Ressignificação dos museus: ressonâncias do Encontro Paulista de Museus realizado em 2014
Leandro de Oliva Costa Penha - 2021
Relato crítico síntese do 6º Encontro Paulista de Museus: “ressignificação dos museus”
Este relato faz parte do livro: Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus
Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus | Encontro Paulista de Museus |
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Ano de triste Copa do Mundo no Brasil com a vitória da Alemanha, de eleições presidenciais com a reeleição apertada de Dilma Rousseff e crise hídrica na cidade de São Paulo. 2014 também apresentou recorde de público nos museus do Estado de São Paulo: 3,7 milhões de pessoas, um aumento de 12% em relação ao ano anterior[1].
Nesse contexto ocorreu, de 2 a 4 de junho, o 6° Encontro Paulista de Museus, tendo como tema o processo de ressignificação dos museus, a partir de uma necessidade de repensar o papel dessas instituições e suas práticas, diante de um contexto de reestruturação do setor museológico brasileiro com uma nova regulamentação.
Os relatos críticos elaborados por María Iñigo Clavo, Claudia Rodríguez Ponga, Laly Martín Sánchez, Agda Sardinha, Vivian Braga dos Santos, Mariana Galera Soler, Thais Fernanda Alves Avelar e Viviane Wermelinger sobre esse Encontro, assim como os registros em vídeo disponíveis, gratuitamente, na plataforma digital do Fórum Permanente[2], foram a base para a construção deste relato síntese.
A programação dos três dias do evento foi composta por uma mesa de abertura com os convidados Renata Vieira da Motta, coordenadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico (UPPM), Juca Ferreira, secretário municipal de Cultura de São Paulo, Jorge Schwartz, diretor do Museu Lasar Segall, em representação ao Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), Marcelo Mattos Araújo, secretário estadual de Cultura de São Paulo[3], uma conferência de David Fleming, diretor do National Museums Liverpool, sete painéis presenciais com a participação de dois a quatro convidados em cada um, seis momentos para apresentação de pôsteres digitais individuais (painéis digitais) e lançamento de publicações[4]. A relação dos museus com os territórios onde estão inseridos, a ampliação da atuação da instituição para além das salas de exposição, novas possibilidades e perspectivas considerando práticas ativistas na contemporaneidade, a importância da articulação em rede e a produção de conhecimento de forma participativa e inclusiva foram algumas das ressonâncias geradas nos debates a partir da temática central do evento.
David Fleming, em sua conferência, defendeu o papel fundamental dos museus no confronto aos problemas sociais, de direitos humanos e de reparação histórica. Na ocasião, destacou a democracia como um dos eixos escolhidos pelo museu inglês para o cumprimento de um dos seus objetivos: o acesso e a ocupação da instituição pela população em geral, sobretudo por sujeitos não vinculados aos discursos hegemônicos de poder. No intuito de o museu se tornar um espaço voltado não apenas para a preservação das coleções e do patrimônio ou de fruição das elites, mas preenchido por narrativas sem distinção de classe social, idade, gênero, etnia, identidade de gênero ou orientação sexual. O museu como local de legitimação de discursos de moradores de rua, transexuais, homossexuais, prostitutas, idosos e crianças.
Mediado por Mila Chiovatto, o primeiro painel – Museus em suas comunidades – teve a participação de Marília Bonas, responsável pelo projeto museológico do Museu da Imigração, em São Paulo, e Simone Flores Monteiro, representante do Museu de Ciência e Tecnologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS), em Porto Alegre.
O Museu da Imigração foi reaberto no ano em que ocorreu o 6º Encontro, e, apesar de apresentar uma exposição permanente que edificava e ainda hoje edifica uma versão específica da história do Brasil, sobretudo da cidade de São Paulo, centrada na imigração europeia e oriental, desde aquele ano, prioriza a diversidade de identidades como matriz do plano de musealização, por meio do acervo, dos materiais educativos e de eventos. O Museu de Ciência e Tecnologia da PUC-RS passava por mudanças e buscava alcançar uma de suas metas principais, a aproximação entre comunidade acadêmica e sociedade.
O segundo painel, intitulado Museus municipais e novas narrativas, foi mediado por Heloísa Barbuy. Rafael Barbi, coordenador do Museu da Cidade de Salto (Salto/SP), apresentou o conceito de museu percurso, que considera a comunidade local e não se fixa nas características de um museu histórico; ao contrário, além de ampliar-se para a cidade toda em termos geográficos, alcançando bairros periféricos, constitui-se com as contribuições, com os questionamentos e com as discussões da população acerca da história, que passa a ser “questionada, ampliada e/ou modificada”, como descreveu Laly Martín Sanchez em seu relato crítico[5]. Esses adjetivos e o projeto apresentado dialogam com a reflexão de Assman (2011, p. 352)[6], segundo a qual “os locais são mediadores entre passado e presente, são mídias da memória; apontam para um passado invisível e preservam o contato com ele”. Com as atividades inclusivas e educativas propostas pelo projeto Museu Itinerante, o Museu da Cidade de Salto não só proporcionou às cidadãs e aos cidadãos da cidade reflexões que conectam diferentes tempos, mas possibilitou a apropriação do museu por seus visitantes, que, como habitantes da localidade, se perceberam importantes construtores da história local.
Júlio Abe, profissional referência na museologia brasileira, ministrou uma aula sobre a história e geografia do país ao apresentar o processo de criação do Museu Anhanguera, em Santana do Parnaíba (SP). Na concepção do projeto museológico, priorizou o conhecimento dos moradores da região, com destaque para os indígenas, com tradições que atravessam gerações por meio da oralidade. Apoiado na observação, leitura e escuta do território, em conjunto com uma equipe multidisciplinar, pode organizar um conteúdo que não ficou restrito ou baseado em mitos ou inverdades relacionadas à história local.
As histórias orais e testemunhos também foram enfatizadas no painel Que memória preservar?, mediado por Paulo Garcez. A presença dessa temática em uma abordagem museológica remete a pesquisadores, como Ecléa Bosi, que se debruçou sobre a importância dessa metodologia em investigações sobre memória. Ao ouvir depoimentos orais, constatamos que o sujeito evoca o conteúdo de suas vivências e vive com uma intensidade nova a sua experiência (BOSI, 2003, p. 44)[7]. As histórias orais revelam o modo como as pessoas constroem o sentido do passado e como estabelecem os vínculos com o presente. Além disso, a escuta tem efeito imediato em quem compartilha um testemunho, gera autoconfiança e pertencimento àquele que narra. Os testemunhos representam uma forma de compreensão de identidades, de comunidades, de determinadas épocas, como destacou Paul Thompson em seu texto História oral: patrimônio do passado e espírito do futuro (WORCMAN; PEREIRA, 2006, p. 17-43)[8].
Como práticas relacionadas a essas reflexões, foram apresentadas neste painel duas experiências em museus, sendo uma delas na cidade de Londres e outra em São Paulo. Georgina Young, do Museum of London, ressaltou que a progressão da vida urbana em Londres não é somente elaborada a partir do olhar de curadores, mas com a colaboração da opinião pública. As vozes dos sujeitos envolvidos nos locais são incluídas de modo a fortalecer a relação entre museu e sociedade. O Memorial da Resistência, apresentado por Kátia Felipini, é constituído, praticamente, por testemunhos de pessoas que sofreram tortura e foram perseguidas durante o período da ditadura militar no Brasil. Com vozes que, durante muito tempo, foram silenciadas ou estiveram ocultas, associadas a dados quantitativos, é possível compreender com mais profundidade um período da história do país e fortalecer debates e lutas em prol da democracia e da liberdade.
Outros três painéis tiveram como temas: ganhadores dos editais ProAC-Sisem-SP[9] (2012), ações estruturantes e ações educativas de museus paulistas. Os profissionais convidados relataram as seguintes experiências: o processo de criação de um guia de memórias focado na arquitetura da cidade de Monte Alegre do Sul; o catálogo digital do Museu de Psiquiatria do Cais, de Santa Rita do Passa Quatro; a implantação de uma brinquedoteca do Museu do Folclore de São José dos Campos; a digitalização e exposição de jornais da cidade de Ourinhos; uma exposição itinerante com 200 fotografias valorizando a história do litoral paulista (Museu da Baixada/SP); a implantação de museu biográfico e reserva técnica do Memorial Cairbar Schutel, em Matão (SP); o projeto “Ação educativa extramuros. Identidade e comunidade – aproximando histórias”, do Museu da Abadia de São Geraldo; um roteiro de visita integrada aos museus do Butantã e uma iniciativa de acessibilidade transversal do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM).
Passados quase sete anos, ao fazer um balanço das discussões apresentadas, pode-se considerar que havia um cenário de otimismo com a possibilidade de estruturação do setor museológico a médio e longo prazo. Constatavam-se, na construção de projetos museológicos em diferentes cidades do mundo, a aproximação dos museus ao cotidiano dos territórios onde estão inseridos e a ênfase nas narrativas dos sujeitos não hegemônicos.
Atualmente, nos deparamos com o avanço das pautas identitárias e sociais como centrais em museus com as mais diversas estruturas, de museus comunitários[10] a instituições de grande porte com reconhecimento nacional e internacional. Infelizmente os avanços param por aí. A perspectiva de estruturação do setor de museus foi substituída por preocupações perante o desmonte de políticas públicas para o campo cultural de forma geral. Estamos diante de um retrocesso em termos de apoios, patrocínios, financiamentos, com um governo que dissemina o obscurantismo, o conservadorismo, a intolerância[11]. Como seguir com os objetivos voltados para as subjetividades e coletividades, para curadorias a partir das diversas representatividades, para ações em diálogo com comunidades, para produção de conhecimento de forma democrática?
Soma-se a esse panorama uma pandemia desenfreada, que cresce dia após dia. O processo de vacinação da população é moroso. Um governo omisso e negacionista. Em decorrência do isolamento social como medida preventiva, aos museus, ou melhor, apenas às instituições que possuem recursos para mudanças grandes em curto prazo e investimento em tecnologia, o acesso passou a ser virtual[12]. Como imaginaríamos que visitas ou catálogos digitais, como o que foi criado pelo Museu de Psiquiatria do Cais, tornar-se-iam, em poucos anos, uma das únicas possibilidades de relação entre alguns museus e o público? Não há como as crianças entrarem pela janela da brinquedoteca do Museu do Folclore; não se recomenda mais andar ou flanar pelas ruas de Monte Alegre do Sul ou de qualquer localidade, tampouco uma exposição itinerante pode ocorrer, não há possibilidade de o litoral chegar ao interior por meio das fotos dos 17 museus paulistas. Hoje, os materiais educativos são acessados por telas. As salas são percorridas por mouses e celulares.
Os casos apresentados no 6º Encontro tornaram-se memórias a serem guardadas neste momento. Como escreveu Bosi (2003, p. 66)[13], “o passado reconstruído não é refúgio, mas uma fonte, um manancial de razões para lutar”. Em 2021, estamos ressignificando não somente os museus, mas a vida como um todo.
Referências
ASSMAAN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Tradução Paulo Soethe. Campinas: Unicamp, 2011.
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
WORCMAN, Karen; PEREIRA, Jesus V. História falada: memória, rede e mudança social. São Paulo: Sesc SP: Museu da Pessoa: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
[1] Disponível em: https://www.saopaulo.sp.gov.br/ultimas-noticias/numero-de-visitas-em-
museus-do-estado-cresceu-12-em-2014/. Acesso em: 4 abr. 2021.
[2] Disponível em: http://www.forumpermanente.org/. Acesso em: 23 mar. 2021.
[3] Os cargos citados no texto eram ocupados pelos convidados em junho de 2014.
[4] Durante o Encontro foram lançadas as seguintes publicações: Guia para criação e gestão de Associações de Amigos de Museus, da Feambra, Catulo Branco: o homem dos moinhos de vento e Belle Époque na garoa: São Paulo entre a tradição e a modernidade, da Fundação Energia e Saneamento.
[5] Disponível em: http://www.forumpermanente.org/event_pres/encontros/encontros-paulista-de-museus/vi-encontro-paulista-de-museus/relatos-criticos/painel-2-museus-municipais-e-novas-narrativas. Acesso em: 3 abr. 2021.
[6] ASSMAAN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Tradução Paulo Soethe. Campinas: Unicamp, 2011.
[7] BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
[8] WORCMAN, Karen; PEREIRA, Jesus V. História falada: memória, rede e mudança social. São Paulo: Sesc SP: Museu da Pessoa: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
[9] Programa de Ação Cultural para o lançamento de editais voltados à área de museus.
[10] Museus criados a partir de processos de afirmação e resistência, de reivindicação de direitos de grupos sociais, como os museus indígenas, os museus negros, os museus de periferias e os museus de favelas.
[11] Em 2018, Jair Bolsonaro venceu as eleições presidenciais. Seu governo tem sido marcado por retrocessos, principalmente nas áreas de assistência social, saúde, educação, cultura e meio ambiente.
[12] Em 2020, o público presencial, em virtude da pandemia, foi de 1.048.357 pessoas, segundo informado pelo Sistema Estadual de Museus de São Paulo (Sisem-SP). Ocorreram mais de 15 milhões de visitas virtuais em 20 diferentes museus. Disponível em: https://www.sisemsp.org.br/museus-da-secretaria-de-cultura-registram-mais-de-15-milhoes-de-visitantes-virtuais-em-2020/. Acesso em: 4 abr. 2021.
[13] BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.