O potencial da advocacy no Brasil - organização e participação da sociedade civil no desenvolvimento de políticas públicas para a cultura e a economia criativa
Por: Ana Beatriz Rodrigues Garcia
Relato crítico do painel “A importância da advocacy no cenário futuro dos museus”
Este relato faz parte do livro: Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus
Sumário Panorama Reflexivo 11 anos de Encontro Paulista de Museus | Encontro Paulista de Museus |
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O campo da cultura e da economia criativa no Brasil passou por momentos difíceis nessa década, com a diminuição no montante investido pelos governos (em seus diversos níveis federativos) no setor, bem como pelas dificuldades de acesso ao Fundo Nacional da Cultura pelas instituições. Esse problema tem se manifestado de diversas formas – entre eles os diversos ataques ao sistema de financiamento à cultura por meio de benefícios fiscais, como no caso da hoje muito conhecida Lei Rouanet.
A pandemia de Covid-19 veio contribuir para o agravamento dessa situação, atingindo de maneira contundente os espaços e centros de cultura cuja receita dependia em grande medida das bilheterias, impedindo a realização de eventos, espetáculos e gravações e deixando em situação de vulnerabilidade centenas de milhares de profissionais – em especial aqueles das áreas técnicas, que não puderam se adaptar ao modelo das lives e outros formatos online para continuar trabalhando.
Como então adaptar-se a esses tempos e buscar uma abordagem mais eficaz de elaboração das políticas públicas, tendo em vista a relevância do setor cultural não só para a economia, mas também para o desenvolvimento da vida sociocultural que sonhamos para o país?
No painel “A importância da advocacy no cenário futuro dos museus”, Renata Motta do Conselho Internacional de Museus (Icom Brasil), Paulo Zuben, da Associação Brasileira de Organizações Sociais da Cultura (Abraosc), e Pedro Hartung, do Instituto Alana e Impacta Advocacy, propõem um possível caminho para essa atuação, oferecendo um olhar para a advocacy, suas possibilidades e potencialidades para o setor cultural, em especial o museal.
Abrindo o painel, Renata Motta nos oferece um panorama dessa situação crítica da cultura, indicando a importância desta e dos museus na produção de uma vida social mais rica em diversidade, equidade e justiça social, ressaltando a necessidade de avanços na promoção dos interesses do setor. Para isso, explica que a advocacy – um conjunto de práticas e ações coletivas com o intuito de influenciar na maneira como as políticas públicas são construídas – poderia ser útil para induzir mudanças sociais positivas na sociedade como um todo.
Para Motta, o instrumento referido, ainda pouco difundido no Brasil e no setor cultural nacional, tem um histórico de vitórias no âmbito de outras causas populares – como no caso do desincentivo à publicidade direcionada ao público infantil e nas políticas antitabagistas que resultaram na Lei Antifumo, em vigor no âmbito nacional desde 2014. A painelista afirma que tais mudanças foram viabilizadas por meio de campanhas bem articuladas e iniciadas pela sociedade civil, e enumera como exemplo também a Lei Aldir Blanc, de 2020. A Lei Aldir Blanc foi fruto de uma articulação inédita no nível nacional, e realizou o desbloqueio de R$ 3 bilhões do Fundo Nacional de Cultura para ajudar profissionais e instituições culturais impactadas pela pandemia.
Ela pontua o enorme potencial de crescimento da advocacy no setor cultural – e em especial no setor museal, que conta com 3 mil instituições no Brasil, estando 500 delas concentradas somente no estado de São Paulo –, possibilitando alcançar maior organização e combatividade no âmbito da cultura.
Passa-se então a palavra a Paulo Zuben, da Abraosc – Associação Brasileira das Organizações Sociais de Cultura, que apresenta um projeto a ser desenvolvido no primeiro semestre do ano de 2021, com o objetivo de desenvolver a defesa das artes no Brasil. Trata-se de um curso introdutório das práticas da advocacy como ferramenta para o setor cultural, de realização da Abraosc em parceria com a instituição American for the Arts (AfA) e a Impacta Advocacy, e contemplado por um edital do Consulado Geral dos Estados Unidos. O curso será oferecido online para funcionários atuantes na cultura e na economia criativa, e, posteriormente, ficará disponível de forma aberta na internet.
Em sua fala, Zuben explica que o pensamento no sentido de organizar o trabalho em defesa da cultura, assim como promover a sua sistematização, veio a partir do momento em que se notou que as dificuldades e crises do setor cultural podem ter causas comuns em todo o sistema da cultura, atingindo não somente as organizações sociais que são o foco de atuação da Abraosc, mas também outras instituições, produtores de todos os portes, bem como os artistas do setor. Partiu-se, portanto, de uma união a partir da compreensão de que o sistema cultural como um todo está interligado, e que uma atuação coordenada teria muito mais força e impacto na produção de resultados positivos.
Com essa ideia, veio a possibilidade de organizar uma coalizão para defender determinadas causas – sendo necessário para tanto compreender e construir coletivamente quais seriam essas pautas, as motivações do setor e de que forma e com quais objetivos essa defesa deveria ser construída. Para essa compreensão, Zuben reforçou a grande importância que teve a experiência prévia advinda da instituição American for the Arts, criada nos anos 1960 e atuante nos EUA com muitos resultados positivos na defesa do setor cultural, em especial na sua proteção durante a crise gerada pela pandemia, e a experiência nacional, tendo por referência a Impacta Advocacy, com atuação consistente e efetiva em outros setores.
As ideias tomaram a forma de um curso online para cerca de 50 profissionais do setor sobre o tema. Buscou-se não somente traduzir um material advindo dos EUA sobre advocacy, mas desenvolver com a Impacta uma metodologia de reflexão, e construir esse curso. Serão mais de 12 horas de encontros que possibilitarão desenvolver a discussão e pensar materiais a partir de exemplos de outros setores. Espera-se, com a iniciativa, construir uma coalizão que ultrapasse o âmbito das organizações sociais do Estado de São Paulo, construindo uma defesa consistente e permanente das principais causas essenciais para a continuidade das atividades do setor em todos os níveis federativos.
Zuben reforça a necessidade da atuação dos profissionais do setor de forma mais estruturada, de modo a contribuir para a concretização de direitos culturais para todos, acesso pleno à cultura, por meio de ações concretas. Afirma, ainda, que muitas pessoas já atuam no setor com práticas que poderiam ser denominadas advocacy, sem saber que o fazem. O curso busca mudar isso, fortalecendo o vínculo entre atores do setor e dando uma base mais sólida para a realização desse trabalho.
A terceira exposição é realizada por Pedro Hartung, da Impacta Advocacy, que explica que essa defesa de interesses que é o núcleo da prática da advocacy já é praticada no país, mas que as pessoas que o fazem podem se beneficiar do conhecimento de outras ferramentas para a defesa dos interesses dos museus e de todo o setor cultural.
Hartung afirma que o cerne da advocacy é a promoção de transformação social e a incidência política sistematizada e organizada de defesa de interesses em espaços decisórios e institucionais do Estado. Segundo ele, trata-se de prática muito utilizada pelas organizações do terceiro setor e de defesa do setor privado com o intuito de defender interesses nas tomadas de decisões dos entes públicos e na influência sobre políticas públicas e regulatórias. Hartung cita outros exemplos de sucesso da advocacy no Brasil, como o Marco Legal da Primeira Infância, o Marco Civil da Internet, a Lei Geral de Proteção de Dados e a própria Lei Maria da Penha.
O painelista afirma que advocacy trata de organizar interesses para sua defesa nos espaços institucionais não só no Brasil, mas também em outros organismos internacionais, sendo para tanto possível dispor de técnicas e ferramentas específicas. A parceria com a Abraosc busca democratizar o acesso a esse repertório técnico-estratégico, de forma a inspirar gestores e lideranças da cultura na busca por horizontes comuns e sua defesa.
Ele aponta que o Brasil não vive somente um problema de representatividade, mas que há ainda um problema de participação da sociedade civil organizada, de grupos, fundações, associações etc. Seria necessário quebrar a tradição desses grupos de não participar tão frequentemente em espaços institucionais, como a ida ao Congresso Nacional, a atuação em Assembleias Legislativas e nos espaços institucionais do Poder Executivo.
A advocacy não consiste, segundo ele, na articulação política, nas conversas com os responsáveis – ela inclui proporcionar segurança a essa atuação, com ferramentas que lhe garantem transparência e segurança, inclusive jurídica. Hartung reforça que os espaços de tomada de decisão são um espaço de disputa por orçamento e pelo texto da lei. Para participar dessa disputa, que muitas vezes é refletida em instrumentos regulatórios há formas para participar do processo legislativo, que passam por idas ao Congresso Nacional, participação sistematizada de audiências públicas, propostas e alterações aos textos de lei, Projetos de Lei e Projetos de Decreto, participação em consultas públicas, conversas e audiências com todos os envolvidos, de forma transparente e segura.
Daí deriva a importância da criação de coalizões, de forma a dar força à advocacy e harmonizar as atuações, criando um alinhamento que permita a existência de diferenças internas – diferenças de opinião e possibilidades de posicionamento, político e institucional – que não inviabilizem a construção de pautas e objetivos comuns. Para ele, a advocacy é uma “caixa de ferramentas” de vários tipos, como relações públicas, lobby e litígio estratégico, relações governamentais e institucionais, manifestação, mobilização e campanhas de comunicação. Reforça que não é possível fazer a advocacy sem a comunicação, pois, no limite, o que está sendo feito é a difusão de uma causa.
A capacitação para o “uso” dessa caixa de ferramentas é o objetivo do curso desenvolvido com a Abraosc, democratizando-se esse conhecimento e permitindo que o setor cultural se beneficie de uma técnica disponível de transformação social, em defesa dos direitos culturais de toda a população brasileira.
Encerrando o painel, Renata Motta pontua o entusiasmo em contemplar esse espaço da democracia e da sociedade como um espaço de disputa, no qual a caixa de ferramentas pode proporcionar grande efetividade e ser muito útil para o setor cultural.
Por fim, aponta outras instituições atuantes na defesa das artes e da cultura, em especial no setor museal. Ela recomenda o acompanhamento da American Aliance of Museums, que possui uma seção em seu website voltada especialmente para a advocacy e com diversos materiais e recursos disponíveis para utilização, bem como o trabalho do Icom, que é a principal rede internacional de profissionais e instituições museais, e que também tem entre as línguas oficiais da organização o espanhol.
A difusão da advocacy e suas estratégias tem, de fato, muito a oferecer para a sociedade brasileira, com potencial para um maior amadurecimento da sociedade civil para o exercício de influência sobre espaços decisórios de seu interesse. Essa participação é de grande importância para que cada vez mais interessados compreendam a forma como funcionam as instituições do país, quem são os agentes e espaços de maior influência e quais abordagens podem trazer mais efetividade na concretização de seus objetivos. Ela também é de importância extrema na garantia de que as demandas de trabalhadores do setor, que estão diariamente em contato com dificuldades do dia a dia e da vida prática, sejam conhecidas e levadas em conta, evitando-se distorções, ruídos de comunicação e compreensão que afetariam negativamente a implementação de um eventual instrumento normativo impregnado com uma visão distorcida da realidade.
Por fim, essa difusão é importante para que os cidadãos e atores não governamentais estejam cada vez mais aptos a difundir conhecimento sobre esses espaços, processos de decisão e desenvolvimento de políticas, garantindo transparência crescente e maior necessidade por parte dos representantes, eleitos ou não, em justificar suas escolhas na esfera pública. São processos que têm o potencial de proporcionar amadurecimento nas reflexões políticas e na complexificação das análises institucionais e governamentais, e que, uma vez concretizados, tornarão mais próximos da realização os ideais visionários de sociedade e cultura imaginados por nossa Constituinte em 1988, e que estão corporificados na nossa Constituição da República Federativa do Brasil.