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Nem compulsões, tampouco amnésias. As medidas das memórias no Museum of London e no Memorial da Resistência de São Paulo

Por Vivian Braga dos Santos – Relato do painel Que memória preservar? 

Relato por Vivian Braga dos Santos

Relato crítico do painel “Que memória preservar?”

Este relato faz parte do livro: Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus

 

Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus Encontro Paulista de Museus

 

A partir da década de 1970, o tema da memória ocupa um lugar intenso e cada vez mais recorrente na contemporaneidade. Uma das razões dessa veemência está relacionada a certa guinada subjetiva que após maio de 1968 passou a solicitar cada vez mais histórias que outrora foram mantidas à margem da sociedade como elementos fundamentais para a elaboração de memórias coletivas[1]. Essa demanda permitiu que se colocassem em xeque os modelos historiográficos normativos que durante anos estiveram em voga. No entanto, tal abertura encara um problema semelhante àquele enfrentado pela História, a saber, a dificuldade de tudo contar, armazenar e preservar. Afinal, diante de tantas experiências que surgem para compor narrativas diversas, que memória preservar? Como operar essa multiplicidade de memórias possíveis de modo que as escolhas entre lembrar e esquecer (guardar ou preterir) não sejam desiguais de maneira exagerada?

Essa questão norteou as discussões da quarta mesa do 6° Encontro Paulista de Museus, que aconteceu em São Paulo em junho de 2014. Composto pela curadora sênior de história contemporânea do Museum of London, Georgina Young, pela coordenadora do Memorial da Resistência em São Paulo, Kátia Felipini, e por Paulo Garcez, do Museu Paulista, que desempenhou o papel de mediador das apresentações, esse conjunto de conferências colocou em pauta uma série de direções no que concerne à relação entre instituições de caráter museológico e a preservação (e construção) de memórias recentes. Esse diálogo, que alcança argumentações interdisciplinares preocupadas em encontrar caminhos para preservar a contemporaneidade ao mesmo tempo que estão atentas a garantir vozes marginalizadas em espaços museológicos, foi abordado no Encontro a partir das colocações sobre as quais se dedicam as instituições representadas pelas duas palestrantes.

A primeira proposta delineada nesse sentido foi aquela do Museum of London, enunciada por Georgina Young com base na observação dos projetos aos quais a equipe do museu londrino tem se dedicado recentemente. De modo geral, são ações que visam à constituição de coleções voltadas a evidenciar as características globais da cidade de Londres e notar a progressão de sua vida urbana ao longo dos anos. Ademais, há no olhar de elaboração desses conjuntos a busca por elementos que estimulem o debate público e ativem a relação entre museu e a vida social da cidade. São aspectos que, apesar de parecerem demasiado determinados, possibilitam um recorte de variação bastante considerável no que diz respeito ao que preservar no espaço desse museu. Permitindo, inclusive, que se mantenha nele uma tradição de organizar coleções de ordem contemporânea. Segundo Young, esse hábito remete à primeira versão do museu londrino (denominado London’s Museum), de 1912. Desde sua abertura havia um desejo de perceber o fugido e moderno que acompanhava o crescimento de Londres, sobretudo pós-Primeira Guerra Mundial, e que trazia constantes mudanças às configurações do tecido urbano e da sociedade. É então na intenção de preservar essa certa “forma de vida urbana” que muitos objetos e vestimentas começaram a serem salvaguardados e também expostos no espaço do museu na concomitância de sua existência fora dele. O intuito era manter, por meio desses “artefatos”, o ar próprio e atemporal da cidade inglesa.

Esse desejo parece permanecer quando se examina a nova configuração da instituição, o Museum of London. Assim como no formato anterior, Young sublinha a necessidade de um aspecto criativo quanto à escolha do que preservar, diante da impossibilidade de tudo guardar. A curadora sênior destaca que o ato de selecionar os objetos vem acompanhado de uma dinâmica do que pode ser percebido daquilo que foi escolhido. Que objetos permitem transmitir a imagem desejada de um tempo e um espaço? A conferência de Young é tomada de exemplos do atual Museu que demonstram as narrativas que podem surgir em torno de um único objeto e as ações as quais ele está relacionado. Isso porque, à diferença de outras coleções, a de cunho contemporâneo está imbricada à história de seu próprio tempo. Isto é, seus objetos são acompanhados de relatos muito específicos a respeito de suas dinâmicas. Esse conhecimento em outras instituições só seria percebido por meio de trabalhos de pesquisa. Em outros momentos, essa integração é tamanha que os objetos do museu indicam a construção de ações na sociedade, que, por sua vez, são imediatamente arquivadas após suas finalizações.

Contudo, apesar dessa dinâmica constante em relação à preservação do próprio tempo, os projetos dos acervos contemporâneos do Museum of London não parecem se inscrever em uma compulsão ao arquivo tal como descreve Fausto Colombo em Os arquivos imperfeitos[2], texto no qual o autor adverte que a sociedade contemporânea em sua característica arquivística tem cada vez mais produzido arquivos dos próprios arquivos. Em outras palavras, modos de arquivar o próprio tempo. Sobretudo porque essa compulsão abordada por Colombo tem como identidade principal um “mito da durabilidade”[3], ou seja, da possibilidade de tudo guardar e preservar. Porém, esse intuito não procede com aquele proliferado pelo Museu. Muito pelo contrário. Nele as escolhas são feitas e, além disso, encorajadas, pois, para Young, é preciso fincar as energias em algumas coisas específicas. Mas como selecionar os elementos que serão alvos dessa atenção particular?

Uma resposta possível dada pelo Museum of London é fazê-lo por meio de um recorte claro e definido a respeito do desejo de impacto do espaço museológico na sociedade à qual ele pertence e/ou sobre a qual interpela. A continuação desse caminho está no alargamento da voz curatorial que é erguida pelo museu como uma espécie de arquivo temporal e espacial. Sob esse olhar, essa instituição dialoga com a guinada subjetiva da segunda metade do século XX e, em vez de impor uma ordem preservacionista pautada apenas no olhar do curador, inclui as vozes dos demais, dos sujeitos envolvidos nas histórias de locais e objetos para uma determinação quanto à importância e à decisão de conservação, incentivando sobremaneira a difusão de histórias orais.

Essa vertente guia não apenas o que há no acervo do museu, mas reflete também o direcionamento que ele manterá nos próximos anos. De acordo com Young, seu plano das ações futuras foi constituído com base nas opiniões públicas sobre os aspectos da contemporaneidade londrina que deveriam fazer parte do Museu, em termos geográficos e temporais. Assim, foi possível a instituição selecionar uma lista sob a qual manter seu foco de concentração, refiná-la e demarcar cerca de quatro prioridades de conteúdos para o período dos próximos três a cinco anos. Desse modo, a escolha do viés memorialístico do Museum of London parece se estabelecer tanto no recorte material quanto na subjetividade que tem lugar nessa instituição. E nesse sentido a questão de que memória preservar (eleger) é também definir a que sujeito dar a voz (como uma espécie de narrador do cotidiano).

Essa escolha pelo sujeito que emerge da margem e tem lugar em espaços arquivísticos está presente também na conferência de Kátia Felipini a respeito do Memorial da Resistência, localizado na cidade de São Paulo. De modo semelhante ao Museum of London, o Memorial celebra a temporalidade do presente. Não obstante, o faz buscando traçar uma linha dialética entre a situação do Brasil republicano para com suas memórias traumáticas, sobretudo em relação à ditatura civil-militar que ocorreu de 1964 a 1985 e permanece como fratura aberta em âmbito nacional e individual. Para Felipini, um dos modos de pensar essas feridas é convocar lugares de memória dos quais o Memorial da Resistência é um espaço fundamental.

Inaugurado em 1914 como conjunto de escritórios e armazéns da Companhia Estrada de Ferro Sorocabana, o edifício sediou várias delegacias vinculadas ao Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP), de 1940 a 1983. Em 2002, três anos após ser tombado como patrimônio histórico pelo Condephaat, o prédio serviu de sede ao Memorial da Liberdade, e posteriormente foi modificado no atual Memorial da Resistência. Essa mudança teve como diretriz principal a efetivação de um “compromisso cívico com a (re)construção da memória e da história política do Brasil”[4]. Nessa lógica, vale destacar a potência do edifício no qual o Memorial é instalado, uma vez que suas paredes mantiveram durante muitos anos presos da ditadura civil-militar brasileira. Por esse motivo, Felipini caracteriza esse espaço para além de uma organização museológica. Ele é também um lugar de memória [Lieux de mémoire]; uma materialidade capaz de servir de âncora ao ato da recordação[5]. Sob outros termos, trata-se de um espaço de refúgio a memória. Mas não é apenas isso. Para Felipini, esse refúgio, especificamente, garante a existência de um espaço voltado a operar certos traumas que permanecem na sociedade enquanto marcas contemporâneas na malha urbana, e como ferida nos sujeitos. A prova cabal dessas feridas é que o reclame de modificação do Memorial da Liberdade em Memorial da Resistência e as recuperações de suas formas e histórias parte de uma proposta por parte dos antigos presos políticos que estiveram trancafiados nesse espaço. Esse lugar de memória estabelecido em alcances nacionais parte de investidas subjetivas.

Esse núcleo fundador a partir dos sujeitos reflete-se em toda a configuração do Memorial. Seu acervo é formado primordialmente por testemunho coletados. Mesmo as configurações à reconstrução de aspectos arquitetônicos do edifício estão diretamente ligadas aos testemunhos daqueles que de lá sobreviveram. A fala em primeira pessoa é o elemento fundamental que liga ainda as fotografias, os documentos etc. Ao contrário do departamento de coleções contemporâneas do Museum of London, que tem o recolhimento das informações circundantes dos objetos que coleciona retirados de um tempo imediato, o Memorial o faz por meio das narrativas que lhe chegam. Para dizer de outro modo, ainda que se dedique a compreender certo rastro traumático na contemporaneidade, o Memorial da Resistência opera sobre um contemporâneo fraturado.

Diante disso, podem-se considerar as duas falas da mesa quatro dessa edição do Encontro Paulista de Museus como análogas, mas também distintas. Ambas levantam o tema da preservação e interpretação do presente, bem como de dilatações nas decisões curatoriais. Todavia, o ato das escolhas se chocam. O Museum of London investe em um recorte que descarta os objetos menos significativos a seus objetivos. Já o Memorial da Resistência tenta cobrir aquilo que já fora descartado de seu tempo, isto porque tenta entender as marcas deixadas na sociedade brasileira a partir da resistência, buscando preencher as lacunas de memórias. Ou ainda, tem a memória como sua maneira de resistir. Por um lado, o museu londrino tenta permitir o esquecimento em suas escolhas. Por outro, o Memorial parece lutar contra essa ação; sua autodenominação como memorial o caracteriza como participante desse tipo de empreita.

De acordo com o artigo “Pensamento como margem, lacuna e falta: memória, trauma, luto e esquecimento”[6], de Paulo Endo, o memorial pode ser entendido como uma dessas instituições que destacam um dos aspectos da dialética entre lembrar-esquecer, nesse caso, a ação do lembrar. Apesar de ser comumente associado a formas físicas e construções monumentais, “um memorial pode ser um dia, uma conferência, ou um espaço”[7], sendo definido de fato por sua injunção à lembrança; ele é o espaço, o dia, a conferência, a forma reservada estrategicamente à recordação. O memorial é estabelecido “especialmente para”, como uma espécie de âncora a uma lembrança específica. Por esse motivo, dificilmente percebemos no Memorial da Resistência um conflito entre as vozes por ele compiladas, isto é, os sussurros que porventura foram deixados ao esquecimento. O propósito de construção à lembrança faz com que o elemento do esquecimento pareça inexistir. No entanto, trata-se apenas de um limite da recordação, muitas vezes não colocado na dinâmica do Memorial, que atribui a ele uma operação distinta do Museum of London. Este último, em vez de frisar a lembrança, tem sua preservação marcada por uma batalha contra certo apagamento (um esquecimento-limite), preservando aspectos que possibilitem narrar histórias a respeito da cidade de Londres e que estariam desaparecidos não fossem suas ações de salvaguarda.

Ainda assim, as duas propostas apresentadas no 6° Encontro Paulista de Museus são executadas a partir de um elemento comum: a preservação do lugar do sujeito como habitante do espaço museológico, tanto como objeto quanto expressando um possível olhar curatorial. Desse modo, essas propostas parecem oferecer a guinada subjetiva como resposta a algumas das questões levantadas por Garcez em relação às conferências: (1) Como interpretar e selecionar o presente? (2) Como dilatar a decisão curatorial de modo a incluir o cidadão? (3) Como pensar ações de preservar como parte do dever do Estado, mesmo que ele seja contestado por elas? Bem, requerer o sujeito como elemento fundamental do museu parece ser uma diretriz de aspectos promissores.



[1] Cf. SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução de Rosa Freire. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

[2] Cf. COLOMBO, Fausto. Os arquivos imperfeitos: memória social e cultura eletrônica. São Paulo: Perspectiva, 1991.

[3] Idem, p. 100.

[4] Ver: http://www.memorialdaresistenciasp.org.br/.

[5] NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, n.10, p. 7-28, dez. 1993.

[6] ENDO, Paulo. Pensamento como margem, lacuna e falta: memória, trauma, luto e esquecimento. Revista USP Memória, São Paulo, n. 98, p. 41-50, jun.-ago. 2013.

[7] YOUNG, James. The texture of memory: Holocaust memorials and meaning. New Haven and London: Yale University Press, 1993. Trecho original: “A memorial may be a day, a conference, or a space [...]” (tradução nossa).