O museu como instituição e pesquisa
Relato crítico da mesa: “Museu: território de pesquisa”
Este relato faz parte do livro: Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus
Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus | Encontro Paulista de Museus |
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Claudinéli Moreira Ramos apresenta os convidados da mesa e, em uma pequena introdução ao tema geral a ser ali discutido, defende a necessidade de uma pesquisa, por parte das instituições museológicas, acerca dos conteúdos derivados de seus acervos, lembrando que muitos destes não se constituíram com critérios; afirma também a necessidade de que os museus realizem parcerias com as universidades, almejando que o museu pudesse ser um lugar de extroversão das pesquisas universitárias. Verdades. Ou meias.
Primeiro, porque, às vezes, reivindicar o problema da “falta de critérios” na constituição do acervo de um museu equivale apenas a reclamar do fato de que os museus sejam coisas históricas. O que, afinal, haveria de problemático em conceber um museu, de repente, como sendo uma instância ativa ou um dos lados da formação de uma cultura? Mencionar aquela suposta “falta de critérios” na constituição do acervo de muitos museus é nem sequer aventar a possibilidade de que, muitas vezes, o processo de institucionalização desses museus tenha passado por uma verdadeira imbricação deles com a formação cultural das cidades. E, desse modo, abandonar de saída qualquer tentativa de pensá-los como qualquer coisa além do que meros depósitos de cacarecos a serem inventariados e classificados.
Nem é preciso dizer que a segunda parte do comentário casa-se perfeitamente com a primeira, ambas buscando “resolver” de uma vez por todas o problema que deve ser a pesada permanência dos museus sobre as costas do Estado. A reivindicação de que a pesquisa ligada à universidade encontre no museu um lugar de extroversão possui, sim, algo de promissor – afinal, quem duvidaria de que, muitas vezes, uma e outra instituição dividam interesses comuns? Mas o que fica no ar, aqui, não são os momentos em que o empenho da pesquisa universitária encontra-se com o museu, e vice-versa. Resta ser pensado, isto sim, até que ponto aí não reside um julgamento de ambas as instituições como dois pesos-mortos para o ponto de vista do Estado. O problema do grande insight é que ele, de soslaio, junta o problema da falta de pesquisa nos museus (tão apontado em todas as falas do evento) com o problema da incapacidade de extroversão das discussões “internas” à universidade. A grande “descoberta” possui, convenhamos, um caráter de resolução ostensivamente prático e rápido. Mas o curioso é que as apresentações da mesa – sobretudo as de Clara de Assunção Azevedo, do Instituto da Arte do Futebol Brasileiro, e do professor doutor Eduardo Romero, da Unesp, ligado ao “Projeto Memória Ferroviária” – deixam claro exatamente o contrário: que a relação entre a pesquisa universitária e a reflexão a respeito do museu, se ela já se dá, ou se sempre se deu, quando se dá, ou quando se deu, é ou foi de modo necessário.
Pouco haveria, aqui, a comentar a respeito da apresentação de Mariana Rolim, que abordou o projeto “Eletromemória”. O projeto buscou investigar a história da energia no Estado de São Paulo, partindo da Fundação Energia e Saneamento, que recebeu, na época das privatizações, os acervos Sesp, Comgás e Eletropaulo, incorporando a seu acervo 13.500 objetos ao longo tempo. Possuindo pelo menos duas instâncias de interação com a sociedade (há um núcleo de documentação e pesquisa e o Museu da Energia), o “Eletromemória” surgiu de uma pergunta a respeito do acervo que a Fundação possuía, buscando saber o que existia sobre energia. Para tanto, há dois anos, buscaram um professor de história e criaram um projeto de pesquisa.
Algo talvez diferente tenha ocorrido com os casos do “Projeto Memória Ferroviária” e com as atividades ligadas ao “Museu do Futebol”, que parecem não ter procurado a pesquisa, mas partido dela.
O professor doutor Eduardo Romero, da Unesp, conta que o “Projeto Memória Ferroviária” começou em 2005 e se encerrou neste ano, partindo da tese central de que a expansão da cultura cafeeira teria desencadeado uma expansão ferroviária, o que teria possibilitado a fundação de uma série de municípios. Os bens sobre os quais o projeto se concentrou foram transferidos para o Iphan, em 2007, que possui hoje o papel de avaliação, fiscalização e administração, mas não sem que fossem investigados de acordo com a premissa de que, dentro da história, as empresas ligadas às ferrovias traziam uma imagem de civilização – a ferrovia, afinal, é uma imagem civilizatória, que se constitui no século XIX, levando a cabo novos padrões de urbanização, como é o caso da arquitetura do ferro. O objetivo do projeto passava pelo levantamento da documentação referente às ferrovias do estado de São Paulo entre 1868 e 1971, e as linhas de pesquisa inseriam-se em um estudo que buscava pensar a tecnologia em relação à cultura. Como se vê, o museu, aqui, considera necessariamente a paisagem urbana ou o que está fora dele, de saída. Ou, mais do que isso, o processo de institucionalização do museu é pensado, desde o princípio, não com o auxílio de uma pesquisa ligada à universidade, mas integralmente nela.
Mas o caso do Centro de Referência do Museu do Futebol, apresentado por Clara de Assunção Azevedo, parece ainda mais crucial para pensar sobre o estatuto da pesquisa dentro do museu. Surgido em outubro de 2008, o Museu do Futebol não nasce de um acervo, mas de um tema, e a exposição principal do museu não são nem pretendem ser objetos que possam ter a ver com o futebol, mas o argumento de que o Brasil possa ser pensado a partir do futebol. O caso é especialmente interessante se se puder extrapolar um pouco e dizer que a pergunta “o Museu do Futebol deve abrigar coleções?” faz, necessariamente, parte do seu acervo; e Clara observa bem a questão, perguntando-se até que ponto faz sentido que os troféus estejam nos museus, e não nos clubes de quem os ganharam, ou, ainda, reconhecendo que não é possível integrar ao acervo os botecos onde se discute o futebol, os campos de várzea e até mesmo a própria sociabilidade (a forma de constituição do museu, neste caso, resiste em se compreender alheia ao conteúdo de seu acervo).
Parece audacioso que um museu parta não da premissa da salvaguarda de objetos, mas do intuito de sistematizar, como afirma a palestrante, “uma coleta contemporânea de referências”. Daí, então, a tentativa de constituição do museu como um lugar de onde se possa vislumbrar os objetos, lugares, mas também as personalidades e as histórias que se agrupam sob o termo “futebol”. No fim das contas, aliás, o esforço todo do Museu do Futebol parece apontar para uma promissora possibilidade, que é esta, de resistir à institucionalização de seu objeto (o futebol), que pelo museu é indagado não naquilo que foi, mas naquilo que ainda é, em seu poder de ainda explicar algo da cultura.
Conta Clara que o museu foi acusado de se deixar “espetacularizar”. Mas aí é que reside, parece, seu maior interesse: decerto porque se encontra com um objeto que se constitui, em boa parte, pelo seu próprio caráter de espetáculo, ou, além disso, porque compreende que seu objeto se constitui mesmo não apenas nos estádios, mas também na televisão, no rádio, nos jornais etc.; o museu, neste caso, admite-se também parte do espetáculo. Quer dizer: se há qualquer vontade deste Museu do Futebol de atrair seu público por meio de soluções ditas espetaculares – projeções, reproduções de filmes, de hinos, de gritos embalados por torcidas –, tal vontade não se expressa sem que carregue consigo alguma característica imanente ao próprio futebol (no caso, o de se perpetuar na cultura por meio mesmo de sua reprodução, divulgação etc.).
A confiança do Museu do Futebol é uma que jamais busca na pesquisa um apoio; antes, trata-se de uma aposta em reconhecer, a um só tempo, enquanto pesquisa e enquanto institucionalização, para o que se deixa confundir mesmo com seu objeto e, quem sabe, mais ainda, constituí-lo.