Relato Crítico: Provocação – Museus para quem?
Museus para quem? Foi a questão norteadora do debate virtual que contou com as participações do Prof. Dr. Janes Jorge da Universidade Federal de São Paulo, de Naine Terena do Oráculo Comunicação, Educação e Cultura, Harry Adams, educador do Museu da Inclusão de São Paulo e mediação de Luiz Palma - Sistema Estadual de Museus de São Paulo (SISEM-SP).
O acesso ao patrimônio cultural salvaguardado nas instituições museológicas, as representatividades, a acessibilidade cultural, a inclusão sócio-cultural e formas de acesso são questões antigas que permeiam o universo dos museus, mas que foram tensionadas pela pandemia da Covid-19 que obrigou muitas instituições museológicas a criarem estratégias para dialogar com seus públicos mesmo com as portas fechadas. As questões para quê e para quem servem para os museus se tornaram ainda mais relevantes. Quais as estratégias para engajamento e inclusão de público precisam ser criadas? Quais desafios ainda permanecem para democratização dos museus e quais as pistas para solucioná-los? Como a questão da sustentabilidade pode ser incorporada pelos museus? Essas outras indagações apareceram nas falas dos 3 participantes e contribuíram para a reflexão de qual é o papel dos museus na atualidade e no pós-pandemia.
O ponto de contato das falas de Janes, Naine e Harry é o de que os museus precisam estar verdadeiramente conectados a seus públicos e ao contexto social do qual fazem parte; por exemplo, é necessário considerar o debate ambiental, a acessibilidade e as consequências trazidas pela Covid-19.
Para ampliar o acesso de todos os públicos aos museus em São Paulo que é uma das cidades mais desiguais do Brasil não basta dizer ‘Está aberto’ e esperar que as pessoas venham, é necessário, como enfatizou Naine Terena, “que as reservas técnicas, as exposições permanentes e os programas educativos sejam revistos e repensados de forma que as pessoas possam se ver nesses espaços”.
Abaixo, os principais pontos das falas dos debatedores.
Provocação - Museus para quem?
Prof. Dr. Janes Jorge (UNIFESP)
“Museus para todos que se interessam por museus”; “Museus para quem se interessa pelo meio ambiente”.
O Prof. Dr. Janes Jorge da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) iniciou a reflexão acerca da provocação “Museus para quem?” Janes ofereceu duas respostas, a primeira foi: museus para todos os que se interessam por museus. Destacou que há um grande interesse da sociedade pela experiência que os museus propiciam e que estes têm muito a oferecer.
A segunda explicação foi a de que os museus são para quem se interessa pelo meio ambiente. Foi destacado que a questão ambiental ainda é abordada de forma superficial no Brasil e a superação da crise ambiental exigirá uma mudança geral na sociedade. Nesse sentido, os museus por atingirem um público amplo e diverso poderiam dar a sua contribuição a partir de seus acervos. Essa problemática pode ser pautada por todos os museus, não só por aqueles que tratam diretamente da questão ambiental.
A sustentabilidade, de acordo com Janes, pode ser pensada de uma maneira mais ampla, como por exemplo problematizar o consumo, a produção, a forma como nos relacionamos com a natureza e as desigualdades sociais.
Naine Terena
Oráculo Comunicação, Educação e Cultura (Cuiabá-MT)
“É necessário transmidiar!”
Naine elaborou a sua reflexão a partir de sua experiência de usuária de espaços museológicos e depois como assessora de comunicação da Secretaria de Estado e Cultura do Mato Grosso, a qual mantém espaços museológicos destinados à arte e à arqueologia.
Como usuária percebia que a frequência ao museu era mínima e se concentrava nos grupos escolares e em datas comemorativas ou específicas, o que demonstra o desafio de democratizar e socializar o trabalho museológico com o grande público.
Como assessora de Comunicação, Naine destacou que a gestão compartilhada dos espaços museológicos com o setor público, iniciativa privada e instituições do terceiro setor contribuíram para a democratização do acesso a esses espaços por um número maior de pessoas.
O contexto da pandemia da Covid-19 trouxe, de acordo com Naine, a necessidade de que os espaços museológicos possam “transmidiar”, ou seja, fazer o deslocamento do espaço físico para o virtual. A utilização das tecnologias se mostrou potente, no entanto Naine relatou estar curiosa para saber do alcance desse recurso nos laços fracos, que diz respeito às pessoas que estão ligadas a outras que já têm o hábito de frequentar museus.
É necessário que as reservas técnicas, as exposições permanentes e os programas educativos sejam revistos e repensados de forma que as pessoas possam se ver nesses espaços. As 160 mil vidas, 160 mil histórias, que se foram, vítimas da pandemia devem ser consideradas quando os acervos e espaços forem revistos, de maneira que as pessoas possam fazer uma reconstrução de suas memórias.
Harry Adams
Museu da Inclusão (São Paulo-SP)
“Se há museus e os museus são para todos, quem é o todos que cabem nesses museus?”
O Museu da Inclusão,em São Paulo, foi representado pelo educador Harry Adams, que fez a sua apresentação em Libras (Língua Brasileira de Sinais) e iniciou relatando parte da sua trajetória como educador de museus surdo. Ele contou que na sua cidade de origem, Cascavel (PR), não havia museus e que seu primeiro contato com uma variedade de instituições de arte e cultura foi quando se mudou para São Paulo. O início de seu trabalho no museu ampliou o seu entendimento do que é ser educador, pois trata-se de se comunicar, interagir, conhecer, dialogar e interagir com o público.
O trabalho de Harry não é exclusivo para a interação com pessoas surdas, ele disse que é possível interagir com toda pluralidade de públicos fazendo o uso de um intérprete de língua de sinais, garantindo assim o seu protagonismo como educador. No geral, infelizmente, isso ainda pouco acontece. Harry também apontou que não é necessário que ele seja intitulado como educador surdo, ele se coloca como educador ou educador bilíngue.
A experiência do Núcleo Educativo do Museu da Inclusão também foi compartilhada; todas as estratégias educativas do núcleo foram alteradas para o ambiente virtual; sSurdos que atuam em diferentes instituições culturais foram convidados para conversas online com o intuito de compartilhar experiências e entender a atuação de cada um em suas instituições.
O museu também está envolvido na construção do corpus de língua de sinais voltado para a área da língua de sinais e museu dentro da temática museológica e memória da comunidade surda de São Paulo. Essa ação é importante porque há diversos conceitos no universo museológico que não foram constituídos em língua de sinais e debatidos com a comunidade surda.
Harry pontuou também que a maioria dos brasileiros não frequentam museus, teatros, cinemas e centros culturais e de artes, e de que há cidades que não possuem instituições de artísticas, ou que essas são distantes, de difícil acesso e muito caras para alguns segmentos da população, o que faz com que percam o interesse de frequentar. O educador afirma que é papel dos museus atrair, interagir e se comunicar com os seus públicos.
A resposta dada por Harry para a indagação “Museus para quem?” foi “Museu para todos!” No entanto, ele nos ofereceu uma contra-pergunta para reflexão:
“se há museus e os museus são para todos, quem é o todos que cabem nesses museus?”
Luiz Palma - Mediador
UPPM
“(...) penso que a museologia histórica, antropológica, social, de arte e de ciência, pode sim influenciar a conduta ética e facilitar direções para a convivência pacífica (...)”. Luiz Palma
As participações do debate foram pré-gravadas, no entanto a mediação aconteceu no dia de transmissão do encontro e foi realizada como mencionado por Luiz Palma, psicólogo social e artista visual, trabalhador da UPPM - Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico da Secretaria de Cultura e Economia Criativa.
Palma usou o seu tear metafórico e foi tecendo relações entre as contribuições dos participantes e citações de autoras e autores como Franz Fanon, Freud, Susan Stong, Coubert e Hannah Arendt.
A começar pelo título do Encontro “Museus, Sociedade e Crise: do luto à luta”, Palma recorre a Freud para explicar que o luto refere-se à um processo de elaboração, o qual pode ser superado com o tempo; no que se refere a luta, essa segundo o mediador não é uma atividade exclusiva do Estado e está relacionada com a res-pública (coisa pública), é que é necessário que a sociedade seja representada para que a luta não se configure como labuta civil.
Associando essa provocação inicial do mediador com as citações de autores que o mesmo trouxe para a mediação como: “Onde e como estamos? No frêmito da passagem. O silêncio e aqui atentos” Coubert ; “o colonialismo é muito mais do que um sistema definido apenas como exploração estrangeira dos recursos naturais de um território, com recurso a mão de obra local, é sobretudo uma negação sistematizada do outro, uma decisão obstinada de recusar ao outro qualquer atributo de qualidade” (...)Foi preciso que mais de um colonizado dissesse isso não pode continuar , foi preciso que mais que uma tribo se rebelasse, foi preciso de mais de uma rebelião dominada, mais de uma manifestação reprimida para que pudéssemos hoje resistir com a certeza da vitória “Franz Fanon; Podemos refletir acerca de quais elaborações podemos realizar nesse processo de luto pela perda quase 200 mil vidas para a Covid – 19, pelo distanciamento das nossas redes de socialização, pelo desemprego, pelo acirramento da desigualdade social, também podemos após o dar-se conta “de onde e como estamos”, construir estratégias coletivas de resistência, de dar novos significados aos nossos espaços e práticas e de transforma-los em locais mais solidários, agregadores e que contemplem a nossa diversidade; Os museus, assim finalizou Palma, tem a grande tarefa pública , social e política de influenciar a conduta ética e facilitar direções para a convivência pacifica e de contribuição para a construção das referidas estratégias.
As contribuições dos participantes do Provocações – Museu para quem? foram assertivas ao tratar da perspectiva de um Museu que precisa dialogar com o contexto e sociedade no qual está inserido e promover as vozes de diferentes representatividades. O isolamento social forçado pela pandemia da Covid-19 obrigou as instituições museológicas a “transmidiarem” seus acervos e práticas educativas, no entanto, essa pandemia também tencionou outras questões que ainda precisam ser aprofundadas pelos museus e não apareceram nas apresentações. No Brasil e no mundo estão ocorrendo manifestações contra o racismo, impulsionadas por diversos assassinatos de pessoas negras e que teve como marco a morte de George Floyd, homem negro, estadunidense, que morreu depois de ter sido algemado e ter o pescoço prensado contra o chão pelo joelho de um policial em Minnesota. Milhares de pessoas têm ido às ruas questionar autoridades, segurança pública, o sistema e o patrimônio histórico que os representa. Estátuas e monumentos de personagens associados à escravidão, ao colonialismo e ao racismo foram derrubadas em diversas cidades da América Latina, Estados Unidos e Europa.
Questões que estão na ordem do dia, como sustentabilidade, diversidade e racismo se apresentam como uma boa oportunidade para os museus se tornarem ativos essenciais nas causas contemporâneas mais urgentes para a humanidade.