Relato Crítico: Mesa 4: O futuro dos museus começa do lado de dentro: apresentação dos resultados da pesquisa do ICOM com profissionais de museus
Mesa 4: O futuro dos museus começa do lado de dentro: apresentação dos resultados da pesquisa do ICOM com profissionais de museus
24/11, 15:00h (vídeo postado dia 25/11)
A mesa 4 do Encontro Paulista de Museus 2020 apresentou o primeiro ciclo da pesquisa “Dados para navegar em meio às incertezas”, elaborada pelo ICOM Brasil (Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus) para conhecer melhor o impacto da pandemia no campo museal do país, em parceria com a Tomara! Educação e Cultura. Participaram da conversa Renata Motta, Presidente do ICOM Brasil, Clara Azevedo, Sócia diretora da Tomara!, Beth Ponte, Pesquisadora associada ao ICOM Brasil e à Tomara!, Fernanda Castro, Técnica em Assuntos Educacionais, Museu Histórico Nacional/Ibram e REM Brasil, foi a debatedora e o museólogo Luiz Mizukami, um dos curadores do Encontro, foi o mediador. Além de apresentar os principais resultados obtidos, as participantes discutiram as motivações que levaram à elaboração do estudo e as vantagens e limitações dos métodos utilizados. O relatório produzido está disponível no site do ICOM Brasil, assim como os dados brutos, uma fonte de informação valiosa para os profissionais e pesquisadores da área.
A pesquisa foi desenvolvida em dois ciclos. O primeiro ciclo, tema da mesa, estava voltado a profissionais de museus, enquanto o segundo ciclo foi dirigido aos públicos (discutido durante o Encontro no dia 26 de novembro). A coleta de dados com profissionais foi realizada entre 31 de julho e 16 de agosto e a consulta com públicos ocorreu entre 17 e 30 de agosto. O primeiro ciclo retornou 1.039 respostas de profissionais de 23 Estados brasileiros, incluindo o Distrito Federal, mas excluindo Rondônia, Roraima, Acre e Amapá. O questionário eletrônico foi compartilhado em campanhas do ICOM Brasil em redes sociais como Facebook, Instagram e enviado por e-mail para profissionais associados ao órgão, além de listas de e-mail distribuídas por instituições parceiras. Segundo o relatório, “o boca a boca também ajudou” e muitos profissionais divulgaram a pesquisa em suas redes pessoais. De fato, os dados brutos indicam que apenas 20% dos respondentes são membros do ICOM, demonstrando o alcance da pesquisa para além de profissionais envolvidos com o Conselho, apesar da limitação geográfica dos respondentes, como discuto a seguir. As participantes da mesa admitiram que a utilização do meio digital como método único de coleta de dados, efeito do próprio contexto investigado que impôs o distanciamento físico, limitou o alcance do estudo, pois nem todos os profissionais de museu têm acesso fácil à internet ou familiaridade com este tipo de ferramenta de pesquisa virtual.
Apesar das limitações da pesquisa, é inegável que o estudo possibilita uma melhor compreensão do ainda pouco estudado campo museal do país. Uma das principais contribuições foi traçar um perfil do profissional de museu no Brasil, dado até então indisponível. Entre os respondentes, observou-se a maior participação de profissionais do sudeste (68,5%), mulheres cisgênero (67%), brancos (71%), com idade entre 30 a 39 anos (32%) e pelo menos dez anos de experiência na área (54%). A mesa notou que algumas desigualdades são evidentes no perfil demográfico dos profissionais de museus no Brasil, por exemplo, apesar da maioria dos funcionários de museu ser mulher, os cargos de direção ainda são majoritariamente ocupados por homens. Além disso, a preponderância de profissionais brancos (no censo do IBGE de 2010, os brancos são 47,7% da população brasileira) sugere a necessidade de ações para ampliar a inclusão.
Com a iniciativa de elaborar a pesquisa, o ICOM Brasil segue outras instituições que já haviam conduzido estudos sobre o impacto da pandemia no funcionamento dos museus em âmbito nacional e internacional, como o Sistema Estadual de Museus de Santa Catarina, o Observatório de Economia Criativa da Bahia, a FGV, o IberMuseus, a UNESCO e o próprio ICOM. O desejo de entender a situação atual é compreensível. Afinal, como equipamentos culturais fundamentalmente dedicados a servir diferentes públicos de forma presencial, os museus foram duramente afetados pelas medidas de isolamento requeridas para mitigar a pandemia de COVID-19. A preocupação se estende além da fase aguda da pandemia, pois é um consenso entre os profissionais da área que este impacto não será temporário: o relatório publicado pelo comitê internacional do ICOM em maio estima que cerca de 10% dos museus do mundo não irá reabrir após a crise.
Em um contexto de disputa por recursos escassos, quando sua função como repositório de acervos nem sempre acessíveis tem sido posta em cheque, os museus passam por uma “crise existencial” e precisam se repensar e se reposicionar. Conforme afirmaram as participantes da mesa, esta preocupação com o futuro dos museus brasileiros pós-pandemia norteou o desenvolvimento da pesquisa desde o início e os responsáveis buscaram equilibrar a necessidade de resposta rápida para a crise e apontar caminhos e tendências possíveis. É também importante apontar que, conforme enfatizou Fernanda Castro, muitos dos problemas identificados no estudo foram agudizados pela pandemia, mas já existiam antes e podem retornar com mais intensidade. De fato, uma das conclusões mais impactantes da pesquisa é que quase um quinto dos respondentes (19,6%) foi demitido desde o início da crise até a coleta de dados em julho/agosto e um terço (30,2%) dos profissionais sofreu redução de salário. E a situação parece ser ainda mais grave, já que 27% dos respondentes se identificou como concursado, ou seja, provavelmente não foram afetados pelas demissões, concentradas entre os profissionais não vinculados ao Estado. Esta conclusão está alinhada com o estudo internacional do ICOM, que descreveu a situação de profissionais sem contrato (freelancers) como “alarmante”, pois já em maio 16,1% havia sido temporariamente afastada e 22,6% dos contratos não haviam sido renovados. Portanto, não é surpresa que a insegurança dos profissionais esteja entre os achados da pesquisa do ICOM Brasil: 44% dos respondentes reportaram que estão se sentindo “ansiosos”, menos de um terço dos profissionais se sentem “estimulados” e somente 23,4% se mantém “otimista”. No entanto, como não há amostra anterior, é difícil perceber com clareza a extensão do impacto da pandemia nas percepções dos profissionais. Por este motivo, os comentários de Fernanda Castro e Luiz Mizukami sobre a necessidade de constante atualização das informações é pertinente.
Mudanças na realidade do trabalho do setor aparecem como a principal tendência para o futuro dos museus brasileiros identificada pelos profissionais respondentes. Como era de se esperar, a tendência mais destacada foi a maior importância da presença digital nos museus e de práticas de trabalho que combinem atividades remotas e presenciais. E como conjugar esta virada para o digital com a transformação desejada pelos respondentes, a aproximação dos museus com a comunidade? Luiz Mizukami lembrou a Mesa Redonda de Santiago do Chile (1972), evento no qual a responsabilidade social dos museus ganhou destaque e quando foram popularizados conceitos como o de museu integral, envolvido com a comunidade em seu entorno e o território. Se o museu do futuro for mesmo “desterritorializado”, como afirmou um dos respondentes da pesquisa, como será a relação com sua comunidade? Ou melhor, quais serão essas comunidades? É interessante notar que 43,4% dos respondentes consideram que a instituição em que trabalham não estreitou laços com a comunidade, apesar do crescimento generalizado das atividades virtuais.
Para concluir, penso que um ponto da pesquisa deve ser questionado. Diferente do que as participantes da mesa afirmaram, a maior presença de respondentes do Sudeste não se conforma com a preponderância de museus na região. É verdade que o Sudeste concentra o maior número de museus no país (39,2%), mas a representação da região na pesquisa foi de 68,5%. Uma comparação com a taxa de respostas do Sul e do Nordeste é reveladora. Enquanto as duas regiões contam com respectivamente 27% e 21,8% dos museus do Brasil, apenas 11,6% e 12,3% dos profissionais que responderam à pesquisa trabalhavam nessas regiões, sendo que o Centro Oeste tem 7,3% dos museus, mas obteve apenas 2,5% de respondentes. Os números sugerem um limite do estudo, reforçado pela ausência de respondentes de quatro estados no Norte. Apesar das vantagens da divulgação boca a boca, como a celeridade e taxa de retorno dos questionários, a abordagem pode limitar o alcance da pesquisa a profissionais já familiarizados com o ICOM Brasil. Neste sentido, Luiz Mizukami colocou uma pergunta apropriada sobre as pesquisas sobre museus realizadas no Brasil: Quem está sendo incluído? Quem é chamado? Estamos chamando as mesmas pessoas? Esta observação não invalida, de forma alguma, a valorosa pesquisa elaborada, mas aponta caminhos e mesmo uma oportunidade para refletir sobre qual comunidade atingimos por meios virtuais.