Para que serve o museu e como ele conversa com as necessidades da sociedade?
Ana Paula Sousa - 2021
Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus | Encontro Paulista de Museus |
---|
De repente, entendi indispensável criar um órgão, de amplitude nacional, para preservar as obras de arte, de toda espécie, existentes no Brasil. Fiquei a pensar na quantidade delas, espalhadas pelos estados, de pintores, escultures, ceramistas, artesãos, sem qualquer proteção que as preservasse da cobiça de colecionadores. Essa lembrança simples levou-se a criar o Serviço de Patrimônio Histórico Artístico e Nacional (CAPANEMA, 1983)
Há dois momentos, nos relatos críticos da primeira década do Encontro Paulista de Museus (EPM), cuja primeira edição remonta a 2009, em que a imagem de labaredas destruindo a memória impôs-se na fala dos participantes.
O primeiro deles remonta a 2015, quando o Museu da Língua Portuguesa, localizado na Praça da Luz, centro de São Paulo, foi atingido por um incêndio que destruiu parcialmente o prédio. Após seis anos de reformas, o museu, ligado à Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, deve ser reinaugurado em julho de 2021 – a depender das possibilidades de frequência determinadas pelas medidas de contenção da pandemia.
A segunda referência diz respeito à destruição pelo fogo, em 2018, do Museu Nacional, localizado na Quinta da Boa Vista, zona norte do Rio de Janeiro. Criado por D. João VI em 1818, o museu estava sob a tutela da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e tinha um acervo de 20 milhões de itens, que incluíam desde fósseis e peças indígenas até livros raros. Praticamente 90% do acervo foi atingido.
Os dois acontecimentos, potentes não só pelo significado concreto, mas pelo simbolismo do fogo, são quase incontornáveis quando se pretende discutir os museus no Brasil. E são incontornáveis porque não são únicos; sequer raros. Ainda estão na lembrança de quem quer que siga com o mínimo de atenção os acontecimentos culturais no Brasil os incêndios do Teatro Cultura Artística (2008), da Cinemateca Brasileira (2016) e do Liceu de Artes e Ofícios (2014), ficando apenas em São Paulo.
O desvanecimento, ainda que temporário, desses dois museus materializa aquilo que parece ser uma constante para as instituições museológicas: a ameaça de deixar de existir ou de, no mínimo, fragilizar-se ao extremo.
É também por se configurarem como um inventário das possibilidades de reação das instituições diante dos riscos permanentes que a cultura corre que os relatos aqui reunidos têm valor. Os incêndios, por mais que se deixem entrever nos debates, estão longe de pautá-los ou invadi-los. Eles surgem, ao contrário, como contraexemplos das ações que, ao longo da última década, possibilitaram um avanço na política de museus do Estado de São Paulo. A institucionalização, ainda que cheia de obstáculos e desafios, aconteceu. E parte de sua memória está aqui registrada.
Pode-se dizer que o tema central desta série de encontros foi a necessidade de se repensar o papel das instituições museológicas diante das mudanças que vinham se impondo ao setor cultural mesmo antes do início da pandemia da covid-19. E parte do desafio reside numa maior porosidade das instituições em relação aos movimentos sem volta da sociedade, como a relação mais orgânica com a tecnologia e a ressignificação do establishment ante os movimentos identitários e a voz das periferias.
Os museus do Estado de São Paulo – que se dividem entre aqueles ligados ao Estado, às prefeituras ou à iniciativa privada – configuram, em si, um exemplo interessante do enfrentamento desses desafios. Cabe aqui, inclusive, um parêntese para uma nota que se estende para além do tempo dos relatos.
A partir de outubro de 2020, quando as instituições culturais puderam ser reabertas em São Paulo, com regras de distanciamento social e uma ocupação reduzida a 30% de sua capacidade, dois grandes museus da cidade, a Pinacoteca do Estado e o Museu de Arte de São Paulo (Masp) viram duas de suas exposições, de OSGÊMEOS e de Beatriz Milhazes, respectivamente, terem os ingressos esgotados.
Em ambos os casos, paralelamente à atividade presencial, foram desenvolvidos tours virtuais, atividades online voltadas ao Educativo e cursos específicos para o ambiente digital. O sistema de venda de ingressos online da Pinacoteca sofisticou-se para atender a demanda reprimida, criando uma fila virtual e datas específicas em que novos lotes de entradas eram disponibilizados.
Apesar do perfil popular, no qual a ideia de arte roça o terreno do entretenimento, ambas as mostras trazem artistas brasileiros contemporâneos. Isso, de certo ponto de vista, não é pouco, até porque inimaginável duas décadas atrás. Voltamos, neste ponto, a uma das discussões que os relatos presentes neste volume trazem à tona: como a política pública pode ser mais inclusiva?
O primeiro passo para se entender do que se está falando quando se fala de museus no Brasil é ter um panorama do setor. Ilana Goldstein informa em seu texto que o levantamento feito pelo Cadastro Nacional de Museus, em 2003, registrou a existência de 2697 museus no Brasil – entre museus de arte, museus etnográficos, museus comunitários e museus de território. Esses lugares abrigavam 142 milhões de itens e geravam 27 mil empregos diretos.
Outro levantamento, feito em 2006, revelou que São Paulo era o estado com mais museus do país: 459 instituições cadastradas. A maioria delas está localizada no interior do Estado, onde, como se leu nos relatos aqui presentes, os desafios tendem a ser ainda maiores do que na capital. Esses mapeamentos eram os primeiros passos rumo à desejada institucionalização da área.
A fala da historiadora Cecília Machado que, em 1994, foi trabalhar no Departamento de Museus e Arquivo (Dema), atuando nas instituições museológicas do interior do estado, dá uma dimensão do cenário existente então. Cecília, posteriormente, coordenaria o Sistema Estadual de Museus de São Paulo (Sisem-SP), onde seria responsável pela articulação dos 415 museus. No depoimento presente neste volume, ela olha para trás no tempo e relembra o quão diferentes eram, três décadas atrás, os encontros anuais com a área museológica paulista. “Eram “incipientes, heroicos, sem nenhum incentivo e nada que se pudesse chamar de política pública para a área, que contava com diletantes profissionais que os mantinham vivos”, conta.
Não por acaso, Cecília Machado afirma, em seu relato, que o Sistema Estadual de Museus (Sisem-SP), criado na década de 1980, só passou a estar de fato articulado e alcançar certa capilaridade a partir da primeira década dos anos 2000. É a própria Cecília quem conta que, desde então, foram se intensificando os programas de itinerância de exposições e as pesquisas diagnósticas, “sem as quais o gestor planeja meio às cegas”.
Os anos 2000 coincidem com a presença de Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura (MinC) e com a incorporação da ideia de descentralização da cultura. Naquele momento, desejava-se que o Brasil conhecesse o Brasil e, ao mesmo tempo, que o Brasil do Sudeste não impusesse suas formas de ser e ver aos demais brasis.
Ao mesmo em que no plano federal se desenhava a tentativa de implantação de uma política nacional integrada – que desaguaria na criação do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), em 2009 –, o Estado de São Paulo vivenciava o surgimento de uma nova configuração para a administração cultural: as Organizações Sociais (OS).
O modelo de OS, como bem observa um dos autores dos relatos, Vinicius Spricigo, nasce de uma tentativa, no âmbito dos governos do PSDB no estado de São Paulo, de conciliar o público e o privado.
A primeira Organização Social do setor cultural paulista foi implantada em 2005, justamente, em um museu: a Pinacoteca. A ideia da OS é que o governo mantenha repasses orçamentários para as instituições, mas que estas também busquem, junto à inciativa privada e por meio de iniciativas operacionais – como as bilheterias – complementar seu orçamento.
Essa tendência reproduzia, com toques brasileiros, a chegada da esfera privada ao domínio que, ao longo do século XX, tinha sido especialmente estatal (McGuigan, 1996).
“Vista pelos críticos do neoliberalismo como uma forma de privatização da cultura através da gestão privada de instituições públicas, esse modelo de gestão é apresentado no Encontro Paulista de Museus como um instrumento dinâmico de modernização do setor cultural e da gestão dos museus paulistas”, escreve Spricigo, indicando que o modelo, a despeito das ferozes críticas recebidas em seus primeiros anos, acabou sendo absorvido.
As discussões sobre as Organizações Sociais foram especialmente fortes no primeiro Encontro, em 2009, justamente pela novidade que representavam. Mas, pela forte presença do modelo nas instituições culturais do Estado, a temática acabou sendo retomada outras tantas vezes.
Marcelo Araújo, que dirigiu a Pinacoteca, afirmou, por exemplo, que a gestão do museu por uma OS viabilizou a contratação de funcionários via CLT e permitiu aprimorar aspectos ligados à gestão e governança. Pouco se debateu, contudo, a nova problematização em torno das OSs, que não gira mais em torno de seu perfil excessivamente liberal, mas de sua fragilidade diante da crise financeira do Estado.
Se já vinha se desenhando antes da pandemia da covid-19, essa realidade se torna ainda mais urgente a partir da explosão dos gastos públicos com a saúde e com os socorros financeiros a diferentes setores. Em 2020, todas as Organizações Sociais do Estado de São Paulo tiveram uma redução de 14% no repasse do governo e se viram obrigadas a promover cortes salariais. De acordo com a Associação Brasileira das Organizações Sociais (Abraosc), as entidades do setor reúnem hoje cerca de 4,5 mil funcionários.
Apesar de muitas OSs terem, ao longo dos anos, ampliado suas fontes de recursos privados, a dependência do Estado ainda é enorme. No caso da Pinacoteca, por exemplo, o repasse do Estado, em 2018, foi de R$ 18,7 milhões e os recursos privados ficaram em R$ 5,3 milhões – de acordo com dados disponibilizados no Portal da Transparência do governo.
Com a pandemia, todas as instituições tiveram ainda uma queda brutal nas receitas operacionais, que são aquelas advindas de bilheteria, café e aluguel de espaços. Esse aspecto, o das receitas operacionais, foi, inclusive, pouco problematizado nas discussões promovidas ao longo dos encontros. Uma das raras menções à bilheteria cabe ao Museu do Futebol, que não é voltado à arte.
É interessante, a partir dessa constatação, pensar no quanto a questão da atração do público ainda é delicada, e de difícil manejo. O governo, cada vez mais, ao destinar recursos para as instituições, tende a exigir um retorno mensurável. As instituições, por sua vez, têm de se mover no delicado equilíbrio curatorial entre aquilo que já está assimilado por um público mais amplo e aquilo que é preciso dar a ver.
O sucesso das exposições de OSGEMEOS e de Beatriz Milhazes no primeiro ano da pandemia perpassa essas questões. Sabe-se, porém, que a catraca está longe de configurar a única medida de uma política cultural.
Carlos Eduardo Riccioppo procura abordar, em Conto de Despedida, a questão do museu vivo. Riccioppo problematiza “o quanto o museu se vê cada vez mais assombrado pela ameaça de se converter em um lugar ‘morto’ da cultura; o descolamento entre essas instituições e seu entorno; a dificuldade de levar o público ao museu; a necessidade de se repensar a responsabilidade com relação a seu acervo, àquilo que ele dispõe e apresenta”.
Não são poucas as questões levantadas. E nem tampouco de simples trato. Porque prover acesso é também desencastelar-se. E isso não se dá apenas por meio de exposições capazes de atrair um público mais amplo. A inclusão vai além, e pode ser exemplificada pela referência de Diogo de Moraes Silva a um painel chamado “Museus e movimentos sociais”.
Nesse encontro, o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-USP) falou de suas aproximações com os movimentos sociais no projeto “Girassol”, realizado no Jardim São Remo. A São Remo é uma comunidade localizada ao lado da Cidade Universitária, onde, de acordo com o censo organizado pelo projeto Democracia, Artes e Saberes Plurais (DASP), coordenado por Eliana Sousa Silva, catedrática do Instituto de Estudos Avançados da USP, residem 8,4 mil pessoas. “Procurando atravessar fronteiras segregadoras, este e outros projetos do MAE-USP dão ensejo para pensar noutra modalidade museal, a museologia social”, escreve Silva.
Cayo Honorato avança alguns passos nessa mesma trilha, apontando a necessidade de os museus não só “reavaliarem os objetos e narrativas de seus acervos e exposições, de modo a acolher questões e perspectivas de grupos marginalizados, mas de também responderem à resistência de outros setores da sociedade, que não aceitam a presença dessas questões na esfera pública”.
A necessidade de que os museus transponham seus muros para relacionar-se de forma direta com a comunidade perpassa muitos relatos. É que, cada vez mais, cada instituição se verá obrigada a se perguntar – e a responder, não só para si, mas para a sociedade – sobre a razão de existir.
Na mesa “Provocações: Museus para quê?'', Jochen Volz, diretor da Pinacoteca, que era o mediador do encontro, sugeriu que esse questionamento fosse articulado com outros dois: Por que? E para quem? A palavra “propósito”, que entrou em voga entre as empresas e os conselheiros de carreira, tende, cada vez mais, a estender-se para as instituições.
Para que serve a instituição museológica e como isso conversa com os desejos e as necessidades sociais e simbólicas da população?
As respostas para essas duas perguntas são, certamente, muito diferentes daquelas que moveram Gustavo Capanema (1900-1985), o ministro da Educação de Getúlio Vargas (1882-1954) que, em 1937, criou o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), pedra fundamental para a existência deste volume que se configura como mais um tijolo na construção da memória institucional da cultura brasileira.
Referências
CAPANEMA, Gustavo. Pensamentos. Belo Horizonte: Ibérica, 1983.
MCGUIGAN, Jim. From state to market. In: Culture and the public sphere. London: Routledge, (1996), p. 51-73.