“Um museu sem realidade não é um museu"[1]
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Relato por Daniele Zacarão
Relato crítico da conferência internacional: “Panorama dos museus no mundo”
Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus | Encontro Paulista de Museus |
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A conferência internacional “Panorama dos museus no mundo”, realizada durante o 1º Encontro Paulista de Museus, no ano de 2009, foi proferida pelo espanhol doutor em Física Jorge Wagensberg, que atuou entre 1981 e 2016 como professor de Teoria dos Processos Irreversíveis na Faculdade de Física da Universidade de Barcelona. Em 1983, criou e editou a coleção de livros Metatemas, material de referência para o pensamento científico, que atualmente conta com mais de 130 títulos. Foi o autor de uma dezena de livros e centenas de artigos de pesquisa em termodinâmica, matemática, biofísica, microbiologia, paleontologia, entomologia, museologia científica e filosofia da ciência. Criou e dirigiu, entre 1991 e 2005, o Museu de Ciências da Fundação La Caixa, coordenando também sua reformulação em 2004, o que resultou no Cosmocaixa, com sede em Barcelona e Madri. Em 2005, recebeu o Prêmio Nacional de Pensamento Científico e Cultura da Generalitat de Catalunya, como reconhecimento pelo seu trabalho de criação do novo museu Cosmocaixa. Jorge Wagensberg permaneceu como diretor da área de Meio Ambiente e Ciências da Fundação La Caixa até 2014. A conferência apresentada no Encontro Paulista de Museus está pautada na sua experiência dirigindo e assessorando projetos de museus de ciências pelo mundo.
O professor Jorge Wagensberg inicia sua apresentação anunciando uma primeira definição importante para um novo modelo de museu. Segundo ele, estamos aprendendo um novo ofício, inventando um novo modelo de museu científico, que, em muitos sentidos, será um espaço de encontro imprescindível para o futuro. O museu de ciências, assim como todos os outros museus, será um espaço de encontro para promover mudanças, um instrumento de transformação social.
Nessa perspectiva, Wagensberg expõe um breve histórico sobre a definição de museus de ciências, pontuando que inicialmente eram espaços que apresentavam objetos em vitrines. A partir dos anos 1930, há uma mudança importante e os museus passam a apresentar fenômenos. Mas é no final dos anos 1970 que começam a aparecer os ditos “novos museus”, museus interativos, considerados por muitos “museus modernos”. Em meio às suas observações, o conferencista destaca que a prioridade da ciência está em compreender a realidade do mundo, que se compõe de objetos que ocupam o espaço e fenômenos que ocupam o tempo. Portanto, o mais sensato seria criar museus de objetos e fenômenos – esse é o modelo provocado em sua comunicação.
Os museus de ciências são a intersecção de quatro áreas sociais: a comunidade científica, que crê na ciência; os cientistas, produtores do conhecimento científico; o setor produtivo, que usa e aplica o conhecimento científico; a sociedade, que usufrui dos benefícios e riscos da ciência; e os gestores da ciência, empresários e políticos responsáveis pela administração. Nesse sentido, os museus de ciências são espaços para debater ideias com credibilidade. Partindo dessas concepções, Wagensberg sugere a definição de que o museu de ciências moderno é um espaço de encontro dedicado prioritariamente a promover estímulos a favor de três coisas: conhecimento científico, método científico e opinião científica; e isso acontece a partir de uma “palavra museográfica” muito especial, que é a realidade.
Para Wagensberg, a prioridade desse modelo sugerido de museu não é guardar um patrimônio, educar, formar ou informar. Nada disso é proibido, mas não deve ser prioridade; sua prioridade deve ser promover estímulos e emoções. Para conseguir isso, a diferença está no visitante, que deve sair da visita com muito mais perguntas do que ao entrar; a diferença está no que acontece depois da visita, na transformação da vida, na necessidade despertada de buscar outros canais de informações.
Na sequência, questiona sobre a palavra/linguagem da museografia; se a imagem é a linguagem de um filme, se o som é a linguagem do rádio, se a escrita é a linguagem do texto, qual é a linguagem do museu? Ele mesmo responde: “Eu creio que é a realidade. Um museu sem realidade não é um museu”. Todos esses recursos são importantes – imagens, textos, vídeos etc. – mas não substituem a realidade, podem apoiá-la ou explicá-la.
Questiona também sobre os elementos museográficos. Segundo o professor, no século XXI não são apenas os objetos como nos museus antigos, também não são só os fenômenos como os museus modernos, mas esses elementos colocados em diálogo, objetos com objetos, objetos com fenômenos, fenômenos com fenômenos, e, ainda, pode-se adicionar uma terceira via, a metáfora. Nesse caso, teríamos uma “riqueza museográfica” a partir de múltiplas combinações entre objetos, fenômenos e metáforas.
Afirma igualmente que a nova função do museu não é ser visitado, é ser usado. Para definir melhor essa afirmação, ele usa como exemplo uma praia, pois não vamos à praia para vê-la, vamos para usá-la. Como professor, tece uma crítica às escolas que habitualmente visitam os museus uma vez por ano, quando deveriam visitá-los toda semana. No espaço da escola tudo é virtual, as aulas, os livros, e, nesse sentido, os museus são uma das poucas conexões com a realidade. Por isso as escolas deveriam acessar a realidade ao menos uma vez por semana. Há 20 anos atuando no sistema educacional, sustenta que faltam muitos estímulos para emoções e conversações.
Wagensberg destaca que a “conversação” é uma maneira de usar e valorizar os museus. Não se deve valorar um museu pelo seu número de visitantes. O importante para um museu seria saber quantos quilos de conversações se provoca em uma visita, e também depois da visita, em outros lugares, como a sala de aula. Para exemplificar suas ideias, o professor apresenta, projetadas em um telão, algumas imagens de objetos expostos no Cosmocaixa e suas possíveis abordagens e histórias a serem exploradas pelo público.
Entre os exemplos está uma matéria rochosa anunciada como um dos mais interessantes objetos do museu, pelo fato de não saberem do que se tratava. Esse exemplo é importante para pensarmos que, quando nos deparamos com algo “cientificamente comprovado”, ou em um espaço de ciência, sugere que estamos diante de uma verdade única e concluída. Wagensberg diz que um dos erros mais comuns entre os museus de ciências é apresentar o resultado e não apresentar os métodos usados para atingir aquele resultado.
Outro exemplo que segue nesse sentido é de uma peça de âmbar, que preserva formigas em seu interior. As investigações realizadas sobre esse objeto foram realizadas em parceria com o cientista brasileiro Roberto Brandão, e resultaram em 14 artigos, hoje expostos junto ao objeto, evidenciando assim o método científico. Para Wagensberg, a ciência é algo vivo, e o museu de ciências deve ser um incentivo para essa constante evolução.
Em outro exemplo, ao perguntar “Por que a vegetação terrestre é verde?”, o professor demonstra com suas hipóteses que a conversação não deve apenas buscar uma resposta/explicação, mas provocar um ciclo virtuoso de questionamentos. Além disso, provocar diálogos entre objetos semelhantes ou, ainda, buscar o que há de comum em coisas diferentes, bem como o que há de diferente em coisas que se parecem comuns – isso é compreender a ciência.
Porém, esses diálogos nem sempre acontecem naturalmente; é preciso criar instrumentos e situações para provocar tais reflexões. Como no exemplo do fóssil de um peixe grande engolindo um peixe pequeno, citado por Wagensberg. O museu o considerava uma peça extraordinária, o processo de fossilização havia eternizado o momento em que um peixe devorava o outro, porém para o público não era um objeto atrativo. Como uma estratégia de diálogo, o museu organizou uma vitrine com outros oito casos de peixes grandes engolindo peixes pequenos, mas também não surtiu efeito. Por fim, convidaram dois atores para encenar os personagens Sherlock Holmes e Watson, que em seu diálogo provocavam questionamentos e reflexões sobre a peça museológica, conhecimento e método científico.
Wagensberg explica que há coisas que não vemos porque são muito grandes, há coisas que não vemos porque são pequenas demais, e há coisas que não vemos porque são muito complexas. A metáfora está para estender a realidade, de forma que os objetos, fenômenos e metáforas se complementam. Um museu deve promover o trânsito entre não estar interessado e estar obsessivamente interessado. Museus são lugares onde se cria vocação científica. Os museus do futuro são museus que criam estímulos.
Por fim, Wagensberg fala que a ciência é universal, a teoria é a mesma, mas não a prática, os exemplos devem ser locais. Os museus de ciências podem falar de física, biodiversidade, evolução, mas os exemplos devem dialogar com a realidade local. Para isso, é preciso contar com pessoas brilhantes, para construir ideais brilhantes, para que as pessoas que habitam as proximidades do museu sintam orgulho de seu museu, e as que visitam possam conhecer aquele lugar a partir de um olhar científico.
Para concluir, uma breve atualização do futuro:
Este relato foi escrito em março de 2021, quando completamos um ano da maior pandemia do século. O novo coronavírus mudou nossos hábitos de vida, fechou museus e escolas pelo mundo afora, reduziu as relações humanas a interações virtuais. Neste momento, a ciência é a grande aliada de defesa da humanidade; talvez nunca tenhamos sentido de maneira tão intensa a necessidade e importância da ciência em nossas vidas. Ao mesmo tempo, temos, no Brasil, um cenário político devastador, que nega a ciência e suas instituições, minimiza as mortes e as consequências sociais da pandemia. A crise da representação política se soma à crise sanitária e deixa exposta a incompetência de um sistema cujo legado é a precarização da vida.
Como podem os museus colaborar com o atual contexto? Como dialogar com uma realidade que mais parece ficção científica? Como promover emoções em corpos anestesiados pelo medo?
Os museus do futuro precisam imaginar o futuro.
[1] Jorge Wagensberg