Você me traz

Do bonde aberto, do carvoeiro

Do vossoureiro, com seu pregão

Da vovózinha, muito branquinha

Fazendo roscas, sequilhos e pão

 

(Trecho de Lampião de gás, de Zica Bergami, música de 1957)

 

 

Assim como aquela canção, Lampião de gás, quase todo mundo conhece, ainda que de livro, o Caipira picando fumo de Almeida Júnior: o olhar absorto, a calça esgarçada e o pé no chão; o pau a pique da parede, que parece que cresceu que nem formigueiro, o canto meditativo pra fora da casa, meio alpendre, meio sombra sob uma copa de árvore, disfarçando o sol que a tudo faz brilhar transparente, de tinta leve, quase que como de aquarela.

De uma e de outra obras, a dureza histórica das formas vai se convertendo quase magicamente em tecido de uma memória alusiva – a valsinha daquela esquecendo-se em prosódia lacônica e popular; e a escala humana e a tipificação modelar do retrato deste filtrando-se em um cotidiano o mais prosaico. Ambas acionando um lugar qualquer da subjetividade sempre predisposto às verdades atemporais, ali mesmo onde se poderia deslocar e matutar, sem os riscos que a frase, traiçoeira, oculta, “felicidade se acha é só em horinhas de descuido[1].

Que não se menospreze memória, nostalgia: sobretudo (mas não somente) em um país de história colonial como o Brasil – portanto um país que só a muito custo foi constituindo tentativas de narrar uma história própria, capaz de não simplesmente replicar, em sua autobiografia local, a posição de atraso frente àquilo que, nas metrópoles, ia se constituindo como as narrativas corretas[2] em direção ao progresso, à modernidade –, o tempo psiquicamente forçado desses estados mentais por vezes atinou tão fundo com uma autorreflexividade que, na melhor das hipóteses, deixou espreitar algum distanciamento que veio servir à crítica de si mesmo, rompendo com o caráter meramente derrotista de tais sentimentos, para vê-los integrar a imaginação de novas investidas modernas para um país que, periférico, haveria de lidar com uma boa dose de desilusão, mesmo que em momentos de audaciosa constituição de promessas de mudança (basta lembrar o quanto o olhar de memória, nostálgico, não atravancou, mas motivou o arroubo da década de 1920 e o sonho de um projeto moderno brasileiro das décadas de 1950 e 1960, ambos criticamente interessados nos modos vernaculares, populares de vida, construção, sociabilidade daquele mesmo passado colonial do país, que no entanto almejaram transpor). Mas, isto, quando tais estados mentais são capazes de produzir atrito com as mudanças pressionadas pelos novos tempos, e não simplesmente alheando-se delas.

Quando, em 1957, Lampião de gás começa a ser cantarolada, ela provavelmente já vem carregada com a afetividade dos avós que recontam aos jovens netos os sentimentos de um tempo que não volta mais, mas que eles, o avós, viveram há pouco – o bonde aberto, o carvoeiro, a própria avó em seus afazeres –; mas que eles, os netos, reterão apenas como imagem de um passado impalpável, ainda que tal passado, uma vez narrado com tamanha doçura, identifique-se, naqueles jovens, com sua própria esfera psíquica de retiro ou fuga ao conforto frente à provavelmente recém-descoberta velocidade e animosidade do tempo presente, com a qual começam a descobrir que terão de lidar.

Não se lida tanto com o lampião de gás propriamente dito da música, quanto com a saudade de quem já o viu; nem com os diferentes motivos que levavam a que as avós gastassem seu dia a dia em meio às roscas, sequilhos e pães feitos em casa, mas com o lugar abstrato que se reputava ser seu domínio. Do mesmo modo que o tempo musical de valsa da canção vai correspondendo muito mais a uma cadência de suspiros lentos, propícia a ser embalada no vai e vém de uma cadeira de balanço imaginária daqueles que já se aposentam do ritmo do mundo do trabalho, do que à métrica precisa com que o gênero musical, quando surge, dirige o corpo que o dança no baile (ou, ainda, do mesmo modo que a rima bem marcada dos versos mais arredonda as palavras num universo que parece em tudo coerente e assentado, do que faz atentar para sua dissonância de sentido apesar de sua semelhança sonora).

É que cantarolar Lampião de gás retém não os objetos que a música menciona, mas um lugar perdido no tempo de uma sociabilidade que já não mais apresenta possibilidade de retorno, mas a qual a subjetividade se ressente de não mais possuir como garantia para seu recolhimento. A década de 1950, afinal, demarca no país, em plano público, as mais fortes investidas urbanísticas em nome da modernização das cidades – e a construção de Brasília é apenas o exemplo mais decisivo dessas investidas –; demarca a obsolescência imediata não exatamente do cotidiano dos subúrbios (nenhum processo de modernização se fez por completo em cinco anos, substituindo de uma tacada a paisagem urbana brasileira), mas de qualquer coisa que se pudesse assemelhar a um bem-estar imaginário que aquelas espécies de vizinhanças afetivamente constituídas pudessem fornecer. Triste, Lampião de gás se torna um lamento, aprisionando o espírito na saudade.

 

José Ferraz de Almeida Júnior. Caipira picando fumo, 1893.

 

 

De maneira bastante semelhante, quando Almeida Júnior pinta seu Caipira picando fumo (hoje a obra pertence à Pinacoteca do Estado de São Paulo), em 1893, o Rio de Janeiro já havia completado ao menos um século de esforços em se tornar uma cidade cosmopolita, em tudo avessa àquela ordem de vida rural tematizada na pintura; e o pintor, embora nascido em Itu, trabalhara já havia tanto tempo sob os auspícios da Academia Imperial de Belas Artes, que certamente qualquer remanescência da cultura caipira (quer aquela que eventualmente possuísse, quer aquela de que se lembrasse) já se teria dissolvido no cultivo mais ou menos erudito que previa o ensino de arte da época.

Não que o pintor não pudesse ter interesses sinceros por aquele modo de vida que tematizava. A questão, antes, é que ele já não a tinha mais diante de si; não havia mais, em sua obra, o jeito de pintar da tradição dos pintores de parede do interior; não mais a tinta do afresco, mas a obrigatoriedade do óleo, não mais a parede da arquitetura, mas a escala emoldurada do retrato. Também o modo de tratar o chão de terra e as paredes de barro da casa não reproduz aquele tipo de paisagem e de construção: é quase como se o próprio pintor, estrangeiro à cultura caipira, fizesse pairar no canto inferior direito um ramo de árvore qualquer que o permitisse supor descanso à aridez do sol, e descascasse ele mesmo a camada de cal da parede da casa à esquerda, para revelar, anatomicamente, a possível cruzada de pedaços de madeira com terra batida que a edificou; para não mencionar o espargido sutil e quase elegante das palhas de fumo que faz pousar no canto à frente da pintura...[3]

Mas, acima de tudo isso, são sintomas da distância entre o pintor e seu modelo caipira a luz que já esmaeceu – a hora da pintura é clara como o meio-dia, mas descontrastada como o fim da tarde –, e, enfim, a autoridade burguesa da pose, contrária, anacrônica, no que diz respeito à escala de autocompreensão do caipira em relação à paisagem. É o burguês, afinal, que nos recebe na intimidade da poltrona (e aquela escadinha na qual se senta o Caipira é demasiado providencial), franqueando a proximidade a seu corpo e nos olhando no olho, orgulhoso do interesse de quem o retrata. Ao caipira de Almeida Júnior, não é dada a defesa do anteposto sequer de uma cerca, de um alpendre, de uma virada do rosto. Resta abaixar a cabeça, cedendo à “atemporalidade” que o pintor quer ver nele, um tipo específico de “dignidade subjetiva” que encampa, antes, um julgamento – o de mito de uma sabedoria antiga, de um socialismo já realizado, de uma ética de vida que faz as vezes de acalanto à rapidez da era dos trens, mas narrada no momento mesmo em que desapareceu. Se algo escapa ao julgamento, é a desilusão de um sujeito como este, que, se ainda subexiste, agora está todavia obrigado a se comportar como exemplo de uma sociabilidade perfeita a quem o confronte – aplacado, recuado a uma participação social comedida, pacificada, compactuada. Tal é o processo cultural romântico que elege, a bem da saúde dos compromissos do presente, os mitos musealizados prontos para se tornarem monumentos.

Não é o caipira que sobrevive na pintura, e também não é o “lampião de gás” que sobrevive na música após a morte do subúrbio; não são os objetos tematizados na canção e o modo de vida rústico impregnado na tela aquilo que elas condensam, mas a nostalgia mesma, para a qual tais objetos e impressões não são mais do que disparadores. Enquanto tais, as coisas do passado, quando recuperadas das gavetas e dos armários para serem cantadas nos hinos do presente, tendem a retornar apenas com aquilo que possuem de importância afetiva. E a memória não é um processo que se constitui simplesmente no âmbito dos afetos.

Acontece que a “musealização” do passado sempre foi um processo constituído a um só tempo em âmbito psíquico e em âmbito social, ainda antes de que pudéssemos falar em instituições propriamente ditas que se destinassem a rever e a cuidar do passado – como são, em parte, os museus.

Aquele mesmo ferrolho de porteira da casa antiga da roça de uma família, preservado porque, de repente, representa um elogio à manualidade cotidiana com que um patriarca tocou um pequeno pedaço de chão, quando vem à tona, deve fazer também lembrar, a outros que não seus descendentes, do rangido que avisava da presença de forasteiros àquela família que cercou suas terras.

Sem uma instância de atrito à memória que musealiza o passado, o processo de consolidação dessa memória – venha ela parte a parte, de cada diferente indivíduo que constitui uma sociedade, venha ela em bloco, reunida por um só, já pré-selecionada, pouco importa[4] –, tende a ser autojustificável, e, por isso mesmo, perigoso. Ao mesmo tempo em que tal processo detém, inelutavelmente, direito à narrativa da história, a memória individual que nele irrompe – e esta é a questão –, tende a redimir, a absolver ou a isolar, em âmbito psíquico, os objetos dos quais depende para se refletir subjetivamente. Porque essa memória opera projetando nos objetos uma imagem de passado sempre torcida pela função simbólica que lhes atribui: ela adjetiva os objetos para si, preserva-os desesperadamente ou os expia continuamente, mas, de qualquer maneira, ritualiza, via eles, o passado que de algum modo eles retêm. Em uma palavra, monumentaliza-os.

O processo de musealização da vida é, e deve sempre ser, incômodo, e não pervasivo; deve doer à decantação da memória; deve lembrá-la das partes das quais ela se livrou a preço de sua própria consolidação. Afinal, enquanto entidades materiais, o carvoeiro e o pregão do vassoureiro da canção – como, de resto, o antigo ferro a carvão de passar roupas e o fogão a lenha da roça e a parede de pau a pique e o cigarro de palha da pintura – seguem necessitando da explicação histórica do porquê existiram e do porquê de sua obsolescência[5]; seguem requerendo, quando desaparecem do cotidiano e são convertidos em objetos de interesse museal, que se indague a dimensão cultural, social, econômica, estilística, que os justifica exatamente enquanto objetos de interesse. Esquecer dos objetos em nome da memória leva a que os monumentos ao passado, mesmo os mais participativos e representativos de um universo social, não passem de sintomas de abandono, de arrego.



* Relato produzido por ocasião da mesa “Apresentações de projetos premiados no eital ProAC Difusão de Acervos Museológicos”, ocorrida no âmbito do 10 º Encontro Paulista de Museus, no Auditório Simón Bolívar, do Memorial da América Latina, dia 19 de julho de 2018, às 16h, na qual apresentaram-se os projetos “Bairros incluindo memórias, incluindo cidadãos”, representado por Leonice Mantovani Parajara, “Exposição itinerante – Porta, porteira, portão: modos de 'falarrr' e costumes do 'interiorrr'”, por Renata Gava e Rodrigo Santos e “A roda dos objetos”, por Olga Susana Costa, e com mediação de Higor Advenssude Teixeira, representante regional SISEM-SP da RA Araçatuba.

[1] A frase, que relutantemente insiro neste texto para encerrar o parágrafo, aparece no conto “Barra da vaca”, de Guimarães Rosa, pronunciada por Domenha, a dona da pensão da pequena cidade “de nem quinhentas almas”, que recebe o forasteiro Jeremoavo, que ali chegava após abandonar com amargura sua cidade e os seus, permanecendo enquanto se curava não se sabe bem de quê. Chega a notícia de que Jeremoavo era jagunço, dito perigoso. “Jeremoavo sarara, fraco, pesava os pecados males, restado o ganho de nada querer, um viver fora de engano. Não podia abreviar com a saída, tinha de ir ficando naquele lugar, até às segundas ou terceiras nuvens”. Aí é que Domenha pronuncia a frase. Jeremoavo passa a viver na cidade, esquecendo a vida pregressa, e ali desperta temor e admiração. Mas, um dia embriagado, é levado pelo povo da cidade à margem de lá do rio, e forçado a não voltar mais ao povoado: “Lá, os homens todos, até ao de dentro armados, três dias vigiaram, em cerca e trincheira. Voltasse, e não seria ele mais o confuso hóspede, mas um diabo esperado, o matavam. Veio não. Dispersou-se o povo, pacífico. Se riam, uns dos outros, do medo geral do graúdo estúrdio Jeremoavo. Do qual ou da Domenha sincera caçoavam. Tinham graça e saudades dele” (ver: GUIMARÃES ROSA, João. Tutaméia – Terceiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.). “Felicidade se acha é só em horinhas de descuido”, no conto, é dito de aviso, desconfiado, em tudo contrário à atemporalidade de um tão sonhado descanso do corpo e do espírito.

[2] “Corretas” exatamente porque cunhadas nas metrópoles, para as metrópoles, que esteja claro.

[3] Demarco, aqui, com itálicos, alguns dos momentos em que a atitude da pintura com relação a seu objeto é prova de que tal objeto é construído, antes de que visto. Questão, aliás, que chamou a atenção da crítica alguns anos após sua execução. Em um texto de 1914, Monteiro Lobato lembra que antes da obra em questão, Almeida Júnior havia feito um esboço do quadro, que, segundo ele, era superior ao resultado final: “Pinta o Caipira picando fumo e a Amolação interrompida, dos quais a nossa Pinacoteca possui duas más cópias ampliadas. Digo más porque é essa a impressão de quem as coteja com os originais em poder do doutor Sampaio Vianna. Copiadas pelo próprio autor, por isso mesmo não valem as primeiras. Explica-se. Estas foram pintadas do natural, no local adequado, ao ar livre, com a alma do artista impregnada do tema. Possuem toda a vida dos quadros sentidos e amorosamente feitos. As cópias, tiradas em época posterior, com outras preocupações na cabeça, num estado d’alma diverso, com técnica diversa, com variantes de cor e tons, têm todos os leves defeitos duma segunda edição ampliada, preparada às pressas para exclusivos fins comerciais” (ver: LOBATO, Monteiro. Almeida Junior. In: Ideias de Jeca Tatu. São Paulo: Ed. Globo, 2008). Para Lobato, o frescor se perdera do esboço à obra que hoje conhecemos; mas seria possível imaginar que o frescor do ar livre do esboço estava tão submetido à encenação da vida do caipira quanto a obra hoje na Pinacoteca; o ar livre de que fala Lobato, afinal, não era mais do que um espaço aberto, que se opõe ao ateliê onde se realiza a segunda versão da obra apenas na oposição entre atmosfera aberta e local fechado; porque a vivacidade da vida do campo já há muito deixara de comparecer como modelo vivo aos interesses do pintor. A primeira versão, de fato, deixa escapar elementos copiosos que na segunda desaparecem – as espigas de milho de onde o caipira retira a palha para seu cigarro, por exemplo –, e a segunda faz a figura recuar um pouco mais nos planos, deixando espaço para a sombra da árvore; mas, ainda assim, tanto em uma quanto em outra, o retratado posa, inclusive encenando sua absorção em um tempo dilatado, na soleira da casa. Não importa se ele existiu ou se era um caipira; importa que o pintor foi procurá-lo com a curiosidade de quem já sabe como abordar seu assunto de antemão, antes, portanto, que a pintura possa narrar, em seu modo de ser feita, qualquer descoberta.

[4] Para que o quase maltratado pelo uso dito de Walter Benjamin tenha sentido, não bastaria reduzir vencidos e vencedores a simples memórias pessoais concorrentes para formar a narrativa da história; o crivo da memória pessoal tende a igualá-los; e, no entanto, na esfera da história, um segue tendo precedência sobre o outro.

[5] Foi a história que julgou, afinal, que as casas de pau a pique apresentavam riscos de difusão da doença de chagas; foi ela que, num processo que ainda precisa ser indagado em toda sua complexidade, foi substituindo o antigo ferro de passar roupas a carvão, pois este queimava as mãos de quem era obrigado a utilizá-lo...