Para além da estória
Relato crítico da mesa: “Sisem-SP: Balanços e perspectivas”
Este relato faz parte do livro: Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus
Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus | Encontro Paulista de Museus |
---|
Em um artigo intitulado “The trouble with stories” (O problema com as estórias), o sociólogo Charles Tilly aborda as dificuldades no ensino da sociologia geradas pela tendência de estudantes e professores a moldar as explicações da vida social por meio de “estórias” simples, que, como tais, possuem estruturas causais bastante particulares. Segundo o autor, as estórias necessariamente têm um limitado número de relações entre os personagens, sejam eles pessoas ou organizações. Assumidos como conscientes e automotivados, os personagens realizam ações importantes em consequência dos próprios impulsos ou deliberações, e o espaço/tempo em que interagem é invariavelmente reduzido. Tudo o que acontece resulta diretamente dos seus atos, com exceção dos acidentes, percebidos nelas como acaso. As ações cumprem regras de plausibilidade e produzem efeitos em outros personagens, os quais, por sua vez, sustentam essa mesma plausibilidade.
As estórias seguem as implicações acumulativas das ações voltadas para algum resultado interessante, ou ainda, partem do resultado interessante para construir a narrativa por essas regras específicas. Segundo Tilly, tal estrutura é incompatível com o funcionamento dos processos sociais. Na maioria desses processos estão envolvidas relações de “causa-efeito” indiretas, ampliadas, interativas, não intencionais, coletivas e mediadas pelo ambiente não humano.
A mesa “Sisem-SP: Balanços e Perspectivas e Lançamento do Site SISEM-SP”, com Renata Motta, Luiz Mizukami e Neli Viotto, enfocou um processo social em “rede” como base da formação institucional da atividade museológica no contexto do governo do Estado de São Paulo. Renata Motta, diretora do Sisem-SP (Sistema Estadual de Museus), inicia sua apresentação elaborando uma revisão histórica da organização política da cultura no âmbito estatal, da qual o Sisem-SP é parte. Considerando esse histórico, e juntamente com Luiz Mizukami, membro de sua equipe técnica, explica as diretrizes do Sistema, os objetivos, suas ações e perspectivas. Por fim, Neli Viotto, representante dos polos regionais, expõe as implicações dos trabalhos no Sisem-SP para as instituições do interior e as possibilidades geradas por ele.
O histórico apresentado por Renata, da consolidação de uma política governamental para os museus no Estado, parte da criação da Secretaria da Cultura, Esporte e Turismo, em 1967, observando que a cultura não possuía uma secretaria específica nesse primeiro momento. Em 1974, explica Renata, são instituídas coordenadorias para cada uma das áreas, entre as quais está a cultural. Essa coordenadoria ainda apresentava a discriminação entre as instituições do interior do Estado e da capital, que foram colocadas sob a responsabilidade de diferentes departamentos. No ano seguinte, a cultura é agrupada com a ciência e tecnologia e separada do esporte e turismo, passando a se chamar Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia. Em 1979 é designada uma secretaria específica para a área. A criação de um sistema de museus para o Estado ocorreu em 1986, e em 2006 se estabelece a estrutura administrativa atual. Em 2011 o sistema passa a ser denominado Sisem-SP. Durante sua apresentação, Renata procura vincular momentos desse processo com acontecimentos externos às instituições culturais ou para além do âmbito estadual. Os desdobramentos históricos em sua descrição não expressam a noção de uma direção predefinida dos agentes envolvidos. Os fatos parecem ocorrer por fenômenos estabelecidos em uma complexidade de redes diversas. Apesar de desenvolver de modo bastante sintético esse histórico, Renata evita reduzir sua análise à estrutura linear das estórias, conforme explicado anteriormente.
Essa concepção da formação histórica do Sisem-SP é reafirmada na descrição das diretrizes que Renata busca esclarecer ou definir. Enquanto proposta política para o presente, ela se depara com uma variedade de elementos não redutíveis a uma categoria unitária, os quais só podem constituir suas forças em direções conciliadas por um largo processo de negociação. Assim, as iniciativas a serem tomadas precisam se fundamentar sobre essa realidade, procurando explicitar, formalizar e fortalecer os processos de capacitação, conexão, negociação e articulação entre os elementos (instituições museológicas e corpo técnico-administrativo). Luiz Mizukami, nesse sentido, colabora com Renata apresentando algumas das ações realizadas após o 3º Encontro Paulista de Museus, de 2011. Cita, por exemplo, a organização de eleições para a formação de representações em cada uma das Regiões Administrativas do Estado (RAs), o planejamento das ações do Sisem-SP junto com estas representações, diagnósticos e assessorias visando o apoio técnico com profissionais qualificados, trabalho de capacitação com palestras e cursos ministrados nas regiões ou a distância, e a realização de exposições itinerantes.
Luiz define o Sistema como uma instância da Secretaria da Cultura que tem como objetivo principal a articulação entre os estabelecimentos museológicos do Estado, sejam eles museus públicos, privados ou centros de cultura.
Renata ainda divulga o site do Sisem-SP (www.sisemsp.org.br) como uma importante ferramenta de suporte aos trabalhos de comunicação entre as organizações ou representações regionais no Sistema. Enfatiza a possibilidade de esse espaço virtual ser utilizado como uma espécie de rede social pelos agentes. Além disso, o site permitiria um acesso rápido às informações e ações referentes ao Sisem-SP e às instituições participantes.
Neli Vitto, coordenadora da Região Administrativa (RA) de Bauru, explica que o Sisem-SP está dividido em 15 RAs e, segundo ela, seus representantes eleitos organizam periodicamente reuniões regionais com foco na articulação local. Destaca o valor dos canais de comunicação e assistência estabelecidos pelo Sistema, adequados à diversidade de demandas vinculadas às singularidades das diferentes regiões do Estado. Também aponta para a importância e os benefícios concretos, para o interior, da interlocução estabelecida com a capital, além das articulações formadas nas próprias RAs ou entre RAs, com o apoio do Sisem-SP. Nessa perspectiva, Neli relata suas experiências práticas de atuação no Sistema, procurando explicar, com diversos exemplos, o processo de trabalho desenvolvido.
Conforme o conteúdo exposto pelos três componentes desta mesa, é possível reconhecer uma preocupação central na objetivação, explicitação ou formalização dos meios que fomentam e permitem a formação de uma rede entre as instituições. Estrutura que possibilitaria ao poder público concatenar o conjunto de ações em direção a um objetivo desejado, mas que também o coloca diante da necessidade de negociar com os diversos elementos envolvidos e formalizar seus próprios procedimentos administrativos. Desse modo, os comunicadores desta mesa expressam uma ênfase na articulação para um trabalho realizado coletivamente por meio de associações de benefício mútuo. Entretanto, conforme poderia ser inferido a partir das críticas de Tilly, apresentadas anteriormente, sobre a estrutura incompatível das estórias simples com a complexidade do processo social, qualquer inciativa no âmbito político precisaria ser produzida em adequação à multiplicidade de conexões e negociações entre diversos elementos sociais. A especificidade no caso dos procedimentos apresentados pela mesa está no empenho para a análise, explicitação e regulamentação dessas atuações, que não somente trazem como consequência a possibilidade de sua avaliação, mas também constituem o cerne de uma política inclusiva. Tornando objetivas e claras as próprias normas processuais é que a política pública se mantém acessível à entrada de novos agentes e exposta à análise crítica daqueles que a ela são submetidos.
Enfim, é a esse contexto prático que pertence a compreensão da história da política cultural apresentada por Renata, a qual, apesar de bastante sintética, está distante da estrutura das estórias simples, percebidas por Tilly como recorrentes em discursos explicativos, inclusive da esfera acadêmica. Diretamente envolvidos com necessidades de soluções políticas concretas, os componentes desta mesa transparecem essa posição privilegiada que ocupam para entender e descrever o funcionamento dos processos sociais e expor adequadamente as necessidades, soluções e objetivos do trabalho desenvolvido pelo Sisem-SP.
O artigo de Tilly foi publicado em PESCOSOLIDO, Bernice; AMINZADE, Ronald. The social worlds of higher education. California: Sage Publications. 1999. p. 256-270. (N.A.)