Tempos de crise: um debate sobre o financiamento aos museus em meio a crise social e econômica brasileira
Por Bruno Giordano
Coordenação Beto Shwafaty
Relato crítico da mesa: “Forma de financiamento para museus”
Este relato faz parte do livro: Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus
Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus | Encontro Paulista de Museus |
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O ano de 2017 tem sido cercado por expectativas em todos os setores da sociedade. Seja no campo político, social, econômico ou cultural, é visível o anseio por respostas e soluções à crise pela qual o Brasil passa nos últimos anos. Aparentemente, a escolha do tema do 9º Encontro Paulista de Museus “infraestrutura e segurança” também foi pensada como forma de refletir sobre alternativas aos modelos vigentes de gestão e sustentabilidade dentro do campo museológico, pois, uma vez instaurada a crise no Brasil, a redução de gastos com a cultura foi um passo imediato. Extinguiu-se, mesmo que temporariamente, o Ministério da Cultura[1], medida cancelada pelo presidente em exercício Michel Temer após a grande e negativa repercussão que tal ato causou, tanto dentro quanto fora do setor cultural. A extinção do Ministério foi um claro aceno de que a cultura não se situa entre as prioridades do atual governo.
Assim a mesa de debate sobre “Forma de financiamento para museus” é de grande pertinência à ocasião. Uma vez que é perceptível o aumento de público dos espaços culturais nos últimos anos[2], a manutenção dos espaços – assim como os gastos relacionados às exposições e aos equipamentos – também aumentou. E foi a partir desse breve panorama que Regina Ponte, mediadora da mesa, iniciou sua fala. Ela abordou aspectos relativos às formas de financiamento para projetos culturais, ressaltando o cenário de diminuição dos repasses de recursos do Estado às instituições – pois, mesmo com a recriação do Ministério da Cultura, o setor cultural vem gradativamente perdendo investimentos desde 2014. Contraposto a esse fato, observamos um crescimento da captação de recursos para cultura na iniciativa privada. Ponte alertou sobre a finitude desses recursos e a consequente dependência que podem gerar (muitas vezes oriundos de leis de incentivo), frisando o perigo da precarização dos espaços culturais e acervos quando tais recursos terminam. É preciso buscar novas formas de obter recursos e segurança financeira para a execução dos projetos, afirmou ela.
Ricardo Levisky, pensando em uma alternativa, trouxe ao debate o conceito de endowments, cuja tradução seria algo próximo a “fundos patrimoniais permanentes” e que visariam certa sustentabilidade aos apoios financeiros. Os endowments são fundos de investimentos fixos no qual apenas os lucros e rendimentos são utilizados como mecanismos de financiamento. Nesse sentido, Levisky aponta as principais diferenças entre os fundos patrimoniais (que não podem ser utilizados em seu valor bruto, nem mesmo em casos de emergência) e os fundos de reserva (que são utilizados em casos de crise financeira, por exemplo). Porém, Levisky concentra sua fala nas características culturais brasileiras, tomando como foco dois principais pontos que fazem o modelo de endowment não ser amplamente adotado no brasil, diferentemente do que ocorre em instituições anglo-saxônicas:
● Cultura de curto prazo: o Brasil não planeja no longo prazo questões financeiras. Em oposição a isso, o endowment é focado no longo prazo. Aqui, o palestrante aponta que tal fato é uma das grandes barreiras à adoção do modelo nas instituições locais.
● Gestões personalistas: seja na esfera governamental ou na administração privada de equipamentos culturais, as gestões não se comunicam. Tal fato prejudica muito o desempenho das instituições, que, a cada troca de gestão, são submetidas a recomeços. Levisky aponta aqui que o endowment traria a autonomia, pelo menos financeira, daqueles que sempre investem no espaço cultural. Porém, observa-se que há uma tendência de as instituições tornarem-se dependentes do capital injetado, e, quando o investimento é interrompido, a instituição se vê sem outra alternativa a não ser reduzir seu trabalho, ou até mesmo encerrar atividades. Também, o endowment serviria para criar um ciclo sustentável de rendimentos, pois há a garantia de retorno de sobre o patrimônio investido.
E, na busca de investimentos para os endowments, Levisky aposta na filantropia, trazendo dados recentes do Instituto Gallup, onde mais da metade dos brasileiros fez algum tipo de doação em 2016 (totalizando cerca de R$ 13,7 bilhões, cerca de 0,23% do PIB)[3]. Além da filantropia, também seria possível arrecadar recursos para compor o fundo patrimonial por meio da privatização de empresas públicas, dinheiro recuperado da corrupção e multas rescisórias de empresas. Modelo semelhante aos endowments é feito pela Caixa Econômica Federal, que repassou em 2016 cerca de 359 milhões de reais ao Fundo Nacional de Cultura, que tem por objetivos principais a preservação e o desenvolvimento cultural do Brasil[4].
A fala de Ricardo Levisky trouxe ao debate um olhar totalmente mercadológico sobre a cultura. As instituições culturais necessitam certamente de recursos financeiros para se manterem, mas o olhar de Levisky coloca o dinheiro no centro da operação cultural e museológica. Ele defende a autonomia do espaço cultural, tanto da iniciativa privada quanto da iniciativa pública, mas a conquista dessa independência é obtida por meio do capital. Aqui, a questão se coloca entre mensurar o que pode ser visto como oferecimento de cultura e o que se torna produto na esfera dos museus, a fim de então podermos ter melhor perspectiva de quais seriam os mecanismos de autossustentação econômica para esse setor.
Em seguida, Monica Barcellos apresentou o Ibermuseus[5], seu campo de atuação e estrutura. Destaca-se no programa o foco em cooperação financeira e articulação de políticas públicas, no qual a captação dos recursos para viabilizar as atividades é obtida pela arrecadação financeira entre os países-membros. O fundo de emergência ao patrimônio museológico em situação de risco é um recurso solicitado quando o patrimônio necessita de auxílio em caráter emergencial, devido a danos por catástrofe ou causas naturais. Mônica citou como exemplo o caso do Haiti, pois, mesmo não sendo parte integrante do programa ibero-americano, entendeu-se haver a necessidade de realizar a operação de risco no país. Outro destaque foi dado às ações educativas que fomentam atividades relacionadas à transformação social, assim como a integração de acervos dos países-membros.
Embora seja a arrecadação o método encontrado para a realização de um projeto da dimensão do Ibermuseus, foi possível perceber que os incentivos ou até mesmo os fundos emergenciais são iniciativas que não comportam a cobertura total das necessidades de um patrimônio em risco[6]. Também nesse caso, a estrutura do programa ainda é dependente de iniciativas público-privadas, mantendo-se num caminho mais tradicional de captação financeira.
O último participante da mesa, Aldo Valentim, apresentou um panorama da participação do Estado no incentivo à cultura. Coordenador do ProAC[7], ele introduziu sua fala a partir da Constituição de 1988, na qual ficou estabelecido que o Estado brasileiro receberia um número maior de funções e obrigações. Porém, o que se constata de 1988 até agora é que o governo não conseguiu arcar com essas obrigações conforme o que foi constitucionalmente estabelecido. Surge, então, a necessidade de criar políticas específicas para o campo cultural capazes de atender às demandas das atividades culturais. Assim como Regina Ponte, ele ressaltou a finitude dos recursos do Estado e defendeu múltiplas formas de arrecadação, sabendo da demanda de projetos que nem sempre são atendidos pelas formas de financiamento mais usuais.
Caminhando para o fim do debate, Regina Ponte abriu espaço para perguntas, onde Valentim, em tom provocativo, falou sobre a lógica do capital que influencia nas escolhas de grandes exposições e acaba tornando-as dependentes do universo das finanças, além do risco de se espetacularizar o espaço museológico. Ele comentou também sobre a proposta dos endowments de Levisky e questionou se esse modelo de arrecadação financeira seria eficaz para os museus de pequeno e médio porte.
Levisky argumentou que o raciocínio de Valentim se aproxima de questões filosóficas relacionadas à arte, afirmando que é possível oferecê-la (a arte) atrelada ao entretenimento, mesmo quando essas estão orientadas por uma razão de mercado. Os endowments, segundo suas colocações, serviriam para quaisquer tipos de organizações e de qualquer porte.
Perguntada por Ponte sobre o método de arrecadação do Ibermuseus, Monica Barcellos confirmou que a arrecadação para os projetos é feita entre os países membros do projeto. E quando questionada sobre quais foram as entidades beneficiadas no Estado de São Paulo com o projeto, ela não especificou quais e apenas frisou que o programa já atuou em São Paulo, em diversas ocasiões.
Por fim, Regina Ponte falou sobre o Museu da Língua Portuguesa. Os gastos para restauração foram integralmente feitos pela seguradora e não foram utilizados recursos do Estado em sua reconstrução.
A composição da mesa pareceu-nos bem articulada, ao reunir diferentes olhares sobre um mesmo setor. Destacaram-se Valentim e Levisky que possuem atuações tecnicamente opostas, tanto na forma de pensar a arrecadação, quanto em suas ideologias: um essencialmente voltado ao Estado e o outro baseando-se na autonomia financeira da instituição através do capital privado, ao passo que Barcellos adota um caminho misto, porém baseado na colaboração e integração dos estados-membros da sua organização.
As discussões dessa mesa evocaram, mesmo que de forma indireta, um dos grandes debates do campo cultural atual: a questão se a arte e a cultura devem sempre trazer algum tipo de retorno financeiro. Contudo, nos casos onde há o investimento privado, quase sempre o retorno financeiro é uma cláusula, e isso obriga o crescimento exponencial de público que paga pelo ingresso à instituição. O fator qualidade x quantidade é colocado em pauta, pois muitas vezes o espaço não comporta o público que é necessário para cobrir o investimento feito, e isso pode comprometer tanto a infraestrutura do local, quanto a segurança do acervo, colocando-o em uma situação de vulnerabilidade e gerando outras situações que ameaçam o valor simbólico e cultural das obras e atividades correlatas. De todo modo é inegável que foi em meio a crise que surgiram alternativas para manutenção dos equipamentos culturais através da iniciativa privada, mesmo que essa seja regida pela lógica do mercado.
Não há um único caminho a ser seguido, porém as instituições culturais não podem abrir mão dos seus objetivos e valores em função do capital, ao passo que não podem abrir mão do capital para manutenção dos seus espaços. É preciso considerar que, embora o setor cultural seja parte da sociedade, ele também segue um ritmo e discurso próprios, que não devem suceder a todas as intervenções financeiras. Os recursos das empresas que oferecem investimentos para execução de projetos culturais também devem ser considerados, porém evitando que arte e entretenimento cultural se tornem apenas mais um produto ou bem de consumo.
[1] TEMER decide recriar Ministério da Cultura; ministro assume na terça. G1, 21 maio 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/05/temer-decide-recriar-ministerio-da-cultura-anuncio-deve-ser-na-terca.html.
[2] http://gente.ig.com.br/cultura/2017-01-24/exposicoes-de-arte.html
[3] http://idis.org.br/idis-divulga-resultados-da-pesquisa-doacao-brasil/
[4] Cf. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. Repasses sociais e relatórios anuais. Disponível em: http://loterias.caixa.gov.br/wps/portal/loterias/landing/repasses-sociais/.
[5] http://www.ibermuseus.org/instit/conheca-o-programa-ibermuseus/
[6] “Os valores destinados a cada uma das solicitações serão determinados pelo Comitê Intergovernamental do Programa Ibermuseus.” Regulamento do Fundo de Emergência para o Patrimônio Museológico em Situação de Risco, disponível em: http://convocatorias.ibermuseus.org/media/fondo-de-emergencia/2017/Reglamento_FondoEmergencia_Por.pdf. Acesso em: 7 jul. 2017.
[7] http://www.transparenciacultura.sp.gov.br/wp-content/uploads/2016/03/2017.02.17-Boletim-UM-n.-3-ProAC-Editais.pdf